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"Ordem, xamanismo e dádiva - O poder do Santo Daime"

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Rafael Guimarães dos Santos
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Arneide Bandeira Cemin

Editora: Terceira Margem.
Ano de publicação: 2001.
Número de páginas: 269.
Endereço: Rua Sud Menucci, 210 – Vila Mariana
CEP: 04017-080 – São Paulo-SP
Fone (11) – 5573-8139

 Atualmente podemos observar um aumento na produção acadêmica e não acadêmica[2] sobre o cipó dos mortos, ou ayahuasca. Este psicoativo de uso milenar e de origem amazônica é composto, basicamente, por talos de cipós do gênero Banisteriopsis (Malpighiaceae), ricos em β-carbolinas (harmina, tetrahidroharmina e harmalina) (Grob et al., 1996) fervidos por várias horas ou mesmo dias[3] e adicionados com dezenas de possíveis misturas vegetais, cada qual com seus significados medicinais, espirituais e rituais (Ott, 1994). Dentre estas várias de plantas, Psychotria viridis (Rubiaceae) e Diplopteris cabrerana (Malpighiaceae), ambas ricas em dimetiltriptamina, ou simplesmente DMT, são as principais, tanto por seus efeitos psicoativos e potenciais terapêuticos quanto por seu valor simbólico (Schultes & Hofmann, 1992).

Embora presente em grande parte da Amazônia Ocidental, aonde vem sendo utilizada há milênios por dezenas de grupos indígenas (Luna, 1986), a ayahuasca é hoje contextualizada - em grande parte dos casos - em relação às grandes religiões ayahuasqueiras brasileiras (Santo Daime, Barquinha e União do Vegetal) que a consomem como um sacramento, e possuem um alto grau de organização institucional.

O presente texto tem como objeto de reflexão o livro da antropóloga Arneide Bandeira Cemin, "Ordem, xamanismo e dádiva - O poder do Santo Daime", versão reduzida de sua tese de doutorado em Antropologia Social (USP) que disserta sobre aspectos variados de uma das maiors religiões ayahuasqueiras. Com trabalhos de campo realizados nos grupos mais antigos do culto do Santo Daime (Alto Santo Rio Branco/AC e Porto Velho/RO), o trabalho da autora discorre sobre as influências, cosmovisões e aspectos socioculturais que formaram os grupos em questão, além de conectar o uso da ayahuasca com os aspectos mais amplos da sociedade brasileira tanto da época da criação do culto como da atualidade.

As produções antropológicas sobre o consumo desta bebida costumam remeter tal prática ao xamanismo, mais especificamente ao ameríndio, diferenciando-o e situando-o num continuum que possui características próprias e diversas quando vistas em relação a outras formas de xamanismo que não utilizam plantas alteradoras da consciência para atingir estados extáticos, por exemplo, que não realizam, normalmente, práticas características da região em questão (sincretismos entre esoterismo europeu, catolicismo popular, etc)[4] ou que não possuem ritos capazes de serem caracterizados como xamanismo coletivo, onde cada participante seria um xamã em potencial (Couto, 1989). Tais peculiaridades, que são em parte produzidas pelas características ambientais e sociais do meio em questão, são discutidas por Arneide de forma a demonstrar que a criação deste culto situa-se num meio sócio-econômico altamente dinâmico, e que o culto ao Santo Daime não “apareceu” simplesmente, alheio às peculiaridades locais, mas como resultado de uma intrincada rede de relações culturais e religiosas.

No caso do Alto Santo, criado no início da década de 30 do século XX no interior de Rio Branco (AC), a pesquisadora vem mostrar que os modelos institucionais marcadamente presentes na região naquela época - Exército e Igreja - permeavam o imaginário daqueles que ali habitavam, disseminando exemplos de conduta e visões de mundo que vieram a exercer profundas influências na cosmologia do grupo e, logo, em sua formação e na construção da identidade grupal. A partir disto, vislumbra-se o papel da ordem no sistema daimista como característica do grupo, acompanhada da disciplina (Exército da Rainha da Floresta), moral cristã (beatos de Cristo) e visão xamânica de mundo (“vamos nós ao vosso reino”)[5], valores estes que podem ser vistos entrelaçados um pelo outro, e não separados.

Mesmo que de grande interesse para os estudos da mente humana, química cerebral e psicofarmacologia[6] (ver Callaway et al., 1999, por exemplo), o atual paradigma científico parece ainda não reconhecer o importante papel que o estudo dos usos ritualizados da ayahuasca (bem como de outros psicoativos) possuem. Questões cruciais para uma melhor compreensão do uso destas substâncias em geral – como os aspectos culturais, expectativas e motivações dos indivíduos – ainda não ganharam grande aceitação por parte do meio acadêmico, ainda preso aos conceitos biomédicos.

No trabalho de Arneide podemos contemplar a complexidade de significados, aplicações, identificações e simbolismos associados à ayahuasca quando a autora discorre sobre as lógicas de organização do grupo (lógica da casa e da rua), suas relações com o contexto sócio-econômico local (resquícios de sistemas de compadrio, trocas, obrigações e dádivas, entre homens e homens, e entre estes e as divindades) e com a metáfora do homem-vegetal, onde o membro do culto buscaria uma maior aproximação com a natureza/divindade/Rainha da Floresta[7].

Logo, parafraseando Bucher (1996), não se pode avaliar o consumo de psicoativos sem se questionar as intenções, valores e expectativas das pessoas envolvidas, ainda mais quando permeadas por conceitos metafísicos e espirituais. A antropóloga argumenta sobre estas variáveis de tal maneira que estas parecem irremediavelmente intrincadas ao consumo da ayahuasca, aparentemente não podendo ser excluídas do quadro em discussão. Tal especulação poderia ser ampliada para os psicoativos em geral, e especialmente para aqueles revestidos de caráter sacramental (vinho de jurema no nordeste, tabaco em vários cultos de origem africana, paricá entre indígenas do noroeste amazônico e, em alguns casos, mesmo o álcool, consumido em ritos de algumas linhas de Umbanda, por exemplo).

Ao situar o uso da ayahuasca feito no culto do Santo Daime no amplo contexto da Religião de Jurupari, a pesquisadora, em sua hipótese, lança idéias sobre os movimentos realizados pela cultura e religião, ou seja, sua dinâmica e movimentos adaptativos, além de caracterizar a permanência da “religião dos índios brasileiros”, que às vezes dribla e outras vezes complementa visões de mundo presentes em nossa sociedade desde o século XVI, como o catolicismo popular, a pajelança, o catimbó e outros cultos, sem se deixar “exorcizar”.

Com os argumentos de seu trabalho, que não é o único que segue esta linha[8], a autora compartilha de argumentações que fundamentam uma nova maneira de se lidar com os psicoativos em nossa sociedade, ou seja, um novo paradigma que discorda do determinismo biológico na abordagem destas substâncias e que se inspira, dentre outras fontes, numa antiga visão de mundo que as reverencia e respeita, além de reconhecer como espiritualmente legítimos os estados mentais capazes de serem proporcionados por elas, ao invés de simplesmente demonizá-los.

Assim, citando o grande etnobotânico Richard Evans-Schultes que, dentre dezenas de tribos visitou os Kofán da Colômbia e caracterizou-os como “um povo onde os psicoativos estão presentes em todos os aspectos de suas vidas”, pode-se entrever o próprio reconhecimento desta frase em relação aos grupos estudados por Arneide, às religiões ayahuasqueiras como um todo e, ampliando-se para outros psicoativos (café, chá-preto, guaraná, tabaco, álcool, etc), reconhecê-la em nossa própria sociedade.


BIBLIOGRAFIA

Bucher, Richard. Drogas e Sociedade nos Tempos da AIDS. Ed. UnB, Brasília-DF, 1996.

Cemin, Arneide Bandeira. O poder do Santo Daime – ordem, xamanismo e dádiva. Ed. Terceira Margem, São Paulo, 2001.

Couto, F.L.R. Santos e Xamãs. Tese de Mestrado, Universidade de Brasília, Brasília-DF, 1989.

Eliade, Mircea. O Xamanismo e as Técnicas Arcaicas do Êxtase. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

Goulart, Sandra. As raízes culturais do Santo Daime. Tese de Mestrado, USP, São Paulo, 1996.

Labate, Beatriz C. & Araújo, Wladimyr S. (orgs.). O uso ritual da ayahuasca. Mercado de Letras, 2ª ed., 2004.

Luna, L.E. Vegetalismo: shamanism among the mestizo population of the Peruvian Amazon. Studies in Comparative Religion, Stockholm, Almqvist and Wiksell International, 1986.

Ott, J. Ayahuasca Analogues: Pangean Entheogens. 1ª ed. Kennewick, WA: Natural Books Co., 1994.

Schultes, R.E. & Hofmann, A. Plants of the gods: their sacred, healing, and hallucinogenic powers. 1ª ed. Rochester, Vermont: Healing Arts Press, 1992.

- Hoasca Project (citações não exaustivas):

Callaway, J.C., Mckenna, D.J., Grob, C.S., Brito, G.S., Raynon, L.P., Poland, R.E., Andrade, E.N., Mash, D.C. Pharmacokinetics of Hoasca alkaloids in healthy humans. Journal of Ethnopharmacology 65 (1999): 243-256.

______. Airaksimen, Mauro M., Mckenna, Dennis J., Grob, Charles S., Brito, Glacus S. Platelet serotonin uptake sites increased in drinkers of ayahuasca. Psychopharmacology (1994) 116: 385-387.

Grob, C. S., D. J. McKenna, J. C. Callaway, G. S. Brito, E. S. Neves, G. Oberlender, O. L. Saide, E. Labigalini, C. Tacla, C. T. Miranda, R. J. Strassman, K. B. Boone. Human psychopharmacology of hoasca, a plant hallucinogen used  in ritual context in Brazil. Journal of Nervous & Mental Disease. 184:86-94, 1996.

McKenna, D. J., Callaway, J.C., Grob, C. S. The Scientific Investigation of Ayahuasca – A Review of Past and Current Research. The Heffer Review of Psychedelic Research: 1998 (I):65-77.

[1] Bacharel em Ciências Biológicas - UniCEUB - Brasília-DF, mestrando em Psicologia – UnB – Brasília-DF. Contato: banisteria@pop.com.br. SQN 109 Bloco M apto. 204 Asa Norte – CEP: 70752-130 - Brasília-DF. Fones: 349-8047 / 8132-0382.

[2] Principalmente sites de Internet.

[3] Encontra-se também a preparação em água fria, deixando o cipó nesta por longo tempo.

[4] Esta questão é amplamente discutida na tese de mestrado da antropóloga Sandra Goulart, onde a autora cita, por exemplo, as constatações de MacRae e outros pesquisadores que observaram uma mudança nos padrões rituais de curandeiros que, diferentemente de tempos anteriores, atualmente incorporam novas práticas espirituais em suas cerimônias (Umbanda, Kardecismo, esoterismo europeu, etc) (Goulart, 1996).

[5] Referência ao vôo mágico descrito por Eliade (2002) como sendo uma das principais capacidades do xamã, com a qual exerceria seu poder para curar e orientar seu povo.

[6] Os estudos sobre a ayahuasca e a mente humana ainda são relativamente recentes. Foi realizado em Manaus durante o início da década de 90 do século XX um grande projeto que avaliou, de forma piloto, vários aspectos (biomédicos, psicológicos, psicofarmacológicos) do uso da ayahuasca por membros da União do Vegetal: o Hoasca Project. A referência citada (Callaway et al., 1999) é apenas uma de uma série de artigos produzidos a partir deste projeto multidisciplinar. Ver referências bibliográficas.

[7] Ver Goulart (1996).

[8] Ver Labate & Araújo, 2004.

 

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