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ASPECTOS DA CULTURA JUDAICA RESSIGNIFICADOS NO DISCURSO DA IGREJA UNIVERSAL DO REINO DE DEUS: O DÍZIMO


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CONSELHO EDITORIAL
Arneide Cemin
Ednaldo Bezerra Freitas
Valdir Aparecido de Souza

  


Resumo
Este artigo percorrerá, brevemente, a trajetória do pentecostalismo no Brasil e analisará o texto do pastor Natal Farucho sobre o dízimo, que circula entre os fiéis da igreja Universal do Reino de Deus, buscando identificar a ressignificação da cultura judaica.

Palavras-chave: Ressignificação, Pentecostalismo, Cultura.

A sociedade brasileira atravessou nas últimas décadas um processo de modernização, dessacralização e reavivamento religioso. As mudanças que esse processo desencadeou são visíveis: aumento do número de pessoas que se declaram sem religião, crescimento dos adeptos das igrejas pentecostais e diminuição no número de católicos. Sendo assim, uma das características mais marcantes da atual sociedade brasileira é a sua crescente pluralidade religiosa. Em cada bairro de nossas cidades é possível encontrarmos um templo religioso, tanto católico quanto pentecostal ou neopentecostal. O fato de pertencer a uma religião deixou de estar ligado á tradição familiar e passou a ser uma opção livre, como a opção política, própria do homem jurídico que habita uma sociedade democrática. Podemos afirmar que vivemos um verdadeiro fast-food religioso, pois em cada esquina a oferta religiosa se faz presente, ao mesmo tempo em que a presença na mídia das denominações evangélicas é cada vez maior. Esse fenômeno despertou o olhar de estudiosos das religiões e da própria igreja católica.

As denominações pentecostais são várias e com completa autonomia. Portanto, não existe um centro administrativo e organizacional unificado. Mas um dos fatos mais marcantes desse fenômeno é sua transnacionalidade e sua origem norte-americana. O movimento pentecostal originou-se nos EUA durante o século XIX, a partir do encontro da religiosidade negra norte-americana com os movimentos avivalistas protestantes. Já, os protestantes históricos, surgiram na Europa durante o século XVI, a partir das idéias do teólogo Martinho Lutero e do pensador João Calvino. Mas as teses desses dois pensadores, somadas a tradição cultural judaica, sustentam tanto as correntes pentecostais, quanto as protestantes nascidas no século XVI. Portanto, as diferenças entre as denominações pentecostais e os protestantes históricos (luteranos, calvinistas e outras), são mais de origem geográfica e temporal do que doutrinária.

No Brasil, o pentecostalismo jogou âncora na primeira década do século XX. Em 1910, um imigrante de origem italiana Luigi Francescon fundou a Congregação Cristã do Brasil e em 1911 o sueco Daniel Berger fundou a Assembléia de Deus. A entrada das igrejas evangélicas no Brasil é resultado da separação entre Estado e religião, realizada pela proclamação da república em 1889 e consolidada com a elaboração da primeira constituição republicana em 1891. A partir daí, as portas para a competição religiosa estavam abertas. E não demorou para que ambas se espalhassem pelo país. Mas entre os anos 1950 e 1960, os pentecostais ganharam tantos fiéis que se tornaram o maior grupo religioso entre os protestantes. No atual cenário religioso brasileiro, os pentecostais são aqueles que mais crescem e ganham visibilidade, enquanto o número de católicos decaí rapidamente. De acordo com Pierucci (2004), o estado do Rio de Janeiro tem hoje 57,1% de católicos, o Estado de Rondônia 57,5% e Roraima e Goiás, pouco mais de 60%.

O movimento pentecostal é dividido em pentecostais históricos e neopentecostais; uma divisão não aceita por boa parte dos estudiosos das religiões, que vêem um único movimento.

A expansão dos pentecostais no Brasil aconteceu em três fases: a primeira entre os anos 1910 – 1950 (através da Assembléia de Deus), a segunda entre os anos 1950 – 1970 (através da Igreja Quadrangular e Deus é Amor) e a terceira fase a partir do final dos anos 70 (com a Igreja Universal do Reino de Deus). Mas é a partir dos anos 80 que os evangélicos pentecostais ganharam visibilidade no Brasil. Essa visibilidade é decorrente da atuação agressiva e militante, tanto através da mídia, quanto no corpo a corpo. Daí as imagens sobre eles serem variadas, contraditórias e preconceituosas. Mas é fato inegável o seu crescimento numérico. Como nos diz Novaes:

São muitas e contraditórias entre si as imagens sobre os 'evangélicos' que circulam na sociedade. Por um lado, o barulho dos templos incomoda os vizinhos. A exigência de contribuição financeira – o dízimo – é alvo de críticas externas e também é um obstáculo que afasta potenciais adeptos. No dia-a-dia, todos se sentem sujeitos à invasão de privacidade provocada pelos “crentes” que sempre buscam a quem evangelizar. Ninguém está livre de se encontrar com motoristas de táxi tentando evangelizar passageiros ou de ser abordado em uma praça da cidade. Aos “pastores”, geralmente, sem formação escolar e teológica, reserva-se a desconfiança de charlatanismo e de “manipulação” da boa-fé popular. Aos seus seguidores atribui-se ignorância ou certa ingenuidade que – ao fim e ao cabo – desqualifica sua opção religiosa (2001, p.68).

Apesar da desconfiança por uma parte da sociedade em relação aos evangélicos, Novaes afirma que:

... por outro lado e ao mesmo tempo, donas de casa católicas buscam agências especializadas em empregadas domésticas evangélicas. Desempregados em geral se valem de sua filiação religiosa como um atributo positivo a mais na disputa por postos de trabalho. Sabe-se de jovens convertidos que deixaram de beber, de se drogar ou de comercializar drogas e atribuem esta “mudança de vida”, à conversão, ao “aceitar Jesus”. Através de pesquisas chegam notícias de mulheres evangélicas atuando nas favelas e em conjuntos habitacionais, produzindo espaços comunitários, modificando com sua prática cotidiana a cultura brasileira machista. Em igrejas evangélicas funcionam escolas, cursos supletivos, postos de atendimento de saúde. As curas e os exorcismos muitas vezes substituem médicos e psiquiatras. No futebol há atletas de Cristo e outros tantos jogadores dedicando seus gols diretamente a Deus (op. cit.).

A partir do que foi descrito por Novaes, pode-se afirmar que ser evangélico pode atestar, perante a sociedade, um comportamento idôneo. Por isso, muitas denominações pentecostais e neopentecostais atuarem dentro de penitenciárias. Também fica claro que as igrejas evangélicas atuam em locais onde se verifica uma ausência do poder público nas áreas de saúde, educacional e de segurança.

Sendo assim, é na periferia das grandes cidades brasileiras que as igrejas evangélicas se fazem mais presentes e onde continuamente obtém seus fiéis. Os problemas característicos dessas regiões são o desemprego, o alcoolismo, o uso de drogas, o tráfico e toda uma gama de problemas de convívio social que essas questões acarretam. Pois é na periferia que se concentra grande parte da sociedade brasileira que está á margem da sociedade de consumo. Novaes, vai nos dizer que:

Situações de desemprego e miséria geram sofrimento de impotência e favorecem ao alcoolismo. O uso de bebida exacerba o “machismo” que se manifesta através da violência física dos homens contra suas mulheres e filhas. O alcoolismo pode produzir ainda outros dramas familiares quando mulheres alcoólatras deixam de representar um “porto seguro” naqueles tantos lares onde não se pode contar com a presença masculina. De certa forma, o alcoolismo atinge a dignidade de todo segmento social e estigmatiza – por extensão – os pobres em geral( 2001, p.69).

Nesse contexto os dois extremos da sociedade que mais são atingidos são as mulheres e as crianças. Estudos realizados por Machado (2001) atestam que mulheres vítimas da violência urbana e familiar, com idade entre 31 e 50 anos eram as que mais procuravam os templos evangélicos e os gabinetes pastorais para relatar seus sofrimentos e buscar soluções. A conversão é decorrente dessa busca.

É nesse cenário que se observa a forte atuação dos evangélicos. Aqueles que aceitam Jesus, que se convertem e mudam de vida, deixam de beber, de se drogar e passam a reorientar suas vidas, tanto pessoal, quanto familiar.

Já em 1985, em um artigo publicado sobre a carreira dos 'bandidos', no bairro periférico carioca chamado Cidade de Deus, Zaluar escreveu: 'as poucas histórias de regeneração que ouvi contar passavam por sessões de cura em igrejas pentecostais ou uma conversão radical e dramática à igreja dos crentes, o que implicava o abandono das coisas do diabo (as festas, a bebida, o samba, a umbanda, os amigos assaltantes, a arma de fogo, etc...)'. Anos depois a imprensa passou a divulgar casos de conversão de chefes de áreas do tráfico. O número 1 da Revista Vinde, 'A revista Gospel do Brasil', de novembro de 1995, por exemplo, destacou em sua capa a seguinte matéria: 'José Carlos Gregório, o Gordo, ex-líder do comando Vermelho, conta como se converteu (Novaes, p. 70).

Nos cultos pentecostais são vários os testemunhos de pessoas que dizem ter abandonado o tráfico, terem sido curados de doenças físicas e psíquicas e também terem obtido a solução dos seus problemas de ordem material e familiar. O lugar que as novas denominações religiosas ocupa na vida das pessoas è diferente do lugar ocupado pelas religiões tradicionais, principalmente o catolicismo. Atualmente a religiosidade passa a ser um importante elemento de auto-ajuda e solução para os problemas cotidianos. E o testemunho dos fiéis, sobre as graças obtidas, acaba funcionando como importante veículo de conversão do outro.

Uma das igrejas pentecostais que mais cresce no Brasil é a Igreja Universal do Reino de Deus. Sobre ela, Mariz afirma que:

Nessa igreja, cada dia da semana há um culto direcionado para um tipo de problema específico. As orações feitas nos cultos são chamadas “correntes” : inicia-se na segunda-feira com a corrente da prosperidade; na terça com a da saúde; na quarta, a busca do Espírito Santo; na quinta, corrente da família; na sexta, corrente da libertação; no sábado, outra vez a corrente da prosperidade; e no domingo, a corrente do louvor (2001, p. 34).

Em todos os cultos, de acordo com Mariz (2001), há forte referência ao demônio e pedidos de ofertas aos fiéis.

A IURD realizou uma verdadeira invenção ritual, ao combinar o peso da palavra que caracteriza o protestantismo com a forte ritualização que é característica do catolicismo (Mariz, 2001). Em todos os cultos, o demônio (identificado como um Orixá ou uma entidade) é mencionado como culpado pelas dificuldades econômicas e pelos problemas familiares e de saúde física e psíquica. Essas dificuldades e problemas são solucionados através de correntes de libertação ou exorcismo de entidades e orixás da umbanda e do candomblé, dessa forma, os pastores reafirmam a existência e interferência de forças sobrenaturais da tradição afro-brasileira. Os cultos são divididos em 3 partes: a primeira parte é de orações e pedidos a Deus, fala-se nesse primeiro momento dos problemas da vida (financeiros e familiares) e são realizados exorcismos ou libertações. No segundo momento louva-se a Deus e no terceiro momento é realizada a cobrança do dízimo.        

Ao falarmos da invenção ritual realizado pela Igreja Universal do Reino de Deus, devemos considerar que o novo sempre esta assentado na ressignificação. Nas palavras de Steil:

... tecemos a singularidade do nosso modo de ser e de viver com os fios que herdamos do passado. Estes, por sua vez, embora possuam cor, consistência e espessura próprias não impedem nossa criatividade ao tecer o presente, dando-lhe uma nova configuração e forma. Os dogmas, as crenças e os valores herdados do passado são estruturas de longa duração que se revelam nos discursos e rituais de determinados grupos sociais. Essas estruturas são os fios que permitem a construção de uma identidade e fornecem as categorias para os homens representarem o mundo e a si mesmos (2001, p.14).

A concepção de memória coletiva que nos interessa é descrita por Davallon:

(...) para que haja memória, é preciso que o acontecimento ou saber registrado saia da indiferença, que ele deixe o domínio da insignificância. É preciso que ele conserve uma força a fim de poder posteriormente fazer impressão. Porque é essa possibilidade de fazer impressão que o termo “lembrança” evoca na linguagem corrente (1999, p. 25).

Nessa perspectiva, os dogmas, as crenças e os valores só podem ser vistas como memória coletiva se saírem da insignificância. Para isso, eles são reconstruídos e ressignificados no decorrer da história. Visto assim a memória coletiva vem de longe é ressignificada e permite a um grupo social representar o mundo e se representar no mundo. Aí reside sua singularidade.

A invenção discursiva da igreja Universal do Reino de Deus pode nos servir de objeto para um melhor entendimento da apropriação e ressignificação da memória coletiva. O texto “Dízimo, o que significa?”, de Natal Farucho nos serve de material para essa reflexão.

Farucho faz as seguintes considerações sobre o dízimo:

Literalmente a palavra dízimo é uma derivação do termo hebraico azar e significa dez ou décima parte. Mas, este termo quando é analisado pela raiz, quer dizer, de acordo com essa raiz, que quando entregamos a Deus a décima parte do que recebemos mensalmente ou dos lucros de um negócio ou empresa, estamos, ao contrário do que se pensa, sendo agraciados com as bênçãos de Deus, recebendo prosperidade financeira, crescendo, acumulando bens e enriquecendo (...). Deus promete também repreender, através do dízimo, o demônio característica da miséria: o espírito devorador. Esse demônio tem sido o grande vilão na vida de inúmeras pessoas na face da terra. Não há um país que esteja livre dele. Até as nações consideradas de primeiro mundo estão cheias de mendigos e pessoas que vivem na mais terrível miséria, pois sua área de atuação é a vida financeira, causando prejuízos, desemprego, dívidas, falências, estragos nos bens e males diversos... (2002, p.8)

Analisando esse discurso religioso podemos afirmar que ele confere ao dízimo um caráter mágico, sagrado e revelador dos poderes e dons do Espírito Santo. Para isso ele se apropria e ressignifica o sentido da palavra dízimo presente na cultura judaica. Os termos “literalmente” e “derivação do termo hebraico”, presentes no texto, conferem um sentido verdadeiro e objetivo a palavra dízimo, dando a ela uma origem e significado próprio. A ligação com a cultura hebraica fica garantida com essa afirmativa. A ressignificação da palavra dízimo é estabelecida com os enunciados “analisando pela raiz quer dizer acumular, crescer, enriquecer”. Esses enunciados apontam para um outro sentido da palavra dízimo. Conferem a ela um sentido econômico e materialista. Dá indicação que o ato de entregar ou contribuir com o dízimo permite a todos receberem recompensas. Eliade (2001) deixa claro que o sagrado pode manifestar-se em pedras ou arvores, por exemplo. Mas não se trata de venerar a pedra como pedra, nem a árvore como árvore, mas elas são adoradas porque revelam algo, revelam uma força que é superior ao homem. Dessa forma o sagrado se manifesta através do dízimo, numa relação simbólica de “dar e receber”. Nessa manifestação o homem é agraciado com prosperidade financeira e acúmulo de bens. Na tradição protestante luterana, a prosperidade assim obtida é vista como sinal da benção de Deus para com o fiel. Em todas as religiões podem ser observadas manifestações do sagrado, pois elas comportam um simbolismo: revelam ao homem um poder superior. Diante desse poder “revelado” o homem reconhece sua “inferioridade” e “dependência”.

Bibliografia

ACHARD, Pierre et al. O Papel da Memória. Tradução de José Horta Nunes. Campinas, Pontes Editores, 1999.

ELIADE, Mircea. O Sagrado e o Profano: a essência das religiões. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2001.

FARUCHO, Natal. Como Ser Um Dizimista Fiel. Rio de Janeiro, editora gráfica universal, 2002.

MACEDO, Bispo. Doutrinas da Igreja Universal do Reino de Deus. Rio de Janeiro: Editora Gráfica Universal, 2000.

MARIZ, Cecília Loreto. Pentecostalismo, Renovação Carismática Católica e Comunidades Eclesiásticas de Base: uma análise comparada. Petrópolis: Editora Vozes, 2001.

PIERUCCI, Antonio Flávio. Secularização e declínio do Catolicismo. In: Sociologia da Religião e Mudança Social (Beatriz Muniz de Souza e Luis Mauro Sá Martino, org). São Paulo: Editora Paulus, 2004.

STEIL, Carlos Alberto et al. Religião e Cultura Popular (Victor Vicente Valla, org). Rio de Janeiro: DP& A Editora, 2001.

WILGES, Irineu. Cultura Religiosa: As Religiões no Mundo. Petrópolis: Editora Vozes, 2002.

Notas

1. Antonio Carlos Lopes Petean; Mestre em Ciências, área de concentração em Psicologia, pela USP/campus Ribeirão Preto e licenciado em história pela UFOP. E-mail: acpetean@usp.br.
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