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Revista Eletrônica do Centro de Estudos do Imaginário
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Resenhas Biblioteca Entrevistas Primeiras Notas CONSELHO EDITORIAL Arneide Bandeira Cemin Ednaldo Bezerra de Freitas Valdir Aparecido de Souza |
Arneide Bandeira Cemin[2] A ética diz respeito ao julgamento sobre a conduta humana, do ponto de vista do bem e do mal, do certo e do errado. Sabemos que o bem e o mal, o certo e o errado variam de sociedade para sociedade e variam, também, no interior das sociedades. Sendo assim, o problema ético envolve conflito de valores. Então, o desafio da interculturalidade é o desafio de conviver com as diferenças culturais. Ao mesmo tempo, as diferenças são continuamente produzidas porque todas as sociedades, todas as culturas são dinâmicas, isto é, transformam-se, mudando também as suas avaliações sobre o bem e o mal, o certo e o errado. Com as mudanças novas diferenças são produzidas. Se tudo muda, inclusive os valores, devemos entender que toda moral, toda ética é provisória porques sempre que uma sociedade enfrenta mudanças ou situações inesperadas, ela tem que avaliar suas ações frente ao novo, tendo as vezes que mudar a sua noção de bem e de mal, de certo e de errado. Mas
o que a ciência tem a ver com a ética? Seria preciso pensar a ética na
pesquisa? Não seriam os cientistas normalmente éticos e não seria a ciência
um sistema ético em si mesmo? A
resposta é não, porque os cientistas assim como todas as pessoas não são
normalmente e nem naturalmente éticos. A ética, como tudo na vida humana
é uma construção social, depende do trabalho das pessoas
vivendo em sociedade, conversando e avaliando as ações de uns e de
outros e de todos conjuntamente. Coisa que as sociedades indígenas sabem
fazer muito bem. Temos
que pensar a ética na pesquisa também, porque a ciência, tal como nos a
conhecemos hoje, começa a existir do jeito que é, no século XVII, em
luta contra a igreja e o Estado medieval. Uma de suas armas nessa luta foi
separar a ciência dos valores, separar o sujeito, o pesquisador, de seu
objeto de estudo. Esse objeto poderia ser a natureza ou os humanos.
A
idéia que começou a se desenvolver é que o pesquisador é neutro, não
tem preconceitos nem preferências, sendo assim, ele não interfere nos
resultados de sua pesquisa. Firmou-se a idéia de que o pesquisador está
separado de seu estudo, que ele produz conhecimento para uma ciência que
tem por interesse apenas um puro amor ao saber.
Essa
separação artificial, do homem e de sua obra, essa ficção metodológica
que diz que entre o pesquisador e o conhecimento que ele produz não há
nenhuma relação de interesse afetivo, econômico, político e de
valores, foi importante para a ciência vencer sua luta contra a igreja,
contra o saber teológico, contra o saber religioso que passou a ser visto
como superstição, como pensamento errado sobre as coisas. Com
a “vitória” da ciência e sua extensão
para todos os aspectos de nossa vida, as relações entre a
ciência, a tecnologia, a política, a empresa e o Estado
moderno, são muito estreitas, muito misturadas. Muitos
pesquisadores contribuíram para a gente entender o modo de ser
da ciência moderna, e hoje nos sabemos que não há
ciência neutra, ciência livre de valores e de interesses.
Ao mesmo tempo, o cientista, o pesquisador, é um homem como os
outros, tendo seus valores, suas preferência e seus interesses.
Ele não é um ser acima do bem e do mal. Comete erros,
injustiças, e seu trabalho pode ter resultados nocivos para as
populações. A ciência, portanto, não pode
estar livre de ser responsabilizada por aquilo que ela produz. Entre os
bens que a ciência produz estão os valores. Ao
produzir bens e valores, sem discutir a ética dessa produção, o
cientista se torna inconsciente, porque não esclarece para si e para a
sociedade as conseqüências do seu trabalho. Por outro lado, muito desse desconhecimento é proposital,
porque o saber na nossa sociedade não está distribuído de forma igual.
Assim, aqueles que sabem mais também têm mais poder. Então interessa
que muitas pessoas tenham pouco saber. Para
mudar essa situação é preciso que se pratique ciência com consciência
ética. Precisamos de sujeitos conscientes, porque a ciência não se faz
sozinha. Os cientistas são homens e mulheres produzidos por uma certa
sociedade, que é a sociedade deles. E eles, como todas as pessoas, são
do jeito do povo deles, começando pela família, pelo lugar que moram,
pelos tipos de coisas e pessoas que eles amam ou deixam de amar. Hoje
o desenvolvimento da ciência leva a um saber anônimo, que fica
depositado nos chamados “bancos de dados”, que são informações
armazenadas em computadores. Essas informações passam a ser propriedade
das empresas, do Estado e dos governos. A função das informações
guardadas nesses bancos de dados, não é circular na sociedade visando
favorecer a todos. Ao contrario, a posse individual dessas informações permite o enriquecimento de uns poucos. Como é o caso das pesquisas sobre produção de alimentos, de remédios, de recursos naturais e mesmo sobre o comportamento humano, a exemplo das técnicas de propaganda. Assim a informação, o conhecimento é um produto valioso também na nossa sociedade, a diferença é que entre nós ela é transformada em mercadoria que a maioria não pode comprar. Desse modo, o que acontece é que muito não tem a posse dos conhecimentos que são importantes para compreender a sociedade. As
populações indígenas são um exemplo desse “desapossamento
cognitivo”, desse tirar a posse de seus saberes sobre plantas, modos de
organização social e recursos minerais.Os
cientistas também são desapossados de saber, porque ficam restritos
apenas as suas especialidades e desconhecem o que os seus colegas
cientistas fazem nas outras áreas de saber.
O resultado é que obedecemos a grande máquina chamada ciência,
mas não sabemos para onde ela vai, e não discutimos o que ela produz. Além
disso, as questões verdadeiramente importantes não são discutidas pela
ciência. Por exemplo, a ciência não pergunta o que é o homem? Qual é
o seu sentido da vida? Qual é o seu lugar no cosmos? Ao
não se interessar por questões como essas, e ao defender que o método e
a técnica estão acima do homem que os utilizam e que “os fins
justificam os meios”, ao fazer isso, a prática cientifica produz
inconsciência, erros e injustiças. O que salva os cientistas é que eles
não são apenas cientistas, são também pessoas, cidadãos, e ao agirem
em diferentes espaços sociais, eles são confrontados, colocados de
frente com o bem e o mal que a nossa sociedade cria com a ajuda da ciência.
Um dos males da ciência, é querer produzir um homem padrão, a partir de
uma sociedade padrão, que é a sociedade ocidental, cristã, capitalista.
Outro mal é considerar que todos os povos que não se enquadram nesse
padrão são atrasados, pouco inteligentes, e vivem em meio à desordem.
Essa atitude do homem ocidental é uma atitude etnocêntrica porque
considera que seu modelo de sociedade, seu modo de vida é o centro do
mundo, é o mais correto, o mais justo, o mais belo, o mais ordenado. A
antropologia e a historia nos ensinam que há muitas formas possíveis de
sermos humanos, e que cada sociedade elabora a sua cultura, o seu modo de
entender o mundo, de viver a vida e de determinar o bem e o mal, o certo e
o errado. Ou seja, cada sociedade elabora a sua ética, o seu modo
de fazer a coisa certa, justa e boa. O problema começa quando duas
sociedades diferentes se encontram, porque não sabemos se elas serão
amigas ou inimigas. Desde
o século XV, com o chamado ciclo das grandes navegações, a Europa, a Ásia,
a África e as Américas do sul e do norte, foram se encontrando cada vez
mais. Esse encontro foi do tipo etnocêntrico, marcado pelo interesse
daqueles que chegavam na terra e que não queriam ter nenhuma consideração
com o povo que já morava ali. Sabemos que o resultado foi desastroso para
as populações que habitavam esses territórios porque aconteceu a
destruição física e simbólica desses povos e de suas sociedades. Hoje
em dia a coisa ainda não é muito diferente, a cada dia povos e pessoas são
vitimas de injustiças e vivemos em um mundo que cada vez aumenta os
encontros e a comunicação entre sociedades diferentes. Esse é o
problema da interculturalidade, que é o problema da comunicação
e da convivência entre culturas muito diferentes, entre éticas também
muito distintas umas das outras. É um problema de conflito social porque
é mais difícil lidar com aquilo que é diferente. O
modo de interpretar os povos que não vivem de modo capitalista e
industrial, continua o mesmo que era nos séculos XV e XVI. Ou seja, esses
povos são vistos como atrasados, porque se considera que o tipo de ciência
e de técnica, e o modo de vida que eles levam e praticam é sinal de que
eles não se desenvolveram. Entretanto,
os antropólogos aprenderam que o desenvolvimento de um povo não pode ser
medido apenas pelo tipo de sua tecnologia, mas também pelo modo como
organiza suas relações com a natureza e com as pessoas de sua sociedade.
Nesse sentido, as sociedades indígenas poderiam nos dar muitas lições,
porque elas sabem da importância do equilíbrio ecológico, da importância
da proteção a vida, a infância, a velhice, e também desenvolveram uma
ética da felicidade, da gentileza, do cuidado de cada um para com todos
os outros. É
justamente a lição dessa ética que os pesquisadores de nossa sociedade,
que pesquisam sociedades diferentes, precisam aprender. Precisamos saber
que toda cultura produz um modo certo de conhecer o mundo e que os
pesquisadores não podem chegar dizendo o que é certo ou errado. Entre os
pesquisadores que estudam as sociedades indígenas, estão os
antropólogos, os lingüistas, os botânicos e os químicos. Entre
esses pesquisadores podemos incluir os missionários, não só porque em
geral eles são profissionais de diversas áreas, sendo com muita freqüência,
lingüistas, como também porque eles são médicos de almas, assim como
os pajés, que entendem a vontade dos espíritos. É
nesse jogo de supressão das diferenças, de conflito de
interculturalidade, que pode acontecer aquilo que a antropologia chama de
“patologia do simbólico”, ou seja, as pessoas adoecem e às vezes
morrem quando aquilo no qual elas acreditam é desautorizado, destruído,
por pessoas de outra cultura. No
caso dos missionários isso é muito forte porque muitos deles
acreditam que a sua religião é a melhor e a mais correta, a única que
tem contato com o Deus verdadeiro. O resultado, em geral, é a desvalorização,
justamente daquilo que dá sentido para a vida daquele grupo, que são os
seus símbolos, seus rituais, suas festas, suas crenças. Desconsidera-se,
então, que cada povo, cada cultura elabora, cria, a sua idéia das coisas
e dos seres sagrados. E que não há nenhuma medida ou comparação
externa que diga, de fora, que o Deus de um povo é melhor do o outro. Então,
temos que avaliar o impacto de nossa presença junto às comunidades, e,
para isso, precisamos fazer algumas reflexões em torno das seguintes
questões: 1.
O direito que os povos tem a privacidade de seus nomes, lugares e
situações; 2.
Que o antropólogo tenha o consentimento, a autorização da
comunidade para realizar o seu trabalho; 3.
Que o pesquisador se apresente devidamente a comunidade, ou seja,
que as pessoas fiquem sabendo com muita clareza a pessoa que ele é, para
quem ele trabalha, qual é a instituição, e qual é a empresa, governo
ou grupos que financiam a pesquisa dele; 4.
Que a comunidade tenha acesso a documentos, endereços e tudo o que
for necessário para ficar esclarecida sobre a origem e as intenções dos
pesquisadores que as visitam; 5.
Um ponto de interesse é discutir os tramites para a autorização
das pesquisas. Ou seja, a autorização para a permanência de estranhos
na aldeia, porque me parece que a autonomia para isso não pode ser de
outro que não a comunidade devidamente informada; 6.
Que a comunidade tenha conhecimento sobre o uso que o antropólogo
pretende fazer com os conhecimentos que ele adquiriu na pesquisa; 7.
Que o pesquisador não utilize fraudes e mentiras para obter dados,
como gravadores e câmaras escondidas; 8.
O pesquisador tem que respeitar o grupo que ele estuda e protegê-lo
das conseqüências de seu trabalho; 9.
Que o pesquisador não tem o direito de espoliar as comunidades,
retirando delas bens como artesanatos, utensílios ou mesmo saberes sem
esclarecer para a comunidade o destino desses bens e sem obter o seu
consentimento; 10.
O pesquisador precisa fazer retornar a comunidade o conhecimento
que foi produzido sobre ela, o conhecimento sobre eles mesmos e sobre a
sociedade que os oprime, esclarecendo o modo dessa opressão; 11.
Um outro modo pelo qual os antropólogos podem dar retorno às
comunidades é aproveitando todas as ocasiões para atuar em favor do
grupo denunciando os casos de genocídio e do uso indevido de suas terras
e riquezas. 12.
Que o pesquisador não queira mudar o grupo, fazer as pessoas
adotarem tal ou qual comportamento ou modo de vida que não seja do
interesse delas. Para
concluir, lembramos que o desafio da interculturalidade é o desafio de
conviver com as diferenças, e
que as diferenças são definidas nas lutas sociais, sendo também nas
lutas sociais (que são sempre lutas pela definição
de valores e de
significados) que elas podem ser resolvidas. O desafio da
interculturalidade é, também, o desafio de sermos capazes de
estabelecermos relações harmoniosas entre nossas diferenças. O modo de
produção de nossa sociedade está voltado para gerar muita riqueza,
inclusive de saber, nas mãos de poucos sem discutir o preço que pagamos
em vidas. Para produzir esse desconhecimento, esse inconsciente social,
nos não nomeamos, não falamos sobre a vida, a morte, a dor, a perda, a
miséria material e espiritual, e com isso eu acho que nós geramos ou nos
calamos diante da destruição. Penso
que as sociedades indígenas podem contribuir para o debate das questões
éticas entre nós por seu entendimento acerca da vida e do mundo ser
diferenciado do nosso e porque as respostas que formularam interessam a
muitos de nós. BIBLIOGRAFIA BOAVENTURA,
Ilka Leite. (Org) Ética e estética na antropologia. PPGAS. UFSC,
Florianópolis. 1998. MORIN,
Edgar. Ciência com Consciência. Rio de Janeiro, Bertrand
Brasil, 1998. Notas [1]Texto
produzido para o Seminário “Ética na pesquisa, o desafio da
interculturalidade”, promovido pelo NEIRO. Núcleo de Educação
Escolar Indígena de Rondônia, em Porto Velho (RO) no dia 30 de
novembro de 2002. [2]
Professora Dra. Em Antropologia Social/USP. Professora doDepartamento
de Sociologia e Filosofia da UNIR,
pesquisadora do Centro de Estudos do Imaginário Social – CEI/UNIR.
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