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A POÉTICA DO ESPAÇO(1)


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CONSELHO EDITORIAL
Arneide Cemin
Ednaldo Bezerra Freitas
Valdir Aparecido de Souza

  


O objetivo desta resenha é apresentar algumas considerações acerca das relações existentes entre o universo poético e imaginário, a partir das imagens do espaço, mais precisamente, da simbologia das imagens da casa.

O fenômeno da imaginação poética atinge uma pluralidade de temas e imagens e, neste sentido, a obra A poética do espaço, de Gaston Bachelard, busca uma filosófica da poesia, que nada tem a ver com o racionalismo filosófico que conhecemos, mas ao contrário, uma filosofia da poesia que aparece relacionada à “essencial novidade psíquica do poema” (1974, p. 341).

Assim, a filosofia da poesia não reconhece o ato poético vinculado ao passado, mas sim relacionado à “explosão de uma imagem”, que ressoa ecos do passado que irão repercutir profundamente. O ato poético, a imagem poética são relacionados, antes, ao plano ontológico do que a uma racionalidade premeditada.

Neste sentido, a fenomenologia presta-se como método de investigação de análise das imagens poéticas, uma vez que “estuda o fenômeno da imagem poética no momento em que ela emerge na consciência como um produto direto do coração, da alma, do ser do homem tomado na sua atualidade” (1974, p. 342). Bachelard adota esse método de investigação, partindo do pressuposto de que a fenomenologia estuda a imagem a partir da consciência individual, do sujeito, bem como a repercussão dessa imagem no sujeito-ouvinte-leitor.

O trabalho de Bachelard, neste livro, é pesquisar a imagem poética em sua origem, a partir de uma fenomenologia da imaginação pura. O fenomenólogo, diferentemente do psicólogo ou psicanalista, encontra, na poesia, a sublimação, ou seja, a poesia é dotada de uma felicidade própria, mesmo que seus temas sejam tristes. Enquanto os psicanalistas se preocupam em investigar a natureza humana dos poetas, os fenomenólogos estudam as imagens, as novidades expressivas, a imaginação, fenômenos que transcendem a natureza humana.

Como as imagens são variacionais, Bachelard delimita sua investigação ao exame das imagens simples, as imagens do espaço feliz (topofilia), determinando os valores humanos dos espaços de proteção (casa). Assim, a imagem poética do espaço segue uma linha que começa com a poética da casa, enquanto instrumento de proteção para a alma humana, partindo para os valores da casa dos homens (cabanas) e das coisas (gavetas, armários e cofres), dos ninhos e conchas, dos cantos, até chegar aos espaços da imensidão e da miniatura, do aberto e fechado,e , por fim, ao valor ontológico das imagens e da fenomenologia do redondo.

No primeiro capítulo, Bachelard mostra-nos os valores da intimidade do espaço – “a casa é nosso canto no mundo” (1974, p. 358) – evidenciando a casa como nosso ponto de referência no mundo, como signo de habitação e proteção. Essa imagem da casa constitui-se um devaneio imemorial; promove a comunhão entre memória e imaginação, lembrança e imagem. É como se a memória da primeira moradia acompanhasse-nos durante toda a vida, todo sonho e devaneio, como se ela fosse indelével na nossa imaginação.

A poesia, neste caso, funciona como o elemento deflagrador da imagem poética do espaço que temos no inconsciente. A fenomenologia, por sua vez, serve de base para se estudar esse fenômeno que se dá na consciência do individuo: “Pelos poemas, talvez mais do que pelas lembranças, tocamos o fundo poético do espaço da casa [...]: a casa abriga o devaneio, a casa protege o sonhador, a casa nos permite sonhar em paz” (1974, p. 359).

Vemos, com isso, que a casa é um dos maiores poderes que permitem interligar os pensamentos, lembranças, os sonhos do homem e os devaneios. A casa é vista, segundo Bachelard, como o grande berço, o aconchego e proteção, desde o nascimento do homem; é o paraíso material. As lembranças da casa estão guardadas na memória, no inconsciente e acompanha-nos durante toda a vida e, sempre voltamo-nos a elas nos nossos devaneios.

Nossa imaginação trabalha a imagem dos espaços, processando os valores de abrigo e aposento à casa da infância. Nos poemas, essas imagens são relembradas a partir da leitura, retornando-se a uma antiga morada. É como se revivêssemos a casa natal, fisicamente inscrita em nós, ou seja, como se a infância permanecesse viva. Será a topo-análise a encarregada de estudar a manifestação dos lugares físicos de nossa vida íntima na consciência e nas lembranças.

No capítulo seguinte, a casa passa a ser designada em sua relação com o mundo/universo. Na literatura este tema é retratado em alguns poemas de Baudelaire, que tratam da estação do inverno. Este, por sua vez, põe a casa em condição de não-casa, pois a neve que cai apaga os caminhos externos, isolando a casa do mundo. Mas, por outro lado, a ausência do mundo exterior intensifica a intimidade dos valores da casa.

Em oposição à casa perdida tem-se a imagem da casa sonhada, que, segundo Bachelard, foge de seu domínio de análise, para entrar no plano da psicologia dos projetos. A casa do futuro, nos poetas, é um misto de metáforas, sonhos e devaneios. A casa sonhada, nas páginas de Saint-Pol Roux, ganha a dialética da choupana, corpo de donzela, ninho, crisálida (1974, p. 397).

O terceiro capítulo trata da diferença entre imagem e metáfora. A imagem, como vimos está relacionada à imaginação, enquanto a metáfora é considerada uma “imagem fabricada” e, por isso, não faz parte de um objeto de estudo fenomenológico (1974, p. 403), ela é empregada passageiramente, ao passo que a imagem é a obra pura da imaginação, um fenômeno do ser. A metáfora é uma “falsa imagem”, uma vez que não desfruta da mesma virtude de uma imagem formada no devaneio (1974, p. 405).

Os devaneios da intimidade, representados pelos armários e suas prateleiras, as escrivaninhas e suas gavetas, os cofres e os fundos falsos não podem restringir a memória a um armário de lembranças. Mais do que isso, a imagem da gaveta, como atesta André Breton, está “cheia de roupa limpa”, de “raios de lua” (1974, p. 407), imagens que dão à “metáfora da gaveta” uma riqueza íntima sobrenatural.

O cofre e a fechadura, por outro lado, estão sob o signo do segredo, da alma fechada do ser fechado, está muito mais ligado ao signo do esconderijo, do mistério. Bachelard destaca-nos que os escritores “nos dão seus cofres para ler” (1974, p. 409). A imagem do cofre, na obra de Rilke, aparece repleta de segredo, mistério e encantamento, demonstrando o maravilhamento do poeta diante da fechadura do cofre e da sensação de desvendamento do mistério que ele esconde.

O espaço do ninho é o tema do quarto capítulo, no qual Bachelard tece uma associação das imagens do espaço e sos seres que os habitam. Logo no inicio do capítulo o autor cita a figura de Quasímodo, o habitante da catedral de Notre-Dame. Para este personagem, como afirma Victor Hugo, a catedral simboliza ao mesmo tempo “o ovo, o ninho, a casa, a pátria, o universo” (Hugo apud Bachelard, 1974, p. 414), ou seja, era sua morada, seu espaço íntimo.

Quasímodo sente-se bem em seu refúgio, ele toma a forma do edifício. Este, por sua vez, funciona como um ninho ou uma concha, um abrigo onde ele pode “encolher-se no seu canto” (1974, p. 415). O ninho recebe, portanto, uma valorização de abrigo seguro, de uma construção singular que supera todo artifício humano dos construtores. O ninho, para os pássaros, é a síntese da morada da vida, pois acaba sendo, para os filhotes, sua penugem externa, a morada quente.

A alma é tão sensível a essas imagens simples que, numa leitura harmônica, ela percebe todas as ressonâncias. A leitura ao nível dos conceitos seria insípida, fria, seria linear. Ela nos obriga a compreender as imagens umas após as outras. E nesse domínio da imagem do ninho os traços são todos simples que é de surpreender que um poeta possa encantar-se com ela. Mas a simplicidade produz o esquecimento e, subitamente, tem-se gratidão pelo poeta que encontra num estilo raro, o talento de renová-la. (1974, p. 420).

O devaneio da segurança, despertado pela casa onírica e o ninho, reforça a imagem da casa-ninho enquanto possuidora do formato do corpo. A casa cola-se em nós, assumindo nossa forma, assumindo a função de abrigo e proteção, a imagem do nosso canto no mundo. A casa é, dessa forma, um ninho no mundo; um ninho que é o centro de um mundo (1974, p. 423).

Vemos, com isso, a importância do ninho na imaginação. Quantas imagens um simples ninho suscita na imaginação humana! É fantástico como o poeta dá continuidade a esta imaginação e a esta imagem: o ninho-casa, o ninho-abrigo, o ninho-segurança, o ninho-conforto, o ninho-alegria, o ninho-mundo. Mais interessante, ainda, é que estas imagens não terminam, uma vez que a imaginação continua a sonhá-las, a reinventá-las e renová-las.

O quinto capítulo aborda as imagens da concha, um objeto misterioso, que incita a curiosidade antes pela formação do que pela forma e beleza externa. A concha, assim como o ninho, são imagens da função de habitar e, como o ninho, os devaneios residem na concha habitada e não na vazia, uma vez que estas causam devaneios tristes e de refúgio.

A imaginação é a grande força criante que permite extrair das conchas os seres mais espantosos e inesperados, nada impedindo que seres grandes saiam deste abrigo pequeno. A imaginação animalesca das conchas forma seres mistos, expressam a evolução animal, cria toda “uma fenomenologia do verbo sair” (1974, p. 427). Os vários animais que saem da concha representam apenas uma espécie de ampliação das imagens do “sair”.

Por outro lado, a concha é uma casa que cresce e se constrói na mesma medida que seu morador. Um pequeno caracol mole fabrica sua casa de pedra, compondo uma imagem sublime que faz o espírito contemplar a maravilha da casa-concha habitada, dessa casa-ninho, dessa concha-ninho que provoca devaneios que instigam a imaginação humana, que conferem à concha um devaneio de intimidade, “uma morada natural” (1974, p. 441).

Uma imagem simples como refugiar-se no seu canto é capaz de despertar imagens maiores, fazendo com que o canto torne-se a casa do ser: “ ... todo canto de uma casa, todo ângulo de um aposento, todo espaço reduzido onde gostamos de nos esconder, de confabular conosco mesmos, é, para a imaginação, uma solidão, ou seja, o germe de um aposento, o germe de uma casa” (1974, p. 444).

Uma outra imagem do espaço são as miniaturas, especialmente, aquelas que aparecem nos contos de fadas, onde um mini-espaço abriga em seu interior uma vasta área, portadora de beleza e conforto sem igual, onde o visitante e o leitor se sentem felizes e bem instalados neste espaço. Viajando neste mundo em miniatura, neste mundo imaginário tomemos por base a frase de Schopenhauer: “o mundo é a minha imaginação” (1974, p. 453).

A imagem do pequeno Polegar é um exemplo conflitante da condição de ser miniaturizado. Da mesma forma que sua pequenez excessiva é tida com ofensa e desprezo, a ponto de ser morto pela patada de uma formiga, e, por outro lado, é justamente a sua pequenez o índice que produz os grandes feitos – o pequeno comanda o grande.

A imagem literária, como afirma Bachelard, “torna a alma bastante sensível para receber a impressão de uma fineza absurda” (1974, p. 490). No entanto, os poemas são realidades humanas, eles tratam de imagens que nos fazem ingressar no universo da imensidão poética.

“A dialética do interior e do exterior” é o título do nono capítulo, no qual Bachelard apresenta-nos algumas evidências opositivas dessas duas imagens, da mesma forma que coloca em questão a dialética da psicanálise e da fenomenologia. Esta, por sinal, é a que nos proporciona o estudo da imagem psíquica, ou seja, dos fenômenos que ocorrem na mente. Cabe, portanto, à filosofia da imaginação rastrear as imagens que os poetas nos mostram.

No caso do exterior e do interior verificamos uma constante dialética, pois ora o exterior representa a prisão ora o interior é a imensidão. A poesia é, assim, um campo livre de expressão, e, a fenomenologia da imaginação poética é a que permite-nos adentrar o ser do homem. Já a linguagem poética traz em si a dialética do aberto e do fechado e conduz-nos a uma fórmula do ser do homem enquanto um “ser entreaberto” (1974, p. 500).

A simples imagem da porta conduz tantos devaneios, instaura tantos desejos de vê-la aberta, de abrir o ser, de conquistar estes dois planos: o fechado e o aberto e o seu intermediário – o entreaberto.

A afirmação de que a vida é redonda, pronunciada em épocas diferentes, por escritores diferentes, como Jaspers, Van Gogh, Bousquet, La Fontaine, desperta no fenomenólogo uma indagação acerca da imagem fenomenológica do redondo – “As imagens da redondeza plena nos ajudam a nos congregar em nós mesmos, a nos dar a nós mesmos uma primeira constituição, a afirmar nosso ser intimamente, pelo interior. Porque vivendo a partir do interior, sem exterioridade, o ser não poderia deixar de ser redondo” (1974, p. 508).

Para um sonhador de palavras, que calma na palavra redondo, escreve Bachelard. Como esta palavra “arredonda calmamente a boca, os lábios, o ser do fôlego! O mesmo deve ser dito por um filosofo que crê na substância poética da palavra. E que alegria de mestre, que alegria sonora começar uma aula metafísica, rompendo com todos os ser-lá dizendo: (...). O ser é redondo” (1974, p. 511).

Notas

1. BACHELARD, Gaston. A Poética do Espaço. In: Os Pensadores XXXVIII. 1. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1974.
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2. Aluna do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Letras, da Universidade Estadual do Oeste do Paraná - UNIOESTE, Campus de Cascavel. Orientador: Prof. Dr. Antonio Donizeti da Cruz.
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