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Revista Eletrônica do Centro de Estudos do Imaginário
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_______________________________________________________ Gênero e imaginário entre os wari: etnografia e teste arquétipo de nove elementos (AT-09) * ________________________________________________ Arneide Bandeira Cemin[1] |
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Resenhas Biblioteca Entrevistas Primeiras Notas CONSELHO EDITORIAL Arneide Cemin Ednaldo Bezerra Freitas Valdir Aparecido de Souza |
Os Wari', significando gente
na língua Txapakura, ocupavam, no final do século XIX, o sudoeste da Amazônia:
a Bacia do Rio Lage, afluente da margem direita do Mamoré, as bacias do Rio
Ouro Preto, Igarapé da Gruta, Igarapé Santo André e Rio Negro, afluentes do
baixo e médio curso da margem direita do Rio Pacaás Novos, além das cabeceiras
dos Rios Ribeirão e Formoso. Por volta dessa época houve uma migração de parte
da população para os Rios Dois Irmãos e Novo, afluentes da margem esquerda do Pacaás
Novos (ISA, 2006). Com
a invasão de seringueiros a partir das primeiras décadas do século XX, os Wari'
foram se deslocando para as cabeceiras dos rios, locais de mais difícil acesso.
Na década de Atualmente
encontram-se divididos em oito subgrupos: Oro Mon, Oro Waram, Oro Waram Xijeim,
Cã Oro Waje, Oro Não, Oro At, Oro Eo e Oro Jowin. Além da convivência no mesmo
espaço, com outras etnias (Jabuti, Makurap, Canoé, entre outros) em decorrência
de políticas de aldeamento realizadas pela Funai; ocorrendo por conseqüência, casamentos exogâmicos
(interétnicos) . Encontram-se distribuídos em cerca de 20 aldeias, localizadas
em cinco terras indígenas. Antes do contato eram organizados com base em família
patrilocal extensa e livre (PANEWA, 2002). O chefe da família tornava-se líder
apenas de modo episódico, por ocasião de guerras e de visitas a outros
subgrupos: “cada chefe de família guardou até hoje essa autonomia por isso nem
sempre ele respeita as decisões do cacique, liderança essa que muitas vezes foi
criada pela FUNAI e hoje é escolhido pelo povo” (PANEWA, 2002:53). As
aldeias com cerca de A
confecção de armas e utensílios encontra-se dividida entre homens e mulheres.
Os homens fazem arcos e flechas e as mulheres esteiras, cestos, abanos e potes
de barro. O fabrico de panelas parece ter sido abandonado. Ao mesmo tempo em
que as mulheres atualmente aprenderam a fazer brincos e colares para a venda
(PANEWA, 2000). Quanto
a educação, todas as aldeias contam com ensino de Primeiro Grau e cerca de 45
Wari, entre homens e mulheres, formaram-se pelo Projeto Açaí, em grau de
magistério. Entre 1986 e 1989, 30 Wari (homens e mulheres) obtiveram formação
como Agentes Indígenas de Saúde, em curso promovido pelo CIMI. São acometidos
pela malária, tuberculose (causa principal de mortalidade infantil), hepatite,
verminoses, leishmaniose, e mesmo doenças como hipertensão e câncer (PANEWA,
2000). A
economia Wari tem por base a roça com produtos tradicionais: milho mole e
batata-doce, e milho duro, arroz, feijão e banana e mandioca brava. Esta última
é utilizada para a fabricação de farinha destinada ao consumo e a venda. A
produção de farinha gira em torno de 200 toneladas/ano, fazendo deles
abastecedores do mercado de Guajará Mirim. Além disso, praticam a pesca e
vendem o excedente, sempre em pequena escala. Outro produto destinado à venda é
a castanha. Sua coleta ocorre nos meses de janeiro e fevereiro. Os projetos
financiados pelo PLANAFLORO relativos ao plantio de café e pupunha não deram
resultado e a pesca predatória com fim comercial é praticada em larga escala de
forma ilegal por não índios nas Baías das Terras Indígenas Pakaas Novas;
ocorrendo o mesmo com a madeira (PANEWA, 2000). · Um estímulo central: o personagem, no qual deve ocorrer a projeção do autor no desenho; · Dois estímulos ansiógenos: a queda e o monstro devorante, que são a expressão da angústia existencial do
sujeito; · Três estímulos de resolução da ansiedade: espada, refúgio e elemento cíclico;
· Três estímulos complementares: água, animal e fogo, que
servem para auxiliar os demais arquétipos. Os arquétipos funcionam como estímulos para que o indivíduo
elabore um micro - universo mítico obtido a partir de uma dupla construção: um
desenho e uma narrativa. O desenho fornece as imagens e a narrativa nos dá o
sentido e a articulação da composição desenhada. Ambos são complementados por
um quadro de análise, no qual se registra o modo como cada arquétipo foi
representado, o papel que ele cumpre no desenho e na história, bem como, aquilo
que ele simboliza. A estas informações são acrescidos dados obtidos através de
um questionário que permite esclarecer outros aspectos que motivaram o desenho
e a história do mesmo. O micro universo é passível de ser classificado nos Regimes Diurno
e Noturno de imagens, e nas estruturas heróica, mística, sintética e ainda,
pode ser inclassificável. Neste último caso, apresenta-se desestruturado, ou
seja, os elementos encontram-se sem ligação, distribuídos aleatoriamente. (CEMIN
e SOUZA, 2005; CEMIN ET ALII, 2001;
ROCHA-PITTA:2006 e s/d). O
pressuposto é o de que as
imagens formam sínteses e complementaridades, em
decorrência das propriedades
de “condensação” e de
“deslocamento” dos símbolos, conforme a
indicação de
Freud em “A interpretação dos sonhos”. O
específico da técnica de Grupo Focal (GF), de acordo com os autores
consultados, é a sinergia: a dinâmica de interação grupal e a diversidade de
opiniões; no entanto, assuntos íntimos podem ficar prejudicados. Os fatores a
serem considerados na dinâmica grupal são interação, pressão, competição,
influência, assunto controverso ou íntimo (CARLINI E COTRIM, B.1996; DIAS, 2006; HASSEN, 2002; IERVOLINO,
S. A, PELICIONI, M. C. F., 2001). Em decorrência desses fatores, ficou decidido
que além da entrevista em grupo, faríamos também entrevista individual. O
número e a composição dos grupos focais foram ajustados às condições do campo.
Os critérios para a participação seriam:
mulheres e homens jovens e adultos preferencialmente da etnia Wari e que fossem
habitantes das Aldeias Ricardo Franco e Rio Negro Ocaia; falantes da língua
portuguesa. A técnica de GF recomenda que a mesma aconteça em sala espaçosa,
confortável e com privacidade, mobiliada com mesas e cadeiras. A
questão chave seria de caráter geral porque a recomendação dos autores é que o
tema seja apresentado de forma ampla. Após a apresentação da equipe e dos
participantes e da assinatura do Termo de Consentimento, a mediadora disse que
o objetivo daquele encontro seria entender mais sobre o casamento Wari, para
compreender o que está bem e o que não está bem no casamento entre eles, hoje A
pesquisa teve caráter exploratório por tratar-se de fenômeno que só agora ganha
visibilidade. Trata-se de violência nas relações de gênero intraétnicas. O
estudo foi motivado por solicitação da Funai de Guajará Mirim, de laudo
pericial antropológico sobre estupro ocorrido em uma aldeia Wari, naquele
município. E ainda por assassinato em outra aldeia da mesma etnia, na qual a
mulher matou o marido. Na
impossibilidade de visita as aldeias a pesquisa foi projetada para a Casai
(Centro de Saúde Indígena) de Porto Velho e de Guajará Mirim. A primeira como
base para o teste dos instrumentos de pesquisa e a segunda como campo de
aplicação dos referidos instrumentos. O pré-teste foi realizado na Casai de Porto
Velho, onde conseguimos reunir 6 pessoas: 4 mulheres e 2 homens. Após a
explanação sobre o teste, houve recusa por parte de 2 mulheres que afirmaram
não saber desenhar; uma outra foi recusada por não ter experiência matrimonial,
em decorrência de sua idade, 11 anos. Deste modo, o teste foi realizado com 3
participantes: 2 homens, sendo um agente de saúde indígena e professor em grau
de magistério, formado pelo Projeto Açaí e outro agente de saúde indígena, e
uma mulher. O tempo de duração foi de 1 hora e meia. Consideramos
positivo o resultado do teste. Um dos participantes, respondente do teste, (com
formação em magistério) entendeu que o mesmo seria de muita utilidade como
recurso pedagógico e todos se declararam satisfeitos com a realização do mesmo,
embora reconhecendo que ele exige concentração e esforço intelectual. Indicaram
ainda, que o conhecimento da língua portuguesa por parte dos pesquisados seria
condição imprescindível para inclusão na realização do AT9 e na pesquisa como
um todo. As dificuldades de compreensão de termos tais como “monstro
devorante”, “refúgio” e “elemento cíclico” apresentarem-se similares as que
foram registradas com a população urbana na pesquisa sobre violência e gênero
já referida. Os participantes do pré-teste opinaram que as mulheres indígenas
poderiam ter mais dificuldades porque “têm medo de errar”. O
limite em relação ao ambiente também ficou evidente em decorrência da falta de
espaço com privacidade para abordagem de assuntos íntimos, mostrando ainda, que
o preenchimento dos questionários relativos ao AT9 era prejudicado pelo fato de
que a opinião de um determinava por imitação a opinião dos demais. A falta de
espaço privativo impossibilitou também que se testasse, naquela ocasião, a
técnica de Grupo Focal que foi utilizada na pesquisa de campo. A
pesquisa de campo foi realizada no município de Guajará-Mirim, na Casa de Saúde
do Índio, CASAI, localizada em terreno urbano de 100 X 100, no qual se distribuem
os blocos de enfermaria, consultório, administração e cozinha; e 3
chapéus-de-palha (construção coberta de palha e destituída de paredes) contendo
mesa e bancos fixos ao solo. Havendo ainda, mais quatro mesas e bancos fixados
ao solo, localizados embaixo de árvores. A administração colocou o consultório
médico a nossa disposição, porém o mesmo mostrou-se pequeno para a nossa
finalidade. Além do quê, percebemos que nossos pesquisados ficariam mais a
vontade em espaço aberto e menos “oficial”, o que nos fez optar pelo uso do
chapéu de palha ou das mesas distribuídas pelo terreno. Iniciamos
a pesquisa pedindo a uma Agente de Saúde Indígena que nos ajudasse no convite
para a participação na pesquisa. Entretanto, dado o fato de que ela estava apresenta
desânimo por estar doente, assumimos essa tarefa. Percorremos as enfermarias
falando do objetivo da pesquisa e pedindo colaboração. Os índios e as índias
mostravam-se preocupados com os seus problemas de saúde ou de pessoas de suas
famílias (em geral crianças com até 10 anos de idade), quando na condição de
acompanhantes. Conseguimos a colaboração de apenas duas mulheres da Aldeia
Ricardo Franco. Reunimos
as duas mulheres: Jaci Canoé (cujo filho permaneceu em seu colo durante todo o
tempo da entrevista) e Iara Jabuti, grávida de 9 meses para explicar os
objetivos da pesquisa e ler com elas o Termo de Consentimento Livre e
Esclarecido. O termo foi assinado pelas duas. Iniciamos a entrevista pedindo a
elas que falassem sobre o casamento em suas aldeias abordando também as
dificuldades de hoje. Ao finalizar a entrevista consideramos que elas não
mostravam sinais de cansaço e solicitamos que realizassem o AT9. Foi esclarecido
que tratava-se de um exercício de imaginação, não havendo portanto, certo ou
errado e não requerendo habilidades de desenho. As duas concordaram e realizaram
o exercício de forma atenta. Foi testada a compreensão que elas teriam sobre
classe social (por fazer parte do protocolo do teste), perguntando se sabiam do
que se tratava. Classificaram a si mesmas como classe “nem alta nem baixa,
porque tinha estudo”. Durante a entrevista foi oferecido bom-bom de chocolate
às entrevistadas e à criança. A caixa de bom-bons foi disponibilizada para que
elas se servissem. Resultados: Grupo Focal Jaci Canoé “Hoje
nem todos os casais se dão bem, brigam e às vezes se separam. Tem gente de
família que se separa por safadeza e deixam os filhos jogados. Meu pai e minha
mãe brigam e não se separam. Para namorar, tem jovens que pede dos pais e às
vezes o pai libera ou o rapaz leva a menina na marra, sem a permissão do pai.” Iara Jabuti:
“Meu pai e minha mãe se separaram porque o meu pai se envolveu com uma mulher
branca, civilizada”. Jaci “Quando o homem sai
para beber às vezes a mulher não vai, o homem vai e bebe chicha (bebida
indígena com baixo teor alcoólico) e bebe álcool (às vezes mistura álcool e
chicha), chega a casa e bate na mulher, ela corre para os vizinhos e os
parentes vão atrás do marido e faz uma confusão bem grande. Juntam o pai, a
mãe, os irmãos; às vezes o filho fica contra o pai porque ele bateu na mãe. Às
vezes chega até a ferir a mulher. Quando os comerciantes levam bebida ou eles
compram escondido Iara “Às vezes a mulher é
ruim para o marido, viaja para Guajará Mirim e deixa os filhos jogados”. [As
duas acham que] “o casamento antigo era melhor, porque hoje a gente não sabe se
o homem é bom ou não e antes eram os pais que escolhiam gente que eles
conheciam bem”. Jaci “Eu nunca casei porque
o pai dos meus filhos (um menino de 3 anos e uma menina de 1 e meio) sempre
vivia me enganando e ele acabou que casou com outra mulher que já tem dois
filhos (fala ressentida). Quando começamos a namorar eu tinha 14 anos e ele 16
e engravidei aos 16 anos. Eu moro com os meus pais e planto arroz, batata,
cará; a gente faz farinha e a gente vai levando porque o pai deles não ajuda Iara: tenho 15 anos,
comecei o namoro aos 12. Ele tem 17 anos e nós moramos com o meu pai. [As
duas entrevistadas relatam que na aldeia tem muita briga e até morte. Citam o
caso da mulher que matou o marido porque o homem batia muito nela e estavam
separados e ela começava a se envolver com outro homem. Acreditam que quando o
homem está certo ele tem o direito de bater na mulher. Dizem também que as
pessoas socorrem, mas se eles vão e voltam às pessoas deixam para não se
meterem em confusão]. Jaci “O marido não deve
bater ao ponto de deixar a mulher no chão. Meu pai saia para beber e chegava em
casa e batia na minha mãe, chegou a fazer um corte na cabeça dela por causa de
bebida. Isso quando eu era pequena, agora ele não bate mais, porque está
parando de beber faz um ano e agora ele bebe mais chicha.” Jaci “Entre 2000 e 2004
tinha muita briga. Era só ter uma chichada com álcool e tinha briga. Só com a
chicha é mais difícil ter briga. O motivo é ciúme e falta de comida Iara “O homem bate na
mulher também quando ela falha no trabalho e nesse caso ela acha que ele tem
razão. Os mais jovens também começam a brigar por causa de bebida e a briga
envolve várias famílias. Às vezes a briga é entre irmãos ou entre casais de
namorados. Até as meninas adolescentes começam a beber álcool e brigam entre
elas pelos rapazes (disputa). Às vezes ele tira a menina da festa embaixo da
peia, isso quando o namoro é sério”. Retomam
o assunto das duas mortes ocorridas na aldeia. Explicam que no caso da segunda
morte o casal estava bebendo, estavam separados e ela estava se envolvendo com
o primo dele de quem ela teve um filho. Ele com ciúme foi bater nela e ela
furou ele. Iara diz que ele era tio dela (Iara). “A
outra morte, o casal também estava bebendo junto em um sítio e quando voltavam
para a ladeia o marido que já vinha batendo na mulher no caminho, continuou a
bater nela na casa de sua mãe (dela) onde eles moravam e o irmão (dela) não
gostou e disse que ia furá-lo com a faca e ele bêbado não acreditou e partiu
para cima e foi atingido pela facada. Ficou doente e proibido de beber e
trabalhar. Um ano depois ele morreu porque continuou bebendo e voltou a
trabalhar. O irmão que o atingiu com a facada continua foragido na cidade de
Guajará Mirim, só que ninguém sabe onde ele está”. [Acham
que a violência diminuiu um pouco porque a Polícia Federal (PF) fez várias
reuniões na aldeia com a comunidade envolvendo os moradores de Sagarana, Baia
da Coca, Baia das Onças e a Baia Rica. Os caciques e as lideranças também
falaram pela paz e a PF disse que se não parassem eles iam levar os índios para
a cidade. Antes das festas os caciques falam para não brigar.]. Ao final,
combinamos com Jaci e Iara entrevista individual, que realizamos no dia
seguinte, e que segue abaixo: Entrevista individual A
minha vida foi sempre boa. Não teve momento assim ruim, nem grandes
acontecimentos. A adolescência também não foi tão ruim. Não aproveitei muito a
minha adolescência, casei muito cedo porque eu engravidei e porque o pai quis
assumir e ficar comigo, se ajuntar (parece que as transformações no modo de
vida estão fazendo com que os rapazes escapem dos deveres paternos). Pergunto
se usava algum remédio para evitar gravidez e ela diz que “para evitar filho a
gente toma sumo de planta, mas a minha avó não quis me dar porque ela disse que
só depois de eu ter pelo menos um filho”. Continua dizendo: tenho três irmãos
que moram Eu
tinha dez anos quando fui morar com o meu pai e não lembro muito da vida com os
meus avós. Lembro que gostava mais do meu tio e que ficava mais com ele.
Estranhei quando fui morar com o meu pai. Voltei para os meus avós por um mês e
voltei para o meu pai para estudar e nunca mais voltei para ficar muito tempo
com os meus avós. Minha avó tem doença muito grave, é câncer. Mandam remédio da
cidade e ela toma remédio caseiro. Os médicos queimaram a doença dela e ela
melhorou, ela sofre muito de dor de estômago. Quando
eu fazia coisa errada meu pai dava conselhos. Minha avó só fazia medo, mas não
batia. O avô também só fazia medo. Não me maltratavam porque o que eles falavam
eu obedecia e também os meus primos obedeciam. Aprendi artesanato com a minha
avó, fazer marico, cesto preso na testa para carregar coisas e tipóia para
carregar crianças, saia de palha para as festas; aprendi a fazer chicha, beiju,
pamonha, tapioca, açaí e patoá. Tenho colegas e a maioria de nós é muito
apegada uma a outra, crescemos juntas; a gente fazia brinquedo de barro e de
palha. A
minha etnia é Jabuti e a dele é Canoé. Eles têm pele clara, meu marido ajuda o
meu pai na roça. Não sei se ele vai ficar Considerando
as profissões mais acessíveis aos indígenas que habitam em aldeias, pergunto se
ela quer ser professora e ela diz que não, mas que gostaria de ser Agente de
Saúde. Aconselho-a que fique atenta para as ofertas de cursos de formação e que
converse com os funcionários e funcionárias da CASAI sobre o seu interesse,
visando obter deles orientação e ajuda. Iara
começa a fazer perguntas sobre a minha vida, se tenho filhos, se fui casada.
Conto para ela sobre minha mãe e meus casamentos. Ela ouve atenta,
compreendendo tudo e às vezes completando minhas frases. Parece aliviada por
constatar que também existe dor no outro lado do mundo, o mundo dos não índios,
chamados por eles de brancos, civilizados. Pergunto o nome de seu marido e ela
diz que é Sancler. Informo que estivemos
com ele no Porto da FUNAI e ela fica calada, talvez pensando no que ele poderia
estar fazendo. Parece preocupada, evidenciando insegurança quanto ao apoio que
pode obter dele; mas logo se recupera e assume seu ar de controle e calma
dizendo que ele costuma ir visitá-la à noite na CASAI. Discussão dos Resultados do AT-09 Iara Jabuti Apesar
de afirmar que sua vida sempre foi boa, o teste de Iara evidencia muita
ansiedade. O personagem de sua história (inspirada em uma lenda de sua etnia) é
um homem solitário em busca de alguém; o refúgio que ele encontrou nessa busca
era um buraco e não era um lugar bom, mas como ele se enganou a esse respeito,
ele resolveu ficar; mas quando ia entrar uma pedra caiu e fez barulho. O
refúgio era a morada do monstro e dentro havia água, réptil, espada e fogo. A
espada ficava ao alcance do homem, pois se encontrava logo na entrada do
refúgio. O homem pega a espada, mas não a utiliza, pois fica apenas parado
olhando o monstro que ia matar um animal que estava se reproduzindo de plantas. O
quadro de repostas e o questionário confirmam que o personagem é um homem,
acrescentando que ele é um “caçador dos parentes e que andava procurando-os”.
Os elementos ansiógenos do teste: a queda e o monstro evidenciam que a queda
estava referida ao monstro e que este foi representado por um “morcego que mata
as pessoas que o homem procura”, e simboliza seu avô. Os elementos de resolução
de ansiedade: espada, refúgio e elemento cíclico; indicaram que a espada, embora
tenha a função de proteger; na história ela está dentro do refúgio, sendo que
este é a casa do monstro. O personagem mesmo segurando-a não consegue usá-la
porque fica paralisado de medo diante da ação do monstro que ia matar mais um
animal. O elemento cíclico é frágil porque é apenas “um bichinho rodando na
água” e sua função era “ter algo para o monstro”, simbolizando “aviso pro
monstro”. Os elementos auxiliares: a água, o animal e o fogo estavam todos a
serviço do monstro; embora com simbologia positiva: a função da água era ser a
“única que o monstro tinha para poder tomar”; o animal “era quem o monstro
matava para comer”; o fogo servia de iluminação da casa do monstro e de
preparação dos seus alimentos. Jaci Canoé. Entrevista Individual Agora
minha vida não está muito boa, eu quero estudar e ter uma profissão (ela quer
ser veterinária). Minha vida melhoraria se eu tivesse uma profissão para
sustentar meus filhos. A maioria da minha turma não está estudando. Minha
vida sempre foi triste, às vezes eu penso que fui errada com minha mãe por ter
dois filhos sem marido por perto. Às vezes eles brigam comigo, chegaram a me
expulsar quando estava grávida dela (aponta para a menina no colo), aí passei o
dia todo na casa da minha avó e voltei no final do dia. Eu sofri demais na
minha gravidez. Meu pai, minha mãe e meu irmão brigavam comigo, meu irmão
chegou a dar um murro nas minhas costas. Tenho sonho de encontrar uma pessoa
que pode me ajudar, que pode me dar educação, ainda não desisti desse sonho Quando
criança eu gostava de brincar com minhas primas e irmãos no mato, ia pescar,
jogava bola. Eu conheci o pai da Isabel (a filha) na aldeia dele. Fui passar o
aniversário da minha prima. Nós ficamos juntos uns 2 anos sem ter filho. Quando
fiquei grávida do primeiro filho, tinha 16 anos, eu não sabia que estava
grávida. Nele a minha mãe não tinha tanto desgosto. Depois de 2 anos engravidei
do segundo filho, aí meus pais já começaram a me perturbar. Durante esse tempo
eu continuei com ele, ele chegou a pegar meu primeiro filho só uma vez. Depois
no segundo eu andava atrás dele, e ele não me queria mais, ele já estava com
outra mulher e se eu quisesse ter o filho era para eu criar sozinha. Ele nunca
deu nada para a criança. Agora minha mãe já acostumou e gosta dos meus dois
filhos. Não
tenho namorado agora, só tive o pai dela de namorado. A 1ª menstruação: não tive nenhum ritual, tinha 13 anos.
Minha mãe falava que quando viesse a primeira menstruação era para tomar
cuidado porque já estava na adolescência. Minha 1ª relação foi com um rapaz,
não foi com o pai dos meus filhos. Tinha 15 anos e não contei para minha mãe. Na minha
aldeia tem muitas festas e às vezes eu vou, mas só quando minha mãe deixa. A
festa é de forró mesmo, eu gosto de dançar. Tem forró, rasqueado e discoteca. A
casa onde moro é de palha e barro e tem Além
da chicha eu bebo só cerveja, mas nunca gostei de beber álcool, minha mãe
falava que quando tomasse álcool ela faria beber uma garrafa de cerveja inteira
(ela acha cerveja amarga). Nunca
apanhei de homem, meu pai já bateu na minha mãe porque ele tinha muitos ciúmes
dela. Ele não gostava que ela saísse para chichada. Quando eles saíam iam bem,
mas quando voltava ele batia nela, aí a gente só ficava chorando. Um dia ele
queria atirar nela, mas ela foi esperta e correu. No
dia 19 de abril tem dança e apresentação na aldeia. Aí cada etnia faz sua
dança, a gente imita os índios da maloca (aldeia que morava os índios de
antigamente, os que eram bravos). Em cada grupo de dança ficam dois velhos, aí
fica ensinando e a gente vai ao ritmo deles mesmos. Não
falo a língua da minha etnia, só português, mas entendo a língua da minha
etnia. Na escola da aldeia ensina, mas não ensinou da minha etnia só do Jabuti
e Macurape. Ao
contrário de Iara, Jaci afirma em sua entrevista que sua vida sempre foi
triste. O personagem de sua história (inspirada em uma leitura de um livro
escolar) é uma menina que está em cima de uma arvore, tendo uma espada em sua
mão com a finalidade de cortar um galho para fazer fogo. Repentinamente, o
galho no qual estava apoiada se quebrou e ela caiu. No lugar onde morava havia
um rio que tinha muitos peixes e também era a morada do monstro feroz – a cobra
grande sucuri. Na
resposta do quadro de análise dos elementos e no questionário ela confirma a
menina como um personagem que caiu por não ter percebido que o galho estava
seco e a queda simboliza desmaio. Os elementos ansiógenos, a queda, já referida
como sendo de uma menina, indica distração e desmaio por parte dela. O monstro
é brabo e pode comer gente, portanto o monstro é devorador. Os elementos de
resolução de ansiedade, a espada, o refúgio e o elemento cíclico mostram que,
embora a arma esteja na mão da menina e simbolize arma, sua função é cortar o
galho de uma arvore. O refúgio é apenas um acampamento, portanto abrigo
provisório, cuja função é abrigar as pessoas que fogem e simboliza um lugar
para viver. O elemento cíclico foi representado por elemento natural, uma
arvore que serve para fazer fogo e dar sombra. O personagem é uma menina cuja
função é fugir do acampamento e simboliza o ser humano. Quanto aos elementos
auxiliares, começando pela água, esta foi representada por um rio que tem a
função de “ser grande” e simboliza água para beber; o animal é um peixe
“sobrevivente” e simboliza alimento. O fogo serve para cozinhar e iluminar. Conclusão Os
resultados dos testes esclarecem e confirmam a etnografia proveniente das
entrevistas em grupo e individuais. O teste de Jaci Canoé evidencia a ansiedade
de uma “vida que sempre foi triste”. A queda é do personagem; sendo ainda
redundante quanto ao que parece ser inconsciência, desconhecimento e
impossibilidade de iniciativa para enfrentar os problemas; porque o personagem-menina
não é adulto, cai porque não percebe o perigo e desmaia; o monstro que é
devorador pode comer gente; e o elemento cíclico foi representado por árvore
cuja função é dar sombra. Em sua entrevista, embora afirme querer estudar e ter
profissão (Veterinária), ela parecer apostar no “sonho” de encontrar alguém que
a sustente e aos seus filhos; reafirma essa idéia dizendo que não “desistiu
desse sonho”. Se tivesse que participar da história, ela fugiria e iria para o
refúgio. O
teste mostra que ela está indefesa: a espada foi desfuncionalizada enquanto
arma, o refúgio é provisório e abriga fugitivos. Os elementos auxiliares embora
indiquem funções positivas, pois a água é um rio destinado a ser grande e simboliza
água para beber; o peixe, mesmo simbolizando alimentos, tem por função
sobreviver, o fogo é funcional: cozinhar, e simboliza claridade. Sua história
termina com a ferocidade da cobra que impede que se more naquele lugar. A
ferocidade é a sua condição de vida
precária. Dois filhos para criar sozinha nos estreitos limites sociais da
aldeia, de onde ao mesmo tempo ela vê que há o mundo dos não índios, no qual,
preferencialmente pelo casamento e também pelo alcance de uma profissão, ela
poderia ser grande. Quanto
à Iara Jabuti, o resultado é coerente com a sua condição de ter sido criada
pelos avós desde os seis meses, e aos 10 anos de idade ter ido morar em
companhia do pai, fato que lhe causou estranheza, no sentido de sofrimento.
Também retrata a insegurança e fragilidade de sua condição atual: grávida de
nove meses aos 15 anos de idade; tendo por marido um jovem de 17 anos. É
dependente de seu pai, pois reside com o marido na casa paterna. Olhando-a em
sua meninice, temos mesmo a impressão de ver um rosto belo e calmo escondendo o
medo. A mim ela inspirou sentimento de proteção. Tive vontade de adotá-la:
parece mesmo um bichinho desprotegido: ao definir seu modo de participação na
história que construiu ela disse que “seria o personagem que ia andar pela
mata, achar o refúgio, mas não entrava até o fundo porque via (o monstro) matar
o animal que estava se reproduzindo”. Não
dispomos de dados sobre as atitudes de seu avô para com a família. Não sabemos
como ele reagiu com relação a ela e a sua mãe. O fato é que temos duas mulheres
que se reproduziram: a mãe que a teve e a deixou com os avós e ela própria que
se encontra grávida. Durante a entrevista ela evidenciava esforço para manter
seu relato e suas emoções sob controle o que talvez tenha prejudicado a
espontaneidade. Entretanto, considerando-se o pouco contato que tivemos com
ela, justifica-se sua atitude reservada. O
AT-09
é um instrumento sensível como guia para
diagnóstico da situação do sujeito e
do seu ambiente. O Teste Arquétipo de Nove Elementos, AT-09 foi
pensado como
complemento para a compreensão dos dados etnográficos,
conforme experiência
desenvolvida no Centro de Estudos do Imaginário (CEI/UNIR).
Evitamos a
expressão “teste” e a substituímos pelo termo
“exercício de imaginação” por ser
mais de acordo com a teoria que fundamenta o teste. Durand (1997)
desautoriza o
uso do teste para a identificação de tipos
psicológicos excludentes, pois isso
resultaria em “racismo caracterológico”. Afirma
ainda, que a consciência pode
transitar de um regime a outro de imagens em decorrência da
função de
“compensação” já indicada pela
psicanálise. Acrescenta que as representações
podem não coincidir e mesmo negar o comportamento geral da
personalidade. Do
mesmo modo, para ele, “uma tipologia dos sexos não pode
explicar a escolha
desta ou daquela constelação de imagens”, pois
são “as ambiências psicossociais
que definem o existencial” (DURAND, 1997:379-92). Bibliografia CARLINI-COTRIM,
B. Potencialidades da técnica qualitativa grupo focal em investigação sobre o
abuso de substâncias. Rev Saúde Pública,
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2006. Notas [1] Professora do Departamento de
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