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A construção da identidade regional na obra do historiador Emmanuel Pontes Pinto

Valdir Aparecido de Souza(1)

Leandro Coelho de Souza (2)


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CONSELHO EDITORIAL
Arneide Cemin
Ednaldo Bezerra Freitas
Valdir Aparecido de Souza

  

RESUMO

Este artigo tem como objetivo apresentar de forma sintética o projeto A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE REGIONAL NA OBRA DO HISTORIADOR EMANUEL PONTES PINTO, que analisa por um viés historiográfico a tentativa de construção de uma identidade regional em Rondônia. Analisando as obras “Caiari, Proto-História e História” e “Rondônia, evolução histórica: a criação do Território de Guaporé” de Emanuel Pontes Pinto, procurou-se apresentar como, na sua obra, ele tenta construir um mito fundador para a região, como são apresentados as populações nativas e como essa historiografia legitima o poder político e econômico das elites regionais.                                                                            

 

PALAVRAS-CHAVE: História Regional, Identidade, Mito Fundador, Memória.

A base principal que norteou o desenvolvimento deste projeto foi minha dissertação de mestrado (Des)ordem na Fronteira, onde foram analisados os vários projetos de ocupação e colonização agrícola, implementados pelo Exército na região de fronteiras do vale dos rios Madeira-Guaporé, no atual estado de Rondônia, entre as décadas de 30 e 40 do séc. XX. Para essa tarefa também contribuiu a leitura da obra A invenção do Nordeste, de Durval Muniz de Albuquerque que, baseado principalmente nas teorias de Michel Foucault, faz um estudo “arqueo-genealógico” que tenta mostrar como foi construída a idéia de Nordeste no Brasil. Partindo desses pontos, propôs-se fazer uma análise das obras historiográficas produzidas sobre Rondônia. Nesse sentido propôs-se analisar mais especificamente como é construído na historiografia a memória, um passado comum, um mito fundador, analisando os vários discursos incoerentes que tentam impor um sentido hegemônico e homogêneo, inclusive a incorporação dos “escombros” nacionais e internacionais na construção da identidade regional; como essa historiografia legitima e perpetua o poder econômico e político das elites locais, e, finalizando, como são apresentados os povos nativos e como se dá a legitimação da invasão da região nessa historiografia.

Após levantamento bibliográfico foi escolhida para ser analisada no primeiro semestre da pesquisa a obra “Caiari, Lendas, Proto-História e História”. Já no segundo semestre foi escolhida para ser analisada a obra “Rondônia, evolução histórica”. Em ambas as obras, para a realização da análise a partir dos objetivos propostos, partimos de um diálogo entre vários autores. Pela densidade da análise proposta, recortamos alguns conceitos a serem abordados.

Segundo a visão de Albuquerque (2001: 24, 25), o espaço e a cultura regional não são elementos que advêm do recorte espacial-territorial. Não há uma “essência regional” no físico, ela é construída historicamente enquanto visão social de mundo. Complementando essa idéia, Souza (2002: 68-71; 79) enuncia que a construção da identidade se dá no cotidiano, na complexidade dinâmica do feixe de relações dos vários atores sociais, elaborada a partir dos conflitos, das lutas de conquista pelo poder; quer nos níveis do econômico, do político, do social e principalmente do simbólico, pois é o imaginário que dá suporte a todas as práticas reais dentro do projeto de hegemonia dos grupos e atores. O regional como o concebemos é uma construção histórica e dialética, que ora incorpora o nacional, ora o local, ora o macroregional, dependendo dos interesses de sobrevivência de seus atores.

Partimos do pressuposto enunciado por Foucault (1984: 49), “A região é produto de uma batalha, é uma segmentação surgida no espaço dos litigantes. As regiões são aproveitamentos estratégicos diferenciados do espaço (...) assim, a região é o botim de uma guerra.” O plano discursivo é a síntese das práticas sociais, portanto, a construção de uma região é o resultado de conflitos entre classes sociais, grupos e etnias. Pensamento semelhante tem Marilena Chauí (2000: 9); em sua análise sobre o “mito fundador”, diz: “(...) é a solução imaginária para tensões, conflitos e contradições que não encontram caminhos para serem resolvidos no nível da realidade.” Porém, afirma Albuquerque (2001: 310): “Não se trata, pois, de buscar uma cultura nacional ou regional, uma identidade cultural ou nacional, mas de buscar diferenças culturais.”

A maior parte do livro “Caiari, Lendas, Proto-História e História”, dedica-se a, através de uma forma fantástica, apresentar lendas sobre possíveis visitas a uma civilização na região amazônica, por parte de navegadores fenícios e hebreus em busca de ouro e madeiras nobres para o império do Rei Salomão. Ele diz que

“Os navegantes fenícios saíam do mar Mediterrâneo pelo estreito de Hércules e rumavam para o Ocidente até o longínquo reino dos Inin ou dos Crentes, que ficava além das grandes ilhas, depois das regiões das calmarias, das tormentas e das correntes, no centro de uma mesopotâmia, em região tropical onde foram erguidas três grandes cidades – Ofir, Tarschisch e Parvaim – e lá eles chegavam depois de muito navegar por um mar de água doce, com inúmeras ilhas e afluentes. (...) Falavam os marinheiros que Manoa, capital desse império sertanejo, era calçado de ouro ‘onde não havia menos de três mil operários empregados na Rua dos Ourives e a suntuosidade do palácio imperial impressionava. A cidade ficava numa ilha formada por um lago’, o paço era de pedra alva; à entrada erguiam-se duas torres e entre elas uma coluna de 25 pés de alto; no seu cimo via-se uma grandiosa lua de prata e presos à suas base com cadeias de ouro estavam dois bois vivos. (...) A rota dos argonautas dos mares externos foi perdida e os cataclismos sumiram com muitas ilhas que lá existiram. As comunicações entre os povos que viviam nos extremos do mundo, foram rompidas. Nunca mais hebreus, fenícios e outros povos tiveram notícias do fabuloso reino dos Inin e de suas cidades de Ofir, Tarschisch e Parvaim. Elas ficaram perdidas até para a História.” (1986: 48-51)

Buscando estabelecer uma cronologia, o autor traça o seguinte esquema: A Proto-História a que ele se refere no título da obra seriam essas viagens fantásticas feitas por povos fenícios e hebreus a uma evoluída civilização de descendência semita na América, civilização esta que extinguiu-se após um “cataclismo” (1986: 108-109). A História se iniciaria com a chegada de portugueses e espanhóis no séc. XVI e com a conseqüente atuação dos bandeirantes. De forma bastante eurocêntrica ele afirma que “(...) o indígena brasileiro regrediu sensivelmente [após o cataclismo que extinguiu a avançada civilização precedente], mas este fato não fez desaparecer a possibilidade de ter abrigado esta região setentrional, antiga civilização, e os vestígios dela aí estão, expressos por um erudito, a desafiar as críticas e conclusões de outros.” (1986: 86).

O autor apresenta o Mal. Rondon como uma espécie de bandeirante e desbravador moderno, o grande herói místico e sábio da região, que teria descoberto uma mina de ouro que teria ligação com a fantástica época das viagens fenícias a qual batizou e registrou como Urucumacuã. Segundo Pontes Pinto, essa era uma mina de difícil acesso, porém de extrema abundância aurífera, de tamanho porte que somente a sua exploração resolveria os problemas econômicos brasileiros da era Vargas. Vargas inclusive teria incumbido Rondon de encontrar a mina e explorá-la para tal fim, porém, misteriosamente, ela nunca mais foi encontrada. Numa clara alusão e reatualização da idéia do Eldorado ele afirma:

Daí a penetração sistemática foi feita pelos seringueiros, caucheiros e poaieiros, com o advento, na região, do extrativismo vegetal, que obteve maior incremento mais para o noroeste. O silêncio secular da selva, desde então, foi quebrado pelos estampidos dos rifles de repetição dos invasores, nos entreveros com os naturais armados de arco e flecha. A prepotência do mais forte, isto é, do mais bem armado e municiado, contra o mais fraco, prevaleceu mais uma vez, naquela luta constante e sem quartel. Estava inaugurado o ciclo do grande genocídio a que o País e a humanidade assistiram, sem reação. Um povo primitivo passou a ser exterminado ferozmente, em holocausto a uma visão bisonha de progresso. O Brasil, enquanto colônia portuguesa, foi atingido por muitos acontecimentos que prejudicaram a sua geografia e sua história. Depois, com o Império, já emancipado política e adminstrativamente, padeceu por falta de legislação adequada que o protegesse contra os assaltos criminosos à sua ecologia invulgar e às criaturas que viviam em estágio selvagem ainda, atrasadas no tempo e no espaço, dentro de suas fronteiras, mas portadoras, naturalmente, de todos os dons que destinguem o ser humano. Ao raiar do século XX, com uma República trôpega, esforçando-se para afirmar-se, nada se fez para coibir a dizimação do nativo, que lutava pela preservação dos seus valores e de seu espaço vital. Ouviu-se, então, no anfiteatro mato-grossense, palco dessa cena deprimente, uma voz firme e autoritária, tentando, embora tardiamente, a pôr termo àquele estado de guerra permanente. – ‘Morrer se preciso for, matar nunca’. Como um profeta, Rondon surgiu neste longes, pregando, também, a boa nova do amor.” (1986: 180)

O que percebemos na leitura de “Caiari, Proto-História e História” é a tentativa constante de seu autor de constituir um passado longínquo, um mito fundador fantástico para a região, que lhe dê importância no cenário histórico universal, por ser palco de riquezas que serviram a um império bíblico. Visando legitimar uma história pomposa e gloriosa, com grandes fatos, personagens e heróis, acima do “primitivismo” dos silvícolas que habitavam a região. Neste sentido é significativa a sua afirmação “Há no Uaupés uma enorme quantidade de sinais rupestres, ... dando evidente testemunho de que aquela região abrigou povos de outras paragens, com uma cultura superior à dos naturais.” A mistificação e heroicização dos “estrangeiros” se dá de forma constante. Como se houvesse a necessidade de se ter heróis “superiores” que legitimem a presença humana na região, pois para o mesmo o nativo é um incapaz. Porém, as suas tese estão fundamentadas em lendas e histórias fantásticas que são apresentadas como tendo validade empírica.

Já na obra “Rondônia, evolução histórica: a criação do Território de Guaporé”, Pontes Pinto se reconhece enquanto pioneiro e desbravador de Rondônia que veio em busca de trabalho, aventuras e justiça. Ao mesmo tempo se diz encantado pela natureza. É impossível ficar indiferente à sua formação, pois como interpretamos, esta se deu de forma aventureira e imprimiu sua visão de história, de identidade e principalmente de uma história regional. Pois ao sair jovem de seu seio familiar e se aventurar como garimpeiro no então território de Roraima, após esse feito para um jovem ter se transferido para a região de Porto Velho e se estabelecido como minerador, seringalista, comerciante e jornalista. Sua narrativa é construída em tom de epopéia a partir de longas viagens dos fenícios e hebreus, percursos que perfaziam três anos entre uma empreitada e outra. Ao se referir a idade moderna, o elemento que ressalta em sua narrativa são as grandes descobertas dos navegadores portugueses e espanhóis.

O subtítulo do primeiro capítulo é: “Conquistadores, Bandeirantes e Povoadores” . Logo abaixo segue: “A conquista do sertão ocidental do Brasil, onde situa-se o estado de Rondônia ocorreu no século XVII, em conseqüência do bandeirantismo originado no Norte e no Sudeste” (Pinto, 1993:1). A partir desse trecho podemos ter uma idéia inicial do lugar de onde o autor se posiciona. A visão de conquista e de povoamento não é a dos indígenas que ocupavam toda a região. A conquista só é possível para um ser exterior que não está inserido em um determinado espaço e que não compartilha da mesma sociabilidade dos que ocupavam este espaço. Assim, a presença das bandeiras rumo ao oeste representa antes de tudo a expansão de uma outra sociabilidade que podemos caracterizar como ocidental e capitalista em contraposição às várias formas de organização social indígenas que aqui existiam.

A visão de conquista expressa no texto pelo autor, revela a matriz de onde parte o seu discurso: do lugar do dominante. Mais precisamente a visão do colonizador europeu.

A seguir, referindo-se aos caminhos fluviais que ligavam o Norte ao Sul da colônia, afirma o autor:

“O nativo que ali vivia, inferiorizado pela sua pobreza material ante os apetrechos ostentados pelos chegantes, era preza fácil daqueles que faziam da preação seu meio de vida e de morte”. “A gente primitiva do chapadão e das baixadas do lado oriental do rio Guaporé, bem como a que se localizava nas margens do rio Madeira e de seus afluentes, tornou-se peça valiosa nos mercados de escravos do litoral”. “O bandeirante encontrou nos seus percursos espaços onde o homem vivia como o nômade da Ásia Menor – identificado por Toynbee - , que após dominar com êxito o problema de adaptação à dura vida nas estepes tornou-se escravo de seu meio, incapaz de qualquer avanço criativo” (Pontes Pinto, 1993:1-5).

Nessa passagem o autor trata claramente o nativo como um ser inferior, a partir de uma visão evolucionista das sociedades. Esta visão serve para legitimar a dominação dos colonizadores sobre estas populações nativas no sentido de que foram dominadas porque eram inferiores materialmente.

Nesse livro os bandeirantes são apresentados como os primeiros desbravadores da região, ou seja, aqueles que “amansaram”, exploraram (escravizaram) e “humanizaram” as populações nativas. Foram os que asseguraram a posse das fronteiras para a coroa portuguesa, instituindo povoações e capitanias e prepararam o terreno para a grande obra civilizatória a partir do séc. XX, com a construção da E.F.M.M. e das Linhas Telegráficas. São eles apresentados como os primeiros heróis do oeste, os primeiros que devem ficar guardados na memória da historiografia . Essa intenção é mais explícita em Caiari, quando Pontes Pinto diz referindo-se ao objetivo do livro:”(...) para mostrar à nossa atual geração o que as outras fizeram, de onde e como vieram” (Pinto, 1986:310).

Embora o autor reconheça que a bandeira “ (...) passou a ser perante o indígena, instrumento de poder e opressão contribuindo de alguma forma para desestabilizar o estilo de vida indígena devido à violência de suas ações.” (Pinto,1993:9), ele vincula a presença do indígena na região enquanto obstáculo para as ações dos bandeirantes. Os Mura, em função do enfrentamento, são denominados por ele de “piratas e bárbaros”.

Em síntese, a escrita de Pontes Pinto tanto em “Caiari, Proto-História e História” quanto em “Rondônia, evolução histórica: a criação do Território de Guaporé” é a tentativa de construção de uma memória de caráter oficial, uniformizador. Ao silêncio ou à memória silenciada e esquecida, contrapõe-se, portanto, uma memória publicada, oficializada. Uma organização dos acontecimentos e das interpretações que se quer preservar. A visão fechada e linear como um processo que tende a levar ao “melhor”, o endeusamento do progresso econômico e social, a marcha para o futuro radioso, faz da história um discurso evolucionista, gerando uma visão preconceituosa do “civilizado” em relação ao “primitivo”. Primando pela objetividade que se identifica com o medo e a fuga do estranho e do diferente, da alteridade. A vontade de barrar e paralisar o tempo busca fazer da história um mostruário de fatos bem acabados e subjugados à lógica racionalizante. Estes ficam presos à cronologia rígida da ordem linear e enquadrados convencionalmente numa estrutura hierárquica, aos gestos e personagens históricos, sendo negados o espaço do processo dialético e do contraditório. Ao colonizado é destinado o lugar do outro mais humanizado, portanto, aquele que deve ser arrancado da natureza, do regime das necessidades para ascender ao patamar da cultura. Mas essa condição de aculturado é também a condição daquele que foi privado de sua cultura, uma alma penada. Este é o pecado original da colonização, ou seja, a desqualificação da cultura do outro.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALBUQUERQUE JR., D. A invenção do Nordeste e outras artes. Recife/S. Paulo: FJN – Massangana/Contexto, 2001

CHAUÍ, M. S. Brasil: Mito fundador e sociedade autoritária. São Paulo: Perseu Abramo, 2000.

FOUCAULT, M. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro, Graal, 1984.

PINTO, E. P. Caiari – Lendas, Proto-História e História. Rio de Janeiro, Cia. Bras. de Artes Gráficas, 1986.

_____.Rondônia, evolução Histórica: criação do Território Federal de Guaporé, fator de integração nacional. Rio de Janeiro, Expressão e cultura, 1993.

SOUZA, V. A. (Des)ordem na Fronteira: ocupação militar e conflitos sociais na bacia do Madeira-Guaporé (30-40). Assis, 2002, Dissertação (Mestrado em História e Sociedade).


NOTAS

1.
Mestre em História e Sociedade pelo Programa de Pós Graduação da Faculdade de Ciências e Letras de Assis - UNESP. Professor Assistente II do Departamento de História e Pesquisador do Centro de Estudos do Imaginário da Universidade Federal de Rondônia Volta

2. Professor de História da Secretaria de Educação de Rondônia – Ex-Bolsista CNPq
Volta

 
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