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CONSELHO
EDITORIAL
Arneide Cemin
Ednaldo Bezerra Freitas
Valdir Aparecido de Souza
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Resumo
O artigo aborda a relação entre mulher, trabalho
e desenvolvimento, a partir dos resultados de pesquisa de Mestrado onde
analisei a relação Homem/Natureza na
colonização agrícola em
Rondônia. Refere às mulheres que trabalham na
agricultura, entretanto, as conclusões se aplicam a outras
categorias.
Palavras-chave: Gênero,
Imaginário, Tecnoeconomia, Desenvolvimento na
Amazônia.
O problema da pesquisa sobre Colonização e
Natureza (Cemin, 1992) foi perceber o modo pelo qual os agricultores
que vinham de regiões com agricultura mecanizada,
representavam suas relações com a floresta
amazônica. A hipótese era que as
condições ecológicas de
Rondônia modificariam a divisão do trabalho
familiar reduzindo a participação do trabalho
feminino na agricultura. No entanto, a pesquisa evidenciou que o fator
ecológico intervém apenas na primeira etapa do
trabalho que é a derrubada e o preparo da terra para o
plantio, e que o fator mais importante é o modo pelo qual
às transformações
tecnológicas são apreendidas socialmente.
Autores que analisaram o tema, a exemplo de Heredia (1979), ressaltaram
a relação de oposição
entre a casa e o roçado, mas essa
relação não é apenas de
oposição, mas é uma
relação tensa e ambígua, mais
próxima do tipo oposição
complementar. Oposição porque
é a casa que consome o produto do roçado e
complementar porque sendo a casa o espaço
necessário e fundamental é ela que dá
sentido a existência do roçado, e, nesse contexto,
a casa é a representação da
família. Além de ser oposta e complementar a
relação é simétrica,
não é, portanto, nem de superioridade nem de
inferioridade, conforme me esclareciam os colonos: “o
roçado produz e a casa consome, mas se não tem
família não precisa de roça, os dois
são importante igual”. Enfocando essa mesma
questão, Cantarelli (2006) também recusa a
noção de oposição entre a
casa e o roçado por considerar que essa
relação é
“integrada”,
“sistêmica” e
“indivisível”. Pelas mesmas
razões, recusa igualmente a noção de
complementaridade.
Outro ponto de discordância da nossa pesquisa em
relação a Heredia (1979) é quanto ao
significado do homem na família e,
conseqüentemente, na casa. Para a autora, a casa é
o lugar da mulher, mas sendo o homem o provedor da casa, a casa
não é concebida sem a presença do
homem sendo ele a personificação da autoridade
doméstica.
Nossa pesquisa indica que, embora o homem seja a autoridade
máxima, sendo ele quem define o funcionamento das tarefas
domésticas, quem personifica a casa e a família
é a mulher. O que temos é uma
representação social dupla, decorrente da
oposição complementar já citada. De um
lado, é o homem o responsável direto pelo
abastecimento da casa, ele é também o elo de
ligação entre a família e o mundo
exterior à casa. Ao mesmo tempo, um homem sem mulher, um
homem solteiro, mesmo sendo proprietário de um lote e
habitando uma casa igual a todas as outras, é socialmente
desvalorizado. Então, o que atribui valor social ao homem
é a mulher. Ou melhor. É a união
social e biologicamente fecunda, entre o homem e a mulher que constitui
socialmente o indivíduo, instaurando nele uma
espécie de obra socializadora.
O casamento tem uma importância fundamental no contexto
agrário, constituindo-se num rito de passagem para uma fase
adulta e independente da autoridade paterna. Pelo casamento ele se
torna um ser total, e não apenas parte de um todo como na
posição de filho na casa paterna.
Através da união com o elemento feminino ele
é capaz de recriar a relação
primordial, ou seja, a condição
necessária para o surgimento da nova família e
por isso, de nova unidade de produção familiar.
Tratando-se ao mesmo tempo de uma relação de
oposição e complementação,
é uma relação ambígua,
tensa, onde as representações podem apontar ora
para os aspectos de complementaridade, ora para os aspectos de
oposição.
Os processos desencadeados pela divisão do trabalho talvez
sejam os mais reveladores da tensão entre
oposição e complementaridade. O
esforço do homem aplicado à terra é
considerado “trabalho”, a mesma atividade, no mesmo
espaço, quando desenvolvida pela mulher, é
considerada “ajuda”. Mesmo o esforço
feminino aplicado aos espaços considerados femininos, como a
casa e o terreiro, não é considerado trabalho,
sendo designado pela categoria
“serviço”. Então,
não é o ato em si, nem espaço em que o
ato é realizado que são determinantes, mas sim, o
valor social de que são revestidos.
Uma chave importante para a interpretação do
simbolismo que envolve essa questão, foi a
explicação dos colonos de que fazer uma coisa
é trabalho, cuidar é serviço. Ora, no
universo de valores do campesinato tradicional quem faz a casa, o
terreiro, o roçado, e os filhos são os homens.
Considera-se que eles desencadeiam o processo criador e que a mulher
entra com a parte complementar, de preservação e
cuidados.
O homem constrói a casa ela a embeleza e cuida-a
cotidianamente. O homem derruba a mata original e limpa o terreno aonde
se implanta a casa e o terreiro. A mulher cuida da
manutenção do mesmo, carpindo-o e varrendo-o
às vezes diariamente, ornamenta-o com flores e abastecendo-o
com plantas medicinais. Quanto ao roçado, cabe ao homem
todas as tarefas de preparo da terra para
implantação do roçado, e considera-se
o plantio como tarefa feminina, é ela quem faz a semeadura e
a colheita, atividades consideradas complementares. Por fim,
é o homem quem deposita no interior da mulher a semente que
dará origem a um novo ser.
Vemos então, que fazer uma coisa é trabalho,
atributo masculino, cuidar de uma coisa é
serviço, atributo feminino. As categorias trabalho e
serviço designam diferença e
oposição, mas também
complementaridade. Diz do serviço que ele é uma
atividade leve e portanto, compatível com a suposta
condição biológica da mulher, e que o
trabalho é uma atividade pesada. Mas nossas
observações mostram que na prática, o
argumento naturalista não se sustenta porque
“leve” passa a ser tudo aquilo que a resultante da
tensão entre oposição e
complementaridade conseguir designar por serviço.
Deste modo, não é apenas a
comparação objetiva de dispêndio de
energia física empregada em determinada tarefa, o
determinante do caráter leve ou pesado da mesma. O elemento
determinante resulta da oposição e da
complementaridade. Cada gênero opõe-se ao outro,
esperando obter maior espaço para a
realização de si mesmo, buscando na
oposição a complementação
de si, e dos processos de criação
necessária à reprodução da
unidade familiar de produção. Nesse contexto
é necessário analisar o
contra-imaginário feminino.
Ou seja, se há um imaginário masculino que nega
à mulher o reconhecimento de seu trabalho tornando-a
socialmente um ser dependente e incompleto; o
contra-imaginário feminino procura garantir a
“especificidade feminina”, visando proteger-se da
dupla jornada de trabalho – casa/roçado. Deste
modo, há um confronto explícito ou
implícito para determinar o limite entre o
“trabalho” e o
“serviço”. Quando o
imaginário masculino nega o trabalho feminino ele
não o faz apenas para reproduzir o esquema da autoridade
masculina, mas também por considerar o trabalho feminino
insuficiente.
Isto me pareceu claro ao avaliar a introdução de
tecnologias, mesmo que simples, como é o caso da
“plantadeira” manual. As mulheres foram quase
unânimes em afirmar que haviam deixado de participar do
plantio – trabalho feminino – a partir da
aquisição da plantadeira manual porque
“não entende o jeito de batê
ela”. E aí temos dois dados importantes: o
primeiro diz respeito aos processos de
socialização da mulher que reproduzem
continuamente a interiorização do sentimento de
inferioridade e incapacidade para tarefas ditas complexas. O segundo
aspecto é o uso que a mulher faz dessa
condição de ser “inepto”,
visando preservar-se da extração de
sobre-trabalho, advindo da intensificação do
trabalho na roça provocada pelo uso da plantadeira,
agravando o esforço da dupla jornada casa-roçado.
O problema da inserção da mulher em novos
processos produtivos não é técnico,
é cognitivo, ou seja, é de entendimento, e
portanto, é social. Sendo assim, a discussão
sobre mulher, trabalho e desenvolvimento, implica
em postura crítica das mulheres diante de seu
próprio modo de conhecer e conceber o mundo, e o modo pelo
qual os homens de sua relação conhecem e concebem
o mundo. Isto implica estar atento para a relação
de oposição mas também para a
complementação que se estabelece no interior da
luta social entre o homem e a mulher em todas as
relações de produção das
condições de suas existências, e que
aparece aguda nos processos de divisão social do trabalho.
Enquanto a mulher não romper com os obstáculos
epistemológicos para a construção dos
saberes necessários para a reprodução
ampliada de seu mundo, teremos a percepção
masculina da insuficiência do trabalho feminino e a
resistência feminina em transitar os espaços
técnicos sociais ditos complexos, porque nessa recusa o que
se encontra é um precário e inadequado sistema de
defesa contra aquilo que lhe parece, de modo acertado, ser um aumento e
intensificação de sua jornada de trabalho,
aumento de extração de sobre-trabalho.
Parece, então, que algumas dimensões dessa
problemática devem ser consideradas:
-
O
reconhecimento da luta social entre trabalho e ajuda, onde se coloca de
um lado a desvalorização do trabalho feminino por
parte do homem, relegando-o a coadjuvante; e a postura da mulher que ao
não enfrentar o problema de forma direta, contorna-o,
fechando-se naquilo que a sociedade supõe ser o lugar dela,
tornando o seu trabalho subalterno na recusa da
adoção de processos produtivos ditos complexos;
-
Entender
que o desenvolvimento deve implicar na
inserção do maior número
possível de homens e mulheres nos processos produtivos e que
isso não pode se dar de forma adequada na ausência
dos chamados equipamentos sociais: tais como rede de saúde,
moradia, transporte, habitação e particularmente
acesso à educação, onde se inclui a
educação das crianças desde o
nível de berçário, passando pelo
maternal e as demais séries dos ciclos de 1o. e 2o. graus,
bem como universitário;
-
Compreender
que isso não se dá fora de um
contexto de lutas mais amplas que é a luta de classes, o que
implica dizer enfrentamento do Estado, enquanto gerente dos interesses
das classes dominantes, através da
construção de um saber/poder local, que partindo
do campo, e dos bairros atinjam as esferas municipais, estaduais e
federais. Nesse sentido, considero fundamental a
criação de comitês de mulheres nos
quais os homens participem e
- Verificar
o modo pelo qual as mulheres aparecem nos livros escolares e
nas produções culturais: novelas,
músicas, teatro, folclore, revistas (embora a
produção seja por classe social e por outros
fatores como mulheres que trabalham fora de casa e as que
não trabalham).
Desse
modo, se, como nossa pesquisa indica, a relação
homem/mulher não é apenas de
oposição, mas é de
oposição/complementar, a idéia
não é anular a oposição,
tarefa que me parece impossível, mas ter lucidez acerca de
suas motivações e interesses, potencializando
esse componente estrutural, através de diferentes
níveis de diálogos que, envolvendo as polaridades
masculino/feminino, elucidem a mediação dos
desejos de união e fusão necessários
ao estabelecimento da reprodução
biológica da espécie, que é sempre
produção social, em
condições que tornem a vida mais justa e digna de
ser vivida. Tendo claro que justiça e dignidade
não deve ser entendidas apenas em sua dimensão
simbólica, ou como uma palavra a ser dita meio que
obrigatoriamente, mas concretizada na luta social pelo reconhecimento
do trabalho doméstico e pela sustentabilidade da
união social e biologicamente fecunda entre homens e
mulheres.
É
nesse panorama que vemos a relação entre homem e
mulher enquanto polaridades dialéticas. Ou seja, partindo de
uma discussão sobre as relações
sociais de poder entre mulheres e homens, atinjam as esferas dos
poderes decisórios e das instâncias de
formulação e execução de
políticas públicas municipais, estaduais e
federais. Ao mesmo tempo ao discutirmos desenvolvimento, devemos
considerar a especificidade da mulher na Amazônia:
- Em grande número é chefe de
família ou seu trabalho é fundamental para a
sustentação da família, na
só o trabalho realizado diretamente em casa, pois em geral
ela obtém renda trabalhando para fora em diferentes
atividades;
- Entender que não podemos falar de
mulher, mas de mulheres.
- A Amazônia é diversa, nossas
cidades e suas estruturas sociais são complexas.
- Sendo assim, existem diferentes classes, logo,
diferentes espaços sociais e diferentes modos de ser mulher:
a mulher urbana, a mulher do meio rural, do seringal, a mulher
índia, negra, sulista e aí, também
temos diferenças: a descendente de italianos,
alemães, polacos. As diferentes categorias profissionais:
lavadeiras, costureiras, seringueiras, empregadas
domésticas, médicas, professoras.
- Compreender a Amazônia é
compreender a sua multiplicidade cultural – em sua
dimensão concreta, técnica e também
imaginária. O imaginário amazônico
ainda é um continente desconhecido – muita coisa
foi escrita e encontra-se dispersa em artigos e teses – sem
sistematização e tratamento específico.
- É preciso ver o lugar da mulher no
imaginário social amazônico, nos registros dos
mitos, nos ritos, no folclore, na música, nas
religiões, na política, na ciência.
- Existem múltiplos universos de sentido
na Amazônia e em quase todos eles as mulheres ocupam lugares
sociais como detentoras de saberes diversos: alimentares,
médicos, profissionais, religiosos, festivos.
- Segundo nosso entendimento é urgente
compreender esse imaginário, ou seja, conjunto de imagens
elaboradas coletivamente e que se expressam nas
produções culturais porque essas imagens orientam
o nosso modo de ver e de interpretar o mundo.
- Compreender o modo pelo qual o
imaginário constrói e sustenta
relações sociais de poder e
subordinação é importante para uma
intervenção dialogada e participativa com as
diferentes culturas no momento da elaboração e
execução de programas de desenvolvimento.
- Interessa perceber como a mulher é
vista na Amazônia. Ou, o que é ser mulher na
Amazônia. Empreendimento complexo dado à
diversidade de culturas decorrente dos sucessivos programas de
colonização.
- Dentro da esfera familiar essa questão
não é menos importante para um estado de muitas
migrações, como é Rondônia.
- O que é a mulher local para o migrante?
- como esposa
- como trabalhadora
- como intelectual
- E a mulher local o que espera do migrante e
vice-versa?
- Até que ponto a cultura de origem
influencia a escolha e o tratamento dado aos parceiros?
Ao mesmo
tempo, é necessário trabalhar os movimentos e as
organizações sociais definindo plataformas de
trabalho que viabilizem a inserção feminina em
meios tecnoeconômico, rompendo os obstáculos
epistemológicos que impedem tal
inserção. Para tanto, é preciso
enfrentar a questão da divisão social e
técnica do trabalho nas unidades domésticas e
realizar a crítica do imaginário social que
inferioriza a mulher para o desempenho de tarefas que envolvem
conjuntos sociotécnicos complexos.
Referências bibliográficas
CANTARELLI, Jonnhy. Construindo
a vida: homens e mulheres em família e a qualidade de vida
de camponeses em uma reserva ecológica. In: SCOTT,
Parry e CORDEIRO. Agricultura familiar e Gênero:
práticas, movimentos e políticas
públicas. Recife, Editora Universitária da UFPE,
2006.
CEMIN, Arneide Bandeira. Colonização
e Natureza: análise da relação social
do homem com a natureza na colonização
agrícola em Rondônia.
(Dissertação de Mestrado em Sociologia). Porto
Alegre, UFRGS, 1992.
GARCIA JR. Afrânio Raul. Sul:
o caminho do roçado – estratégias de
reprodução camponesa e
transformação social. Rio de Janeiro,
Marco Zero, Brasília, CNPq, 1989.
HEREDIA, Beatriz Maria Alasia de. A
morada da vida: trabalho familiar de pequenos produtores do Nordeste do
Brasil. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1979.
Notas
1. Professora do Departamento de Sociologia e
Filosofia, Curso de Ciências Sociais e do Mestrado em
Desenvolvimento Regional e Meio Ambiente, da
Fundação Universidade Federal de
Rondônia (UNIR). Pesquisadora do Centro de Estudos do
Imaginário (CEI/UNIR).
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