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Labirinto - Revista Eletrônica do Centro de Estudos do Imaginário

  

BORBOLETAS, HOMENS E RÃS


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CONSELHO EDITORIAL
Arneide Cemin
Ednaldo Bezerra Freitas
Valdir Aparecido de Souza

  


Resumo
A condição humana emerge da relação paradoxal entre vivo e não vivo, natureza e cultura, inato e adquirido. O corpo do humano está tatuado pelas lembranças das experiências corporais de outras espécies. A partir sobretudo das pesquisas do etólogo Boris Cyrulnilk, das hipóteses sobre o vivo de Henri Atlan e das idéias de Edgar Morin, o artigo discute os fracos limites entre a biologia e o domínio dos sentidos e da simbolização que fundamentam o processo cognitivo e a consciência do corpo na espécie humana.

Palavras-chave: Complexidade, natureza e cultura.

Meias Verdades

Desde que nascemos, temos escutado, aprendido e vivenciado tudo de forma parcial, pela metade. Nada de estranho nisso, uma vez que a incompletude, o inacabamento, a parcialidade e a falta parasitam e constituem a condição humana. Nisso reside a tragédia e a aventura do viver que são também, para Edgar Morin, a tragédia e a aventura do conhecer. Ao lado da procura do sentido, do “por quê”, do “como funciona”, do “onde começou”, caminham respostas provisórias e prováveis, nunca respostas inequívocas, absolutamente satisfatórias, completas e incontestáveis.

Se essa é uma forma de descrever o processo cognitivo, podemos acrescentar que cada avanço de conhecimento é uma sutura no sempre esgarçado tecido da compreensão do mundo. A evolução do conhecimento é uma repetição do movimento oscilatório entre responder perguntas e formular novas questões. Essa compreensão do conhecimento habita hoje o coração da ciência e, em certa sintonia com a consciência do provisório e da parcialidade das explicações, o conhecimento científico tem se afastado cada vez mais da convicção de que o que dizemos a partir das teorias e interpretações corresponde à realidade tal qual ela é. Sabemos hoje que uma tal convicção corresponde a confundir a descrição da realidade com ela própria. Desde 1901 essa ilusão da ciência ruiu, e foi Niels Bohr quem disse não ser possível afirmar 'isto é assim', mas, 'é isso que podemos dizer de tal ou qual fenômeno'.

Desse modo, o que até o final do século XIX não era percebido com clareza ou não era enunciado pelos cientistas deve hoje, cada vez mais, ser anunciado, problematizado, explicitado e dito em alto e bom som: todo conhecimento sobre qualquer fenômeno é uma construção a partir de indícios, pistas, sinais. Conectados entre si, segundo regras de proximidade, ressonância ou mesmo causalidades, esses indícios passam a construir, juntos, uma representação que oferece sentido ao fenômeno do qual se fala, mas que, nem por isso é o próprio fenômeno, nem o substitui. Além do mais, como o erro parasita a aptidão para conhecer, somos muitas vezes levados a fazer conexões entre indícios e pistas que nada têm entre si. Essa atitude mental resulta no que Umberto Eco chama de super interpretação (1993). Sejam mais propriamente sociais ou mais estritamente físicos, os fenômenos aos quais imputamos um sentido estão sempre para além ou para aquém de sua descrição e representação.

A esse respeito, inúmeras considerações e importantes desdobramentos têm constituído o campo das reflexões epistemológicas na ciência. E se a aspiração de abraçar a totalidade dessas reflexões equivale a um projeto fadado ao fracasso, podemos pelo menos identificar alguns dos limites e armadilhas que cercam o ato de pensar e conhecer.

Limites do biológico, do sociológico, do antropológico
        
Muitas vezes percebemos e pensamos o mundo pelo mecanismo mental da simplificação. Por vezes nossa forma de pensar opera uma redução e nos fixamos em apenas um dos domínios do fenômeno do qual falamos. A fragmentação disciplinar operada pela ciência, isto é, a falta de comunicação entre os conhecimentos dos especialistas, oferece excelentes exemplos a esse respeito. O cérebro humano, foi muitas vezes descrito como um conjunto de mecanismos eletroquímicos. Outras vezes, e por outras lentes teóricas, foi reduzido a um operador da repetição de episódios arquetipais psíquicos arcaicos. Quanta redução da sociobiologia ao afirmar uma analogia desmedida entre nossa constituição genética e a dinâmica da sociedade! Um biologismo exarcebado se fixou no determinismo do código genético, tatuado em nós, é verdade, mas esqueceu que a genética é, sobretudo, uma promessa que, a depender de múltiplos fatores, repetirá o padrão previsto ou inaugurará o percurso da deriva e da metamorfose. E isso, mesmo considerando as condições pré-bióticas que antecede ao biológico propriamente dito, ou seja, ao domínio da vida.

Em o Paradigma Perdido (1979), Edgar Morin circunstancia o estado da arte do conhecimento científico a respeito dos estudos sobre a vida e o homem por volta dos anos 40 e 50 do século passado. Para ele, "a biologia estava encerrada no biologismo, ou seja, uma concepção fechada no organismo, tal como a antropologia no antropologismo, ou seja, uma concepção insular do homem" (1979). Esses dois sistemas de idéias epistemologicamente fechados acabaram por abrir-se em decorrência da assimilação de noções emergentes na Teoria da Informação (Shannon) e na Cibernética (Wiener), por volta de 1948 e 49. A biologia passa então a recorrer a princípios organizacionais desconhecidos na química: informação, código de mensagens, programas, etc. Por outro lado, a partir sobretudo dos anos 60 a idéia de máquina como uma totalidade organizada e não redutível a seus elementos constitutivos, a noção de sistemas que se auto-organizam apesar de e com desordem, ruído e erro (Von Neumann, Von Foerster, Henri Atlan), a idéia de acaso organizador e de catástrofe (J. Monod, René Thom) e, enfim, a idéia de autopoesis como processo de autoprodução permanente (H. Maturana) acabam por redimensionar a compreensão dos sistemas vivos, da vida e do homem. Esse panorama da história do conhecimento científico deve ser considerado um avanço na medida em que, nas palavras de Morin "não é somente o homem que não pode ser reduzido à biologia, é a própria biologia que não pode ser reduzida ao biologismo (1979, p. 55).
        
Nada melhor para falar da deriva e da não repetição, do que as hipóteses sobre o aparecimento da vida na Terra. A emergência da vida no planeta demonstra um “ponto de bifurcação”, expressão de Ilya Prigogine para falar da ocorrência de novos acontecimentos, da emergência de situações novas, inaugurais. A idéia da configuração genética como uma promessa que conjuga determinismo, incerteza e probabilidade (sobretudo hoje, na era da bio-engenharia) abala os pilares de um biologismo fechado e enfraquece o pensamento redutor na área das ciências biológicas. Ao afirmar a provocativa hipótese do tênue limite entre o vivo e o não vivo, as pesquisas do médico e biofísico Henri Atlan se constituem uma verdadeira revolução copernicana nos estudos sobre a vida. “Contrariamente ao que se concebia antigamente, as fronteiras entre o vivo e o não vivo tendem a se apagar e é difícil decidir sobre o lugar onde devemos colocar uma barreira, ou mesmo se existiria alguma” (2000). É evidente que a superação de um biologismo fechado e redutor requer reativar a consciência de que não viemos do mesmo mas do outro. Essa consciência, que segundo Sigmund Freud correspondia a uma ferida narcísica, provocou um abalo sísmico na concepção da condição humana e expõe hoje, novamente, sua cicatriz.

Agora sabemos que a emergência da condição humana se deu pela deriva e bifurcação do 'outro'. Sabemos também que a vida que nos habita e constitui surgiu do não vivo. Para Atlan “não podemos mais aceitar a visão tradicional de uma barreira absoluta criando uma divisão entre, de um lado, corpos puramente materiais e, de outro, corpos vivos e conscientes animados por uma alma imaterial”(op. cit.). Entretanto, como em todo momento de mudança paradigmática, a metamorfose do pensamento instituído não é fácil. E isso porque, conforme Atlan, “a idéia secular que nós próprios fazemos do homem repousa precisamente sobre essa divisão” (idem). Como poderíamos nós, sem enormes resistências, nos perceber em simbiose com o mundo dos sistemas não vivos, se ainda hoje usamos a expressão os homens e os animais, quando com mais propriedades, deveríamos usar os homens e os outros animais?

Mas não é só nas ciências da vida que o pensamento opera por simplificação ou redução. A biofobia, isto é, o horror a tudo que lembra o biológico, marcou durante muito tempo o conhecimento nas chamadas ciências humanas e sociais. Um sociologismo, um economicismo, um historicismo e um antropologismo primaram em explicar a cultura, a sociedade e a condição humana de forma cindida e esquizofrênica, quase sempre isolando-as das contigências biológicas. Uma anatomia perversa esquartejou o sujeito: homo-economicus, faber, um produto do passado, um singular étnico, um autômato simbólico, uma entidade mítica. Essas fraturas e 'determinações em última instância' desenharam um homem esquadrilhado por territórios sem ligação, um sujeito disforme e mal remedado, uma cocha de retalhos com costura grossa. Ao se olhar refletido no espelho da ciência da fragmentação disciplinar, um Frankenstein se deu conta do poder da palavra que cria a coisa e tomou consciência do castigo da decifração impossível que lhe foi imposto. Quem sou: natural ou social? Individual ou coletivo? Mítico ou racional? Um ser de liberdade ou um escravo? Produto ou produtor? Um ser genérico ou singular? Um experimentador de quimeras e utopias ou uma ferramenta da razão? Inato ou adquirido?

Na trincheira das disjunções e oposições inconciliáveis só restava aos cientistas dos últimos séculos optar, operar por exclusão, secundarizar dimensões, principalizar outras, reduzir, reduzir, ... E, se para o Frankenstein diante do seu espelho as perguntas foram enigmáticas, para o cientista, esse demiurgo da criação do mundo pelas palavras, as respostas foram sendo construídas segundo expressões emblemáticas que sintetizam, lamentavelmente muito bem, uma parte da história da ciência: Freud disse, Marx disse, Piaget disse, Darwin disse, Morin disse, Paulo Freire disse...

Será? Será que Freud, Durkheim, Darwin, Piaget, disseram com tanta ênfase argumentos que foram posteriormente cristalizados como metaexplicações? Por que a divisão entre um Marx humanista, outro economista, outro filósofo, outro historiador? Por que a separação entre o velho e novo Marx? Entre o Marx das “Cartas à Índia” e o de “O Capital”? E ao Marx leitor de Balzac, como chamaremos? Como é possível que pensadores que ultrapassaram seu tempo, porque pensaram a cultura humana de maneira multidimensional, puderam ser transformados em mentores de receitas disciplinares sobre o mundo e o homem? Somente pela armadilha do pensamento redutor, armadilha que nos parasita a todos (na ciência e fora dela), foi possível operar certos equívocos, reduções e simplificações.

Tomar a parte pelo todo, separar a teoria da prática, o saber do fazer, o sujeito do objeto e o corpo da mente, são alguns desses equívocos cognitivos que acabaram por comprometer nossa forma de entender o mundo e a nós mesmos.

Certamente é possível acionar outros pólos cognitivos para conhecer e viver, para projetar e fazer acontecer formas de pensar e viver a condição humana. E se não é possível afastar por completo as armadilhas do pensamento redutor, assumamos o paradoxo do conhecimento humano sempre incerto, parcial, inacabado. Talvez assim, a ciência se comprometa mais com o aqui e agora de que tanto fala Michel Maffesoli e abra mão do 'evangelho da salvação' prometido para um futuro que nunca chega. Assumir a ciência como uma leitura do mundo parcial e como uma meia verdade é um passo importante para alimentar o diálogo com outras meias verdades contidas nas constelações de saberes outros, não científicos. Entretanto, mesmo que a parcialidade parasite o ato cognoscente é no ponto de interseção entre natureza e cultura que está o desafio da compreensão do mundo.

Ao obstáculo epistemológico que apregoa de certa forma ingênua a apreensão da realidade (expressão fortemente repetida nos receituários de pesquisa), agregamos um outro. Somos um corpo que pensa, sente, elabora construções narrativas, cria sentidos. É esse mesmo corpo que pensando-se a si próprio constrói sua representação. Essa armadilha do conhecimento prefigurada na auto-representação e da qual podemos fugir, apenas parcialmente, sugere que devemos sombrear, acertar o domínio do parcialmente secreto, do indecifrável, do indizível. Longe da obsessão da decifração, podemos, como Dietmar Kamper, nos afastar da tirania do conceito que pensa decifrar a realidade, e também do encarceramento da definição, essa forma excessivamente prosaica que violenta a poesia da vida. “Definir”, diz Kamper, “é sempre uma forma de matar” (1997, p. 13). É pois, no interior do paradoxo do corpo que fala do corpo, da vida que fala da vida, das idéias que avaliam as idéias que teremos que nos mover. É do interior desse paradoxo que o cientista abre mão do compromisso com o conceito, para atar os nós do compromisso com a vida que, nas palavras de Kamper, "é mais um imperativo do que um conceito" (idem, idem).

Na cosmologia dos conhecimentos sistematizados pela cultura humana, diversas e distintas constelações de saberes se interpõem entre o sujeito e o mundo e se constituem em verdadeiros filtros ou senhas cognitivas. E isso porque nunca vemos o mundo de forma direta. Vemos sempre através de representações. Esse fato tem, pelo menos, duas implicações: uma do ponto de vista exclusivamente humano, outra que diz respeito a qualquer animal.

No primeiro caso, o da percepção humana, podemos dizer que cada um de nós vê e compreende o mundo, a sociedade e a nós mesmos, a partir de nossas convicções, teorias, valores, mas também, e simultaneamente, através de uma configuração enzimática que oscila entre o ocasional e um estado cognitivo mais permanente. A diológica entre o ocasional e o permanente define os 'humores', estados bioquímicos que ordenam ou desordenam nossa sintonia perceptual no nível individual ou coletivo e estruturam parte de nossas aptidões cognitiva. É por isso que diante de uma mesma realidade, diferentes indivíduos podem operar várias concepções distintas e 'criar' ou construir diferentes realidades. Por outro lado, estados bioquímicos alterados provocam percepções igualmente alteradas a que chamamos delírios e distúrbios da percepção. Exemplo disso é a intervenção médica nos hospitais psiquiátricos, com a administração de drogas capazes de “regular” distúrbios psicossomáticos. Uma descompensação hormonal, taxas alteradas de lítio ou a absorção de uma substância alucinógena provocam perturbações e mudanças de percepção. Uma baixa produção de endofina, tanto quanto a inibição da cadeia dos neurotransmissores que excretam a serotonina podem nos deixar por assim dizer de mal com a vida, o que certamente afeta nossa forma de ver o ambiente do qual fazemos parte. Tal como na atividade sexual, estados cognitivos deserotizados inibem ou dificultam agenciamentos perceptivos mais intensos e polifônicos.

Esses argumentos em nada se aproximam de um equivocado biologismo que se obstina em afirmar a preponderância da estrutura biogenética sobre as construções culturais. Entretanto, a repulsa a um tal reducionismo não deve desembocar num sócio-culturalismo afóbico à qualquer lembrança da nossa condição biológica. A esse respeito é exemplar as observações do etólogo Boris Cyrulnik acerca das atitudes dos cientistas diante das pesquisas que tratam do inato e do adquirido. “Não sei estabelecer a diferença entre a ideologia da ciência, a ideologia na ciência e a ideologia dos cientistas. Todavia, sempre que uma descoberta biológica confirma as teorias do inato é imediatamente recuperada por aqueles cujo desejo é confirmar a desigualdade dos indivíduos e das raças. Pelo contrário, assim que uma experiência mostra como o ambiente consegue modificar os nossos metabolismos, os teóricos do meio apoderam-se dela para consolidar os respectivos sistemas e desejos de manipulação política” (Cyrulnik, 1993, p. 71).

A separação entre o inato e o adquirido ou mesmo a relação de predominância ou precedência de um sobre o outro acondicionam-se nos limites do paradigma da simplificação que opera, sobre a necessária distinção, a oposição e separação, e nunca a dialogia sobre o que é distinto e diferente. A esse respeito, uma ciência da complexidade reafirma com propriedade a estranha e inexata estatística de que se vale Edgar Morin para falar da condição humana: somos 'cem por cento natureza e cem por cento cultura'. Tal expressão, que fere frontalmente as regras da gramática da percentagem, exprime com exatidão a idéia de uma auto-organização (sempre aberta, imprevisível e inacabada), ou mesmo de uma simbiose (sempre conflitual e que supõe necessariamente perdas e ganhos), entre o que se convencionou chamar os domínios do biológico e do cultural.

Se partimos desse patamar para problematizar nossa condição de uma natureza culturalizada ou de uma cultura naturalizada, é correto afirmar também que uma desordem simbólica radical altera a percepção e a representação dos fenômenos. Sabemos bem como estados emocionais intensos e em geral não esperados, desorganizam momentaneamente nossa relativa estabilidade perceptiva e distorcem a compreensão dos fatos. Os apelos emocionais motivados por cenas de filmes que nos tocam excessivamente; momentos traumáticos que vivemos; situações absolutamente indescritíveis de prazer intenso ou de violência, para citar alguns desses estados emocionais, desordenam nossos padrões cognitivos habituais e nos deixam transtornados, fora de si, nas nuvens, agitados, imobilizados, perdidamente apaixonados ou sem concentração para qualquer coisa que nos afaste desse êxtase. Ampliando esse argumento é necessário acrescentar que a construção do conhecimento comum, tanto quanto do conhecimento científico, não escapam dessa dinâmica cognitiva. Nossas ideologias, crença, teorias e valores estão sempre transpassados por uma rede significante de vivências e fatos inesquecíveis que operam de maneira inconsciente e são como que tatuagens invisíveis, apesar de vivamente operativas. A esse respeito são elucidativos dois acontecimentos na vida de Edgar Morin. Um mais pontual, descrito e discutido por ele mesmo e outro mais estrutural, que emerge de uma reflexão a respeito da relação entre o homem e parte de sua obra.

O primeiro acontecimento está descrito no livro "Para sair do século XX" (1986). Lá, entre as páginas 23 e 25, Morin relata o fato de ter presenciado uma colisão entre um carro e uma motocicleta, numa avenida de Paris. A descrição do acidente é bastante matizada no livro, mas, para os fins que nos interessa aqui, sintetizo o que se segue. Morin viu, e se dizia testemunha, do fato de que um carro bateu numa motocicleta quando, na realidade, foi o motoqueiro que, avançando o sinal, operou a contravenção e daí o choque entre os dois veículos. Se perguntarmos porque Edgar “viu” o oposto do que ocorreu, podemos responder: motivado por uma dosagem desmesurada de emoção, ele mobilizou convicções, ideologias, e crenças anteriores a respeito de outras situações, o que o tornou vítima da armadilha da percepção. Por conseqüência, sua retina não enviou a informação correta, ou, se a enviou corretamente, o seu cérebro “viu” o acidente a partir de um conjunto de valores e atitudes que caracterizam a nossa sociedade e contra os quais o observador Edgar se coloca: o fato de que o grande sempre explora o pequeno, de que a sociedade capitalista se funda da desigualdade das condições de vida em favor dos mais poderosos, etc., etc. Nesse caso, houve uma transposição de premissas e explicações do âmbito de uma concepção ampliada do mundo, para o domínio pontual de um fenômeno. A distorção da percepção, o 'erro ocular' se deu impulsionado pelo momento da violência do acidente.

Um certo estado de espírito que produz satisfação, contentamento, prazer, mas também os estados de fúria, rebeldia e descontentamento estão sempre na raiz de todo conhecimento. É pois a partir de estados emocionais que produzimos mundo-visões, compreensão do mundo, teorias e interpretações dos fenômenos. Daí porque, a tomada de consciência de que pulsão, emoção e razão caminham juntas, pode propiciar ao sujeito do conhecimento uma certa alquimia mental capaz de transformar as pulsões de morte em pulsões de vida; a ira e o descontentamento em proposições harmonizadoras e mobilizantes; as situações traumáticas, em ferramentas do conhecimento.

Esse argumento permite fazer alusão ao acontecimento cognitivo, dessa vez para problematizar o par autor-obra. Volto a Edgar Morin, para situar uma importante referência entre as várias contingências psico-afetivas de sua vida em relação a grande parte de sua obra. A referência é a seguinte: Edgar tinha nove anos quando morreu sua mãe Luna Beressi, fato que só veio a saber alguns dias depois por seu pai, Vidal, enquanto o pequeno “Minou” brincava do lado de fora do cemitério Père Lachaise. Conta Morin (1994), como passou a chorar apenas na sua privacidade – em sua cama, debaixo dos cobertores – e nunca em público. Essa situação traumática não passou em branco na construção de seus modelos mentais de dialogar com os fenômenos da cultura.

Foi certamente à dor intensa e a incompreensão da morte prematura de Luna, sua mãe (referência feita por ele próprio, várias vezes em sua obra) que o levou, anos mais tarde, a investigar e refletir sobre o tema da morte, como um domínio epistemológico importante para a compreensão da cultura, do surgimento da arte e do imaginário, tanto quanto para entender a condição de emergência e complementaridade entre a consciência objetiva e consciência subjetiva nos humanos.
        
Não fosse por essa traumática emoção causada pela dor, sentimento da falta, surpresa da perda e, acima de tudo, pelo segredo da morte de sua mãe que teve o gosto amargo da traição, Edgar Morin não teria escrito O homem e a morte ou, o teria feito mesmo assim, mas motivado por outra obsessão cognitiva ou emoção fundamental.

O que importa reter dessa referência é o fato de como o sujeito do conhecimento é sempre impulsionado por um sentimento e por uma estrutura organizacional da sua psique, quando empreende qualquer investimento cognitivo, mesmo que disso não tenha consciência. As representações que fazemos emergir os fenômenos, tanto quanto aquelas que nos permitem imputar sentidos ao mundo, estão sempre intoxicadas pelos 'humores' bioquímicos das experiências culturais vividas.

Para além do humano

Mas não é somente a espécie humana que vê o mundo através de representações. Para compreender uma certa semiótica da condição do vivo necessitamos incluir o sapiens-demens no domínio maior do qual faz parte. Se pois, temos em conta um conjunto maior de animais, o domínio das representações como senha de acesso ao mundo exterior ganha mais destaque. Observemos, pela descrição de Cyrulnik, as linguagens significativas de animais diferentes, diante de uma mesma realidade, quer dizer, diante de um mesmo mundo exterior. “Suponhamos que o homem vê uma rua cheia de casas com passeios cheios de passantes e uma calçada atulhada de automóveis. Uma mosca no mesmo lugar, no mesmo momento, não habita o mesmo mundo. Os significantes biológicos não são os mesmos para ela. Com seus grandes olhos facetados, vê amplos obstáculos brancos, a que o homem chamam “casas”, justapostos a massas negras que fazem vento, a que o homem chama “carros”. Ficará, certamente, cativada por um bocadinho de proteínas podres a que o homem chama “bocado de carne jogado fora”, mas que, num mundo de moscas, é um objeto portador de significados loucamente enfeitiçadores. Um molusco, na mesma rua, habitaria um mundo de sombras secas mais ou menos claras e de profundidades mais ou menos palpáveis”(Cyrulnik, 1999, p. 22).

Com base nesse exemplo, dirá Cyrulnik que a semiótica não se reduz ao tratamento de códigos e mensagens. É fundamental ordenar as informações para compor uma representação, uma vez que “o que o animal percebe já é uma representação”.

Todo animal percebe o mundo de acordo com a construção do seu próprio sistema nervoso. “A partir do cérebro sensorial, a percepção do mundo já é seletiva: o sujeito escolhe as informações que melhor convêm ao seu equipamento biológico”. (Cyrulnik, 1993, p. 46). Nessa escolha do que melhor convém a um determinado 'equipamento biológico', se funda a diversidade dos sistemas significativos nas diferentes espécies animais. O estímulo preferencial do gato é a diferença de velocidade. O da abelha é a cor. O da coruja é o som. O do morcego, os ultra-sons. Nada estimula mais uma rã do que uma gota d'água. Ora, no homem a complexificação dos estímulos que lhes dizem respeito desafia tanto os estudiosos da etologia humana, quanto pesquisadores de outros domínios que falam da condição sapiental-demencial da espécie. É o próprio Cyrulnik quem alerta sobre o destino que faz com que o homem seja diferente de uma rã, que, por sua vez, é diferente de uma borboleta: “o homem engendra um meio composto pelas suas representações sensoriais, feitas de imagens, e depois verbais, que estruturam o seu destino de homem e não de borboletas”. (Cyrulnik, 1999, p. 13).

Desse ponto de vista, se não nos é estritamente necessário, nem tampouco suficiente conhecer o campo semiótico que faz de uma rã, uma rã, e de uma borboleta, uma borboleta para problematizar o domínio sócio-cultural e representacional dos humanos, é importante ter em vista uma referência matricial no que tange aos fenômenos da vida e do conhecimento, e também às formas diferenciadas de representação e percepção do mundo em diferentes animais.

É preciso ter em conta além das distinções, às convergências entre os indivíduos da espécie humana e deles com outros indivíduos de outras espécies. Por isso, falar da consciência do corpo no humano, sem contextualizar o campo mais vasto das experiências da vida animal é secundarizar a dinâmica da existência corporal em outras espécies, e tal abordagem tem as marcas do pensamento simplificador. Uma compreensão mais totalizadora sobre a contingência simbólica do corpo deve reconhecer um conjunto de dispositivos, dinâmicas e processos que, dispersos em outros animais, encontram no sapiens-demens as condições favoráveis para emergir de maneira interconectada e convergente, mesmo que tais emergências se pautem sempre pela dinâmica tensional. Daí porque não basta o conhecimento filogenético da nossa espécie, sendo igualmente importante conhecer os fragmentos de outras historias corporais que nos precederam no tempo e que nos parasitam, mesmo que sob novos patamares de reorganização, sem dúvida mais incertos e abertos porque mais complexos.

Esse é o motivo pelo qual Edgar Morin, em sua obra, retornará várias vezes à noção de Mac Lean de que o cérebro humano não só é portador de um néo-cortex responsável pela racionalidade, mas também herda do cérebro do mamífero a afetividade, e do cérebro do réptil o cio, a agressão e a fuga. É a essa constituição simbiótica do cérebro, a esse cérebro tri-único, que Morin recorrerá, insistentemente, para discutir o paradoxo da condição humana, da vida em sociedade, da cultura e da construção do sujeito, tanto quanto para falar da produção do conhecimento e da ciência (Morin, O método v.1, 2, 3, 4).

A história da nossa espécie tem, no corpo, um lugar privilegiado da lembrança da história de outros corpos não humanos. Não que a historia de nosso corpo e da nossa cultura seja o somatório das experiências reptílicas e mamíferas, acrescidas da razão e da consciência reflexiva. Nem muito menos uma amálgama homogêneo desses três domínios da experiência (cio, afetividade e razão). Trata-se aqui, mais propriamente, de afirmar o paradoxo do humano pela relação tensional e instável entre as “três faces de um mesmo cérebro” conforme argumenta E. Morin em O Paradigma Perdido (1979, p. 131-133). Tendo por referência outras bases epistemológicas, o neurobiologista Jean-Didier Vicent reafirmará o mesmo argumento de que a espécie humana partilha, com outros animais de essências vitais comum. Em entrevista concedida a Guitta Pessis-Pasternak, afirmará Vicent: “o que faz o homem não é somente o tamanho do néo-cortex, mas o fato de que o resto também se encontra lá. Refiro-me aos “humores” fundamentais que regulam as paixões que se encontram tanto no escargô do mar, na levedura de cerveja, como no ser mais evoluído”. (J. D. Vicent, apud Pessis-Pasternak, 2001, p. 205)

Faz sentido portanto subsumir a compreensão do humano no domínio mais ampliado da etologia animal, desde que entendamos por etologia “o estudo do repertório comportamental que caracteriza uma espécie e sua maneira de viver num dado meio”, como quer Cyrulnik. “Já não se trata de separar o homem da natureza e de o opor ao resto dos seres vivos: trata-se, pelo contrário, de lhe atribuir o seu lugar no que é vivo e de tornar observável como a semiotização dos sentidos lhe permite afastar-se, gradualmente, de um mundo impregnado no percebido, para habitar um outro mundo enfeitiçado pelo desapercebido”. (Cyrulnik, 1999, p. 30). Entretanto, longe de nos espelharmos numa rã ou num morcego e, distante do artifício da analogia, devemos compreender nosso corpo como simultaneamente a repetição e a distinção, a proximidade e o distanciamento, a renovação e a transcendência em relação a experiências de outros corpos que nos precederam na história da vida. Aqui o artifício adequando é sempre a comparação, nunca a analogia, assevera Cyrulnik. “Os animais nos oferecem o artifício comparativo que fornece a tomada de consciência de porque agimos como agimos. Isso é fundamental para a compreensão da espécie, uma vez que não podemos pensar em nós mesmos em termos científicos. Experimentemos dizer: 'esta noite estou triste porque a secreção das minhas catecolaminas baixou um pouco'”. (Cyrulnik, 1993, p. 15). A impossibilidade de auto-percepção do sujeito cognoscente assinalada por Cyrulnik, se situa, evidentemente, no limite da relação antagônica e complemantar entre o biológico e o cultural, entre o químico e o psicoquímico, entre a natureza e cultura.

Uma tal impossibilidade cognitiva pode ser problematizada também em relação ao processo de conhecimento de forma mais lata. Desse modo, toda produção de saber requer, necessariamente a exo-referência como condição mesma de explicar e compreender o endógeno. Assim é que, entendemos pelo artifício do lá fora, o que se processa no aqui dentro, e isso porque o universal e o particular se engendram pela dialógica da unidimensionalidade humana. Em outras palavras, se não podemos dizer “hoje estou triste porque estou secretando pouca catecolaminas” podemos observar que o que ocorre com os outros é passível de ocorrer conosco. Em síntese, na impossibilidade cognoscente da qual fala Cyrulnik em relação ao sistema humano perceber-se a si próprio, por si só, pode estar, em parte, o nó górdio do processo de conhecimento. Só posso me perceber pelo conhecimento exterior, pelo sentido que empresto a determinada dinâmica que ocorre fora de mim. Quer dizer: 'se ele morre, eu vou morrer também', 'se ele padece das dores da paixão, saberei eu que sofro de amor quando tal dor me acometer'. Igualmente: se tenho conhecimento de que a redução da dopamina ou de lítio provoca os estados depressivos, cuido eu, aos primeiro sintomas, de aferir num laboratório como andam as minhas taxas...

Esse fato, que traz embutido o problema de uma epistemologia fundamental talvez permita reatar os elos que separam os sentidos do eu e do outro. O corpo que conhece a si, conhece por intermédio do outro passando o outro a ser, portanto, uma extensão do eu, o lugar onde o sujeito ao se ver refletido, se reconhece, em fato ou em potencial. Certamente essa forma de falar da natureza do processo cognoscente se distancia dos prontuários teóricos do relativismo que defende a lógica unitária da diferença e da singularidade extrema. Ao contrário, o que se discute aqui são as bases de uma natureza do conhecer que supõe um fraca distinção entre o eu e o outro, à partida, o que impossibilita a auto-percepção sem a presença do que está fora, do outro. É por isso que a condição corporal e o corpo para se conceberem como tal, precisam do outro corpo para operar uma recursividade cognoscente.

De outra parte, para falar da consciência do corpo é necessário lembrar que o longo e complexo processo epigenético da espécie humana enfrequece a hipótese de que há um ponto zero a partir do qual surge um corpo que se vê e se sente como tal. Distante da ciência e fazendo uso fortemente das metáforas, essa concepção da emergência pontual da consciência aparece, por exemplo, na versão bíblica da origem do mundo. Quando Deus cria o primeiro homem, de forma imediata e após a modelagem do seu corpo, ele lhe sopra o espírito. Adão passa nesse momento a ter consciência do seu corpo tanto quanto o conhecimento sobre sua finalidade. E é justamente porque Adão quebra as regras da finalidade corporal imposta pelo demiurgo, que o corpo ganha novo sentido a partir de então. Dar-se-ia assim a emergência da espécie humana pelo nascimento do corpo. É interessante observar que mesmo na narrativa bíblica (como de resto em qualquer dispositivo mítico marcado pelo magnífico excesso da síntese) a passagem para uma segunda consciência do corpo exemplifica a ambivalência da existência corporal: o corpo que antes era uma expressão do criador, uma companhia para que o demiurgo não se sentisse só, passa a ser, com a transgressão da regra, um corpo simultaneamente para o trabalho e para o prazer; um corpo ao mesmo tempo real e virtual que padece da condição de finitude, mas transcende a morte pela repetição da reprodução da espécie.

Se há uma consciência do corpo sobre si mesmo a ser delineada e perseguida, a identificação dessa consciência requer uma compreensão mais humilde da condição humana. A condição humana é uma contingência da vida que se expressa pelo corpo. Sendo assim, o corpo é um fragmento da dinâmica da vida que, ao mesmo tempo em que o constitui, dele se utiliza como um dos elos da teia da vida. Tudo depende da representação que temos ou que tenhamos do corpo, da existência corpórea, da condição humana. “Se nos treinarmos a pensar a condição humana como um corpo capaz de produzir um mundo virtual e de o habitar sentindo-o realmente, o corpo, o meio ambiente e o artifício serão concebidos como um conjunto funcional: um indivíduo poroso, penetrado por um meio sensorial, que estrutura o artifício”. (Cyrulnik, 1999, p. 14). É essa condição de porosidade que permite reatar a ligação entre natureza e cultura, quer dizer, entre a matéria viva e o campo semiótico de sua expressão.

A cosmogonia do corpo

Voltemos ao mito de Adão destacando três elementos fundamentais – o paraíso, o pecado original e o castigo. A partir daí pensemos sobre a hipótese de que a consciência do corpo é a lembrança e a reatualização da cosmogonia da vida e da morte. E isso, tanto nos territórios míticos quanto nas fabulações da ciência.

Sabemos que a versão original do mito bíblico descreve o paraíso como o lugar onde o homem não padecia de necessidades, onde não havia miséria. Fala também da transgressão da regra pelo fato de Eva e Adão comerem, por sugestão da serpente, o fruto proibido, o que constitui o pecado original. E, por fim, descreve a expulsão do casal do Paraíso, como castigo pela desobediência ao criador. Essa síntese da narrativa bíblica não nos acrescentaria nada, se não fosse a reinterpretação radical de dois filósofos alemães: Schelling, no início do século XIX e Dietmar Kamper no final do século XX.

Kamper problematiza a expulsão de Adão e Eva do Paraíso. Seguindo o mesmo caminho de Schelling ao imprimir valor positivo ao pecado original, (para ele a fonte de florescimento de toda cultura) dirá Kamper que Adão fugiu do Paraíso. “Afinal de contas, o Paraíso deveria ser um lugar entediante...” (1997, p. 21). Acontece que esse mesmo desejo de liberdade e de falta, e esse ato de fugir de um lugar chato e entediante, vêem acompanhados de várias maldicões divinas. Dirá Deus a Adão: “você comerá seu pão com o suor do seu rosto, até que volte a terra, pois dela foi tirado. Você é pó e ao pó voltarás” (Gênesis, 3, 19). Essa dura sentença cria simultaneamente o trabalho, o corpo para o trabalho e o corpo para a morte. Entretanto, ela é mais desafiante e perversa no caso do destino projetado para a mulher. Além das “dores do parto” promete Deus que “a paixão arrastará a mulher para o marido que a dominará”. (Gênesis 3, 21). Ora, os prazeres do sexo estarão doravante, no caso da mulher, ligados à dor. E mais: a paixão e a dominação caminharão, nessa representação sempre juntas, como se fossem uma espécie de lei da gravidade amorosa que atrai os corpos para sujeitar os sentimentos. Dessa forma, o denso paradoxo das condições que permitem a emergência do corpo, quer dizer, o nosso nascimento como espécie, é gestado e reatualizado permanentemente por uma certa cosmogonia da qual é impossível escapar.

Como sabemos, a idéia de cosmogonia diz respeito entre outras coisas, a um sacrifício cósmico. Nessa acepção, a criação de formas e matérias só se dá por meio de uma modificação de uma energia anterior e primordial. Ora, se consideramos o paradoxo da narrativa bíblica, (liberdade como sujeição ao trabalho, mortalidade e dor) podemos dizer que a maldição e as profecias descritas equivalem ao sopro do criador que permite jorrar em nós uma consciência igualmente paradoxal. Assim, o sacrifício cósmico da condição corporal engendrará uma consciência que se alimenta ao mesmo tempo da liberdade e da sujeição. A dinâmica da unidualidade e dialogia expressa pelo par liberdade-sujeição, acaba por excretar ontem como hoje, um corpo ciente de que a astúcia de enganar aos deuses desemboca no trabalho como castigo. Numa síntese exuberante dirá Dietmar Kamper: “A liberdade do espírito e do intelecto foi adquirida ao preço da não liberdade do corpo humano”. (Kamper, op. cit. p. 22).

Como se fosse para repetir o mito, outras configurações do saber, outras representações, descrevem a mesma cosmogonia tatuada na história do corpo humano. Se pudéssemos falar de uma ciência da natureza, diríamos que o nascimento da idéia de corpo nos humanos, está ligada ao débito impagável que o homem contraiu com todas as outras matérias e sistemas vivos. A cosmogonia do corpo, isto é, o seu nascimento, se dá por uma mudança de direção no processo de acumulação de conhecimento da espécie humana. Como sabemos, todos os outros animais possuem corpo; se valem dele para desempenhar as funções de sobrevivência, reprodução e delimitação de território. Cuidam do próprio corpo e protegem os corpos de seus filhotes. Alguns desses animais cuidam ritualisticamente do corpo morto de um dos seus, como fazem, por exemplo, os elefantes. Esse débito impagável, gerador de uma falta ansiogênica fundamental é o que faz com que, na espécie humana, a vida e a consciência do corpo operem um ponto de bifurcação, uma mudança de direção rumo a uma maior complexidade.

Gestado e tecido numa metamorfose dolorosa que abriga mutilação e perda, luta e sacrifício, repetição e desregramentos, o nosso corpo é um coágulo de sentidos que retêm, mas ultrapassa, as lembranças mais arquetípicas acumuladas pela experiência corporal de outras espécies animais. No campo tensional entre reter e ultrapassar padrões de lembranças, o corpo dos humanos reatuliza e ritualiza a dialógica entre ganhos e perdas. O que se ganha em complexidade e simbolização equivale a perdas no domínio dos instintos. É por isso que a condição humana, demasiadamente humana, ou seja, o afastamento excessivo e a negação de tudo o que é supostamente estranho ao homem, pode significar a bestialização dos instintos. Distanciando-nos excessivamente das raízes não humanas, não sabemos por vezes como domesticar, de forma parcimoniosa e simbólica, atributos que concernem a vida. Somos, por isso, às vezes, promotores de atrocidades societais inimagináveis. As aberrantes explosões de violências sociais de toda ordem na sociedade contemporânea, deixa entrever a dificuldade de ritualização e simbolização da agressividade animal. A dinâmica entre perdas e ganhos, entre instinto, pulsão e razão que está nos fundamentos de nossa existência corporal, se constitui por meio de um movimento pendular, instável e aberto. Trata-se de um jogo compensatório (aumento de simbolização/regressão dos instintos) longe do equilíbrio e da harmonia plena que constituem o domínio da morte. Ao contrário, tudo evoca tensão, tendência ao desequilíbrio, à relação conflitual e à posterior reorganização em novos patamares de complexidade crescente ou de regressão.

É preciso dizer também que a consciência do corpo tem seu nascimento no âmbito de um processo ansiogênico e perturbador. Ela aparece como uma maneira de dialogar, de se contrapor e de resolver o fenômeno da finitude da espécie: a morte individual e do grupo. A consciência do corpo é pois uma outra forma de falar do horror da morte.

Os estudos que tratam da infância de nossa espécie, assinalam que por volta de 1,3 milhões de anos, na Ásia Oriental, os homens conservavam os crânios dos mortos, envolvendo-os numa camada de argila. Esse rito permite inferir que os homens dessa época já pensavam o corpo como a morada do espírito e creditavam ao cérebro a sua parte mais nobre.

Em "O homem e a morte" (1997) Edgar Morin constrói os patamares epistemológicos para compreender o papel da idéia de morte na cultura humana. Para ele, o enfrentamento do fenômeno da morte permitiu a emergência e o nascimento de uma dupla consciência. De uma parte, a consciência da morte, a certeza da finitude do corpo. De outro, a negação dessa certeza pelo surgimento de um fabuloso imaginário que cultua a transcendência e a imortalidade. Como a dupla face de uma mesma moeda, essas duas experiências cognoscentes que se opõem e se complementam gestaram um corpo capaz de se perceber ao mesmo tempo finito e infinito, real e imaginário, perecível e transcendente, natural e cultural. É no interior do paradoxo entre a certeza da morte e sua negação que os humanos construirão sobresentidos que os distinguirão de outros animais. Isso porque, segundo Morin, a espécie humana é a única para a qual a idéia da morte está presente durante toda a vida; a única que crê na sobrevivência ou renascimento dos mortos; a única que faz de tudo para retardar a morte. E, se esse sentimento de horror a morte emerge de forma diversa de cultura para cultura, não deixa de ser verdade que a idéia de morte parasita a construção da vida social, desde as tecnicidades até os ideários míticos, científicos ou religiosos.

É pois do interior do campo de interseção entre natureza e cultura que é possível problematizar o domínio do propriamente humano, para compreendê-lo como um fenômeno de hipercomplexidade que emerge no campo tensional entre outros sistemas que lhes precederam no tempo e ainda o parasitam, mesmo que sob novas condições. Toda reconstrução do exclusivamente humano é uma simplificação, uma teleologia antropocêntrica, um narcisismo sem sustentação. Fazer o caminho epistemológico da cultura para natureza talvez permita uma compreensão mais complexa da natureza humana. A partir daí poderemos compreender a relação dos campos de sentido que fazem de uma rã, uma rã, de uma borboleta, uma borboleta, de um humano, um humano.

BIBLIOGRAFIA REFERIDA

ATLAN, Henri. Viver e conhecer. In: CRONOS. Revista do Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais. n. 4. V. 1. Complexidades I: caminhos. UFRN. Natal, 2002 (prelo).

ECO, Umberto. Interpretação e superinterpretação. São Paulo: Martins Fontes, 1993.

KAMPER, Dietmar. O trabalho como vida. São Paulo: Annablume, 1997.

MORIN, Edgar. O paradigma perdido: para uma nova antropologia. Rio de Janeiro: Zahar Editores, (2. Ed.), 1979.

____. O homem e a morte. Rio de Janeiro: Imago, 1997.

____. Para sair do século XX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.

____. O método I – a natureza da natureza. 3. ed. Lisboa: Publicações Europa-América, 1997.

____. O método II – a vida da vida. 3. ed. Lisboa: Publicações Europa-América, 1999.

____. O método III – o conhecimento do conhecimento. Lisboa: Publicações Europa-América, 1996.

____. O método 4 - As idéias. Porto Alegre: Sulina, 1998.

____. Vidal e os seus. Portugal: Instituto Piaget, 1994.

CYRULNIK, Boris. Do sexto sentido: o homem e o encantamento do mundo. Lisboa: Instituto Piaget, 1999.

____. Memória de macaco e palavras de homem. Lisboa: Instituto Piaget, 1993.

VICENT, Jean Didier. A biologia das paixões ou como opera o cérebro hormonal. In:.PESSIS-PASTERNAK, Guitta. A ciência:deus ou o diabo. São Paulo: Unesp, 2001.

Notas

1. Doutora em Ciências Sociais (Antropologia) pela PUC-SP. Professora dos programas de Pós-graduação em Educação e Ciências Sociais da UFRN. Membro da Associação para o Pensamento Complexo. Coordenador do Grupo de Estudos da Complexidade - Grecom - Natal/UFRN. E-mail: calmeida17@hotmail.com.
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