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Arneide
Bandeira Cemin Editora: Terceira Margem. Atualmente
podemos observar um aumento na produção acadêmica e não acadêmica[2]
sobre o cipó dos mortos, ou
ayahuasca. Este psicoativo de uso milenar e de origem amazônica é
composto, basicamente, por talos de cipós do gênero Banisteriopsis
(Malpighiaceae), ricos em β-carbolinas (harmina,
tetrahidroharmina e harmalina) (Grob et
al., 1996) fervidos por várias horas ou mesmo dias[3]
e adicionados com dezenas de possíveis misturas vegetais, cada qual com
seus significados medicinais, espirituais e rituais (Ott, 1994). Dentre
estas várias de plantas, Psychotria
viridis (Rubiaceae) e Diplopteris
cabrerana (Malpighiaceae), ambas ricas em dimetiltriptamina, ou
simplesmente DMT, são as principais, tanto por seus efeitos psicoativos e
potenciais terapêuticos quanto por seu valor simbólico (Schultes &
Hofmann, 1992). Embora
presente em grande parte da Amazônia Ocidental, aonde vem sendo utilizada
há milênios por dezenas de grupos indígenas (Luna, 1986), a ayahuasca
é hoje contextualizada - em grande parte dos casos - em relação às
grandes religiões ayahuasqueiras brasileiras (Santo Daime, Barquinha e
União do Vegetal) que a consomem como um sacramento, e possuem um alto
grau de organização institucional. O
presente texto tem como objeto de reflexão o livro da antropóloga Arneide
Bandeira Cemin, "Ordem,
xamanismo e dádiva - O poder do Santo Daime", versão reduzida de
sua tese de doutorado em Antropologia Social (USP) que disserta sobre
aspectos variados de uma das maiors religiões ayahuasqueiras. Com
trabalhos de campo realizados nos grupos mais antigos do culto do Santo
Daime (Alto Santo Rio Branco/AC e Porto Velho/RO), o trabalho da autora
discorre sobre as influências, cosmovisões e aspectos socioculturais que
formaram os grupos em questão, além de conectar o uso da ayahuasca com
os aspectos mais amplos da sociedade brasileira tanto da época da criação
do culto como da atualidade. As
produções antropológicas sobre o consumo desta bebida costumam remeter
tal prática ao xamanismo, mais especificamente ao ameríndio,
diferenciando-o e situando-o num continuum
que possui características próprias e diversas quando vistas em relação
a outras formas de xamanismo que não utilizam plantas alteradoras da
consciência para atingir estados extáticos, por exemplo, que não
realizam, normalmente, práticas características da região em questão
(sincretismos entre esoterismo europeu, catolicismo popular, etc)[4]
ou que não possuem ritos capazes de serem caracterizados como xamanismo
coletivo, onde cada participante seria um xamã em potencial (Couto,
1989). Tais peculiaridades, que são em parte produzidas pelas características
ambientais e sociais do meio em questão, são discutidas por Arneide de
forma a demonstrar que a criação deste culto situa-se num meio sócio-econômico
altamente dinâmico, e que o culto ao Santo Daime não “apareceu”
simplesmente, alheio às peculiaridades locais, mas como resultado de uma
intrincada rede de relações culturais e religiosas. No
caso do Alto Santo, criado no início da década de 30 do século XX no
interior de Rio Branco (AC), a pesquisadora vem mostrar que os modelos
institucionais marcadamente presentes na região naquela época - Exército
e Igreja - permeavam o imaginário daqueles que ali habitavam,
disseminando exemplos de conduta e visões de mundo que vieram a exercer
profundas influências na cosmologia do grupo e, logo, em sua formação e
na construção da identidade grupal. A partir disto, vislumbra-se o papel
da ordem no sistema daimista
como característica do grupo, acompanhada da disciplina
(Exército da Rainha da Floresta),
moral cristã (beatos de Cristo)
e visão xamânica de mundo (“vamos
nós ao vosso reino”)[5],
valores estes que podem ser vistos entrelaçados um pelo outro, e não
separados. Mesmo
que de grande interesse para os estudos da mente humana, química cerebral
e psicofarmacologia[6] (ver Callaway et
al., 1999, por exemplo), o atual paradigma científico parece ainda não
reconhecer o importante papel que o estudo dos usos ritualizados da
ayahuasca (bem como de outros psicoativos) possuem. Questões cruciais
para uma melhor compreensão do uso destas substâncias em geral – como
os aspectos culturais, expectativas e motivações dos indivíduos –
ainda não ganharam grande aceitação por parte do meio acadêmico, ainda
preso aos conceitos biomédicos. No
trabalho de Arneide podemos contemplar a complexidade de significados,
aplicações, identificações e simbolismos associados à ayahuasca
quando a autora discorre sobre as lógicas de organização do grupo (lógica
da casa e da rua), suas
relações com o contexto sócio-econômico local (resquícios de sistemas
de compadrio, trocas, obrigações e dádivas,
entre homens e homens, e entre estes e as divindades) e com a metáfora do
homem-vegetal, onde o membro do
culto buscaria uma maior aproximação com a natureza/divindade/Rainha da
Floresta[7]. Logo,
parafraseando Bucher (1996), não se pode avaliar o consumo de psicoativos
sem se questionar as intenções, valores e expectativas das pessoas
envolvidas, ainda mais quando permeadas por conceitos metafísicos e
espirituais. A antropóloga argumenta sobre estas variáveis de tal
maneira que estas parecem irremediavelmente intrincadas ao consumo da
ayahuasca, aparentemente não podendo ser excluídas do quadro em discussão.
Tal especulação poderia ser ampliada para os psicoativos em geral, e
especialmente para aqueles revestidos de caráter sacramental (vinho
de jurema no nordeste, tabaco
em vários cultos de origem africana,
paricá entre indígenas do noroeste amazônico e, em alguns casos,
mesmo o álcool, consumido em
ritos de algumas linhas de Umbanda, por exemplo). Ao
situar o uso da ayahuasca feito no culto do Santo Daime no amplo contexto
da Religião de Jurupari, a pesquisadora, em sua hipótese, lança idéias
sobre os movimentos realizados pela cultura e religião, ou seja, sua dinâmica
e movimentos adaptativos, além de caracterizar a permanência da
“religião dos índios brasileiros”, que às vezes dribla e outras
vezes complementa visões de mundo presentes em nossa sociedade desde o século
XVI, como o catolicismo popular, a pajelança, o catimbó e outros cultos,
sem se deixar “exorcizar”. Com
os argumentos de seu trabalho, que não é o único que segue esta linha[8],
a autora compartilha de argumentações que fundamentam uma nova maneira
de se lidar com os psicoativos em nossa sociedade, ou seja, um novo
paradigma que discorda do determinismo biológico na abordagem destas
substâncias e que se inspira, dentre outras fontes, numa antiga visão de
mundo que as reverencia e respeita, além de reconhecer como
espiritualmente legítimos os estados mentais capazes de serem
proporcionados por elas, ao invés de simplesmente demonizá-los. Assim,
citando o grande etnobotânico Richard Evans-Schultes que, dentre dezenas
de tribos visitou os Kofán da Colômbia e caracterizou-os como “um
povo onde os psicoativos estão presentes em todos os aspectos de suas
vidas”, pode-se entrever o próprio reconhecimento desta frase em
relação aos grupos estudados por Arneide, às religiões ayahuasqueiras
como um todo e, ampliando-se para outros psicoativos (café, chá-preto,
guaraná, tabaco, álcool, etc), reconhecê-la em nossa própria
sociedade. Bucher,
Richard. Drogas e Sociedade nos
Tempos da AIDS. Ed. UnB, Brasília-DF, 1996. Cemin,
Arneide Bandeira. O poder do Santo
Daime – ordem, xamanismo e dádiva. Ed. Terceira Margem, São Paulo,
2001. Couto,
F.L.R. Santos e Xamãs. Tese de
Mestrado, Universidade de Brasília, Brasília-DF, 1989. Eliade,
Mircea. O Xamanismo e as Técnicas
Arcaicas do Êxtase. São Paulo: Martins Fontes, 2002. Goulart,
Sandra. As raízes culturais do
Santo Daime. Tese de Mestrado, USP, São Paulo, 1996. Labate,
Beatriz C. & Araújo, Wladimyr S. (orgs.). O
uso ritual da ayahuasca. Mercado de Letras, 2ª ed., 2004. Luna,
L.E. Vegetalismo: shamanism among
the mestizo population of the Peruvian Amazon. Studies in Comparative
Religion, Stockholm, Almqvist and Wiksell International, 1986. Ott,
J. Ayahuasca Analogues: Pangean
Entheogens. 1ª ed. Kennewick, WA: Natural Books Co., 1994. Schultes,
R.E. & Hofmann, A. Plants of the
gods: their sacred, healing, and hallucinogenic powers. 1ª ed. Rochester, Vermont: Healing Arts Press, 1992. -
Hoasca
Project (citações não exaustivas): Callaway,
J.C., Mckenna, D.J., Grob, C.S., Brito, G.S., Raynon, L.P., Poland, R.E.,
Andrade, E.N., Mash, D.C. Pharmacokinetics
of Hoasca alkaloids in healthy humans. Journal
of Ethnopharmacology 65 (1999): 243-256. ______.
Airaksimen, Mauro M., Mckenna, Dennis J., Grob, Charles S., Brito, Glacus
S. Platelet serotonin uptake sites
increased in drinkers of ayahuasca. Psychopharmacology (1994) 116:
385-387. Grob,
C. S., D. J. McKenna, J. C. Callaway, G. S. Brito, E. S. Neves, G.
Oberlender, O. L. Saide, E. Labigalini, C. Tacla, C. T. Miranda, R. J.
Strassman, K. B. Boone. Human
psychopharmacology of hoasca, a plant hallucinogen used in ritual
context in Brazil. Journal of Nervous & Mental Disease. 184:86-94,
1996. McKenna,
D. J., Callaway, J.C., Grob, C. S. The
Scientific Investigation of Ayahuasca – A Review of Past and Current
Research. The Heffer Review of Psychedelic Research: 1998 (I):65-77. [1]
Bacharel em Ciências Biológicas - UniCEUB - Brasília-DF, mestrando
em Psicologia – UnB – Brasília-DF. Contato: banisteria@pop.com.br.
SQN 109 Bloco M apto. 204 Asa Norte – CEP: 70752-130 - Brasília-DF.
Fones: 349-8047 / 8132-0382. [2]
Principalmente sites de
Internet. [3]
Encontra-se também a preparação em água fria, deixando o cipó
nesta por longo tempo. [4]
Esta questão é amplamente discutida na tese de mestrado da antropóloga
Sandra Goulart, onde a autora cita, por exemplo, as constatações de
MacRae e outros pesquisadores que observaram uma mudança nos padrões
rituais de curandeiros que, diferentemente de tempos anteriores,
atualmente incorporam novas práticas espirituais em suas cerimônias
(Umbanda, Kardecismo, esoterismo europeu, etc) (Goulart, 1996).
[5]
Referência ao vôo mágico
descrito por Eliade (2002) como sendo uma das principais capacidades
do xamã, com a qual exerceria seu poder para curar e orientar seu
povo. [6]
Os estudos sobre a ayahuasca e a mente humana ainda são relativamente
recentes. Foi realizado em Manaus durante o início da década de 90
do século XX um grande projeto que avaliou, de forma piloto, vários
aspectos (biomédicos, psicológicos, psicofarmacológicos) do uso da
ayahuasca por membros da União do Vegetal: o Hoasca
Project. A referência citada (Callaway
et al., 1999) é
apenas uma de uma série de artigos produzidos a partir deste projeto
multidisciplinar. Ver referências bibliográficas. [7]
Ver Goulart (1996). [8]
Ver Labate & Araújo, 2004.
Revista Eletrônica do
Centro de Estudos do Imaginário
Rafael Guimarães dos Santos
[1]
Resenhas
Entrevistas
Primeiras notas
Biblioteca
Ano de publicação: 2001.
Número de páginas: 269.
Endereço: Rua Sud Menucci, 210 – Vila Mariana
CEP: 04017-080 – São Paulo-SP
Fone (11) – 5573-8139
BIBLIOGRAFIA
CEI - UNIR
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