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Centro de Estudos do Imaginário

Labirinto - Revista Eletrônica do Centro de Estudos do Imaginário

  

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As imagens da infância: um estudo sobre poesia e imaginação
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Sueli Aparecida da Costa[1]
Antonio Donizeti da Cruz[2]

 


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CONSELHO EDITORIAL
Arneide
Bandeira Cemin
Ednaldo Bezerra de Freitas
Valdir Aparecido de Souza

  

RESUMO:  O objetivo deste texto é analisar como o poeta João Manuel Simões incorpora e resgata em seus poemas as imagens da infância, percorrendo o universo imaginário numa viagem em versos. 

João Manuel Simões nasceu em Mortágua-Portugal e, há anos, vem servindo  a cultura e a literatura paranaense (Curitiba). Possuidor de uma linguagem de referencial erudito, sua poesia tem se destacado por um fazer poético que transforma as palavras em étimo das imagens.

A lírica de Simões apresenta uma precisão vocabular, pela riqueza das imagens, pela síntese poética, pelo teor de intertextualidade e vocação poética transportados para a poesia na arte de construção da linguagem poética. Tais características povoam a poesia de Simões com várias marcas da modernidade, buscando atingir o estado de síntese pela escolha das palavras e das imagens que aguçam a imaginação do leitor.

A imaginação é o vetor da criação poética, ela embriaga qualquer criação artística de qualquer época ou “período” literário. A grande missão do poeta consiste em atrair essa força poética que se acha contida no imaginário e convertê-la em descarga de imagens. A experiência poética é criação do homem pela imagem e pela linguagem; é o abrir das fontes do ser. Por meio da imaginação o ser humano consegue dar forma as coisas mais tênues e se auto-afirmar enquanto ser no mundo. O poema apresenta-se como possibilidade aberta de significação, já que ele só se anima ao contato, à participação de um leitor que, durante a leitura, dará margem à imaginação, movimentando as imagens poéticas e alimentando-as com suas experiências. Sem leitor a obra só existe pela metade. O poeta cria o poema, mas “o povo, ao recitá-lo, recria-o. Poeta e leitor são dois momentos de uma mesma realidade” (PAZ, 1982: 47).

A imaginação constitui a faculdade de formar imagens que ultrapassam a realidade, é fonte de equilíbrio e cria a fantasia poética, fazendo do poeta/leitor sonhador de palavras. O processo imagético e onírico é perene no ser humano e, ao longo da história da arte, a imaginação faz parte do processo criador. Poesia e imaginação são dotadas de uma magia encantatória que desperta no homem a cosmologia da imagem, transformando as palavras em símbolos que transmitem sonhos e memórias partilhadas.

No dizer de Bachelard, é pela imaginação que se dá forma às imagens, pois na fenomenologia do devaneio poético, qualquer imagem, por mais simples que seja, é capaz de revelar o mundo. A poesia é o fio condutor das imagens e da imaginação; ela suscita a tomada de consciência dos fenômenos que ocorrem na alma do sonhador. O poeta está na condição de sonhador que, ao sonhar, oferece mundos que nascem de uma imagem cósmica elevada à potência máxima de exaltação. Conhecer a essência da imaginação implica lançar vôo no devaneio cósmico que alimenta as imagens poéticas. Bachelard afirma que compete ao poeta “o dever de ensinar-nos a incorporar as impressões de leveza em nossa vida, a dar corpo a impressões quase sempre desprezadas” (BACHELARD, 2001: 199).

Os poetas trazem para o espaço do papel a cosmicidade das imagens que evocam recordações e devaneios, canalizando memória e imaginação na essência das imagens poéticas. Assim, a poesia passa a ser “uma força de síntese para a existência humana” (BACHELARD, 2001: 119), pois une a imaginação e a memória, revelando estados da alma e, ao mesmo tempo, sendo convite ao devaneio poético: “o poeta dá à imagem um destino de grandeza” (2001: 168).

O poder da imagem simbólica reside na “transfiguração de uma representação concreta através de um sentido para sempre abstracto (sic). O símbolo é, pois, uma representação que faz aparecer um sentido secreto, é a epifania de um mistério” (DURAND, 1995: 12. Grifos do autor). Neste sentido, a poesia é repleta de símbolos que constituem a cifra de um mistério, de um enigma que remete para um sentido que não está plenamente visível; são sinais que conduzem a um sentido, cuja metade (significado) encontra-se numa espécie de obnubilação, enquanto a outra metade (signo) é visível. De acordo com a classificação feita por Durand, o símbolo seria um “signo que remete para um indizível e invisível significado” (1995: 16) e, deste modo, só pode ser captado dentro de uma imaginação simbólica.

A imaginação é uma rede complexa de relações e aparece como o “denominador fundamental onde se vêm encontrar todas as criações do pensamento humano. O imaginário é esta encruzilhada antropológica que permite esclarecer um aspecto de uma determinada ciência humana por um outro aspecto de uma outra” (DURAND, 2002: 18. Grifos do autor). No domínio da imaginação, a imagem não pode ser degradada, pois ela é portadora de um sentido que não deve ser procurado fora da significação imaginária. Neste sentido,  Durand compartilha da mesma concepção de seu mestre Bachelard, afirmando que a imaginação é dinamismo organizador, “é potência dinâmica que ‘deforma’ as cópias pragmáticas fornecidas pela percepção, e esse dinamismo reformador das sensações torna-se o fundamento de toda a vida psíquica porque ‘as leis da representação são homogêneas’” (2002: 30).       

Para Gaston Bachelard, é  pela imaginação  que damos formas às imagens; ela não é “a faculdade de formar imagens da realidade; é a faculdade de formar imagens que ultrapassam a realidade, que cantam a realidade” (2002: 18). A poesia constitui a matéria-prima para uma fenomenologia da alma, pois suscita imagens cósmicas que pertencem ao universo anímico da consciência humana. A imaginação faz a correspondência entre as imagens e as palavras e, nesta associação, o poema é uma fonte de evocação da memória e da recordação. Estudar as imagens da infância pela obra literária e pela palavra poética é uma forma de adentrar neste universo misterioso da imaginação simbólica, pois a arte é portadora de vozes que repercutem ecos ontológicos, voz que ecoa os tons da natureza e do homem: espelho da humanidade.

As imagens da infância, presente nos poemas de João Manuel Simões, apenas confirmam a manifestação uma infância permanente, uma infância imóvel e, neste sentido, os devaneios poéticos são a continuidade dos devaneios de infância. Mas, para que as imagens de criança retornem com a mesma beleza, a alma e o espírito devem estar em comunhão, já que os dois não possuem a mesma memória. Somente quando entram em harmonia é que a imaginação e a memória atingem a plenitude do devaneio – “imaginamos reviver o passado". Os poetas lançam um convite à imaginação,  a imaginar esta infância perdida, a inventar o passado, como se o devaneio voltado para a infância devolvesse vida às vidas que não aconteceram, mas que  foram imaginadas na infância. O devaneio poético resgata estas imagens que ficaram na memória, esboçando a profundidade do  tempo e da alma de criança num passado desaparecido.

Neste sentido, “a poesia é uma força de síntese para a existência humana” (BACHELARD, 2001: 119), já que a poesia possibilita analisar a infância de forma tão mágica, que traz para o espaço do poema o mesmo maravilhamento da infância vivida. Desperta a cosmicidade da infância unindo imaginação, memória e poesia. Os poetas põem o leitor/ouvinte em presença de lembranças que revelam estados de alma,  convidando-os a mergulhar nas profundezas da lembrança até encontrar a paz e reencontrar as imagens de seu passado. Assim, lembrança, poesia e imaginação  caminham juntas quando se trata de devaneios voltados para a infância.

As estações da infância marcam a memória com signos indeléveis; são lembranças revividas somente no devaneio e que permite canalizar memória e imaginação na essência das imagens poéticas. No poema “Infância”, o poeta equipara a infância a um rio sereno e puro, que corre no curso da vida como doces lembranças que se projetam para o futuro:

 

Rio sereno e puro

(música a sua voz!)

a deslizar, alado,

por entre verdes margens.

Ah! pudéssemos nós

(breves, sutis miragens)

fazer desse passado

futuro!

(Suma Poética, 1983: 30)

 

Nota-se neste poema, a riqueza das imagens poéticas, que em consonância ao título, ganham grande poder enunciativo, uma vez que a presença da infância vem como um sentimento de uma recordação comparada à “sutis miragens”, que, além de provocar saudade, vem com um sentimento calmo, sereno, como uma voz que ecoa no íntimo do ser, alçando vôo na imaginação, e projetando no sujeito lírico uma viagem rumo ao passado ou à infância via imaginação. A presença da infância viva estende-se à vida adulta, já que o desejo do eu-lírico é “fazer desse passado futuro”, deixando que o rio da imaginação corra até os confins do seu ser, percorrendo “verdes margens”. No entanto, estas memórias da infância são breves e sutis, pois duram apenas os instantes em que o sujeito lírico encontra-se navegando o rio do devaneio e por entre margens e florestas de símbolos.

É com relação a estes instantes de fluidez e imaginação que a poesia corresponde a um breve prelúdio, no qual o poeta se deixa conduzir pela corrente da alma, ou como afirma Staiger, “há um discreto inflamar-se do mundo no sujeito” (1997: 34), pois o poeta abandona-se à criação pela “disposição anímica”. Há uma unidade entre o trabalho e a inspiração, entre o mundo e o sujeito, em que a forma e o conteúdo estão ligados pela sonoridade das palavras. Estas, por sua vez, sugerem a disposição da alma do poeta, que se deixa conduzir pela imaginação e recordação e, ao fazer isso, transfere para o poema o mesmo encantamento de sua alma.

A poesia lírica é dotada de alma, pois constitui uma fluidez da imaginação na recordação. O poeta lírico não tem destino próprio, não cria história, ele deixa-se conduzir pela inspiração, pela “recordação”. No poema “Evocação da Infância”, o sujeito lírico faz uma volta à infância, através da recordação ou evocação, em uma espécie de tentativa de buscar explicações para transformar a existência e o viver: para entender o mistério da sua existência.

 

                 No fim do mar, 

                                 muito longe, ficaram,

                          no espaço azul secreto

                                                da distância,

                  doces ilhas

                                    pretéritas:

                             a casa, a igreja, a escola,

                                          a infância.

                             Vejo-as com olhos de alma,

                   indistintas,

                              desta maturidade

                            que é meu porto.

               Mas quem será que as vê,

                                       de fato?

                             O adulto

                       ou o menino morto?

 (Canto em Mi(m), 1982: 28)

 

A (re)aparição e recordação da infância distante suscitam no eu-lírico a saudade de um tempo que já passou, mas que deixou marcas indeléveis na alma. Mais que isso, o eu-lírico recorda com os olhos da maturidade, de uma maturidade que é seu porto e que permite resgatar a memória tão viva e presente, de tal modo que este sujeito lírico já não distingue quem realmente vê: se o menino ou o adulto. É como se no adulto existisse a presença incrustada do menino que ele foi, que não existe mais, mas que teima em voltar, sempre vivo em sua memória e recordação.

De algum modo, a infância direciona a vivência adulta, seja através da memória, lembrança, seja através dos ensinamentos ou da magia que envolve a infância. A beleza pura e simples do olhar de criança, que vê em tudo o lado mágico, belo e feliz, ou no dizer do poeta, esta infância que ficou “no fim do mar” e faz com que o eu-lírico projete no mundo o mesmo encanto da infância e abstraia deste encantamento os ensinamentos necessários à vida, para fazer de sua maturidade um porto seguro. Nestas doces “ilhas pretéritas” da reminiscência esconde uma infância sempre viva, imóvel e permanente, sobre a qual borbulha os “olhos indistintos” da imaginação.

A temática do tempo e da memória, na lírica João Manuel Simões, revelam-se canais que ajudam a entender o fenômeno que ocorre na consciência humana. É possível rever o mundo com as cores da primeira vez, com as lembranças indeléveis da infância, atravessar as idades sem envelhecer. A infância está na origem dos maiores devaneios, das maiores imagens, uma vez que a beleza das imagens reside no fundo de cada memória. Como um retrato antigo sempre novo, a memória vai  construindo no presente a história do futuro, ajudando a moldar a história da humanidade. Assim, a poesia é o fio condutor das imagens e da imaginação, ela suscita uma tomada de consciência dos fenômenos que ocorrem na alma do sonhador. Por isso, ela é força capaz de dar sentido a vida e clarificar a própria história. A poesia promove o encontro do homem consigo mesmo por meio da imaginação.

Nos versos de João Manuel Simões, as palavras transmudam-se em imagens que assumem a grandeza dos símbolos. Deixam de ser simples “moléculas de dicionário” para se revestirem de um dinamismo criador de sonho, de ritmo e beleza – de imaginação. João Manuel Simões nega-se a praticar o que ele chama de “mero halterofilismo verbal”, afirmando que a poesia é muito mais do que “um prodígio encantatório que vivifica e aliena, faz ascender aos céus e precipita nos abismos, mais, muito mais do que tudo isso, é vida. Vida e fonte de vida. Será isso muito? É muito e é tudo” (SIMÕES, 1978: 67).

A poesia é uma matéria viva que traz em seu bojo o futuro do homem, as respostas, ou  pelo menos, as insígnias que abrem as fontes do ser e da existência humana. Nos versos de João Manuel Simões, o poeta conduz o homem a uma viagem rumo ao infinito mistério do ser e da imaginação, não só pela evocação da infância, mas por toda a riqueza de imagens que despertam na memória do leitor a imaginação simbólica.

 

BIBLIOGRAFIA

BACHELARD,Gaston. A água e os Sonhos: Ensaio sobre a imaginação da matéria.São Paulo: Martins Fontes, 2002.

________. A Poética do Devaneio. São Paulo : Martins Fontes, 2001.

DURAND, Gilbert. A imaginação simbólica. Trad. Carlos Aboim de Brito. Lisboa: Edições 70, 1995.

________. As estruturas antropológicas do imaginário: introdução à arqueologia geral. 3 ed. Trad. Hélder Godinho. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

PAZ, Octavio. O arco e a lira. Trad. Olga Savary. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.

________. A outra voz. Trad. Wladir Dupont. São Paulo: Siciliano, 1993.

SHELLEY. Defesa da Poesia. In: LOBO, Luiza. Teorias poéticas do Romantismo. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1987.

SIMÕES, João Manuel. Suma poética. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1983.

________.Canto em mi(m) ou A secreta viagem. Curitiba: Coleção Academia Paranaense de Lertras, 1982.

________. Clareza e mistério da criação literária: ensaios. Curitiba: Editora Lítero-técnica, 1978.

STAIGER, Emil. Conceitos fundamentais da poética. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997.

 

Notas

[1] Aluna do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Letras – Área de Concentração em Linguagem e Sociedade – da Universidade Estadual do Oeste do Paraná, Campus de Cascavel – PR. suelicost@hotmail.com

[2] Orientador e Professor  do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Letras – Área de Concentração em Linguagem e Sociedade – da Universidade Estadual do Oeste do Paraná, Campus de Cascavel e Professor do Curso de Letras, Campus de Marechal Cândido Rondon. donizeti@unioeste.br

          



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