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Imaginário e Representações: a relação entre Tempo e Cultura

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CONSELHO EDITORIAL
Arneide Cemin
Ednaldo Bezerra Freitas
Valdir Aparecido de Souza

  

                                                                                   

Valdir Aparecido de Souza[1]

Para falar sobre a relação entre Tempo e Cultura, objeto deste ensaio, parto de meu texto anterior Representações do Tempo; Concepções de História [2] no qual tentei encontrar uma genealogia da história a partir das metáforas ocidentais sobre o tempo. Neste, procurei identificar como os conceitos culturais foram forjados no encontro das culturas grega e judaico-cristã, passando pelo Renascimento e sua versão do tempo secularizado. No período entre o Renascimento, o Racionalismo e o Iluminismo se fundem o tempo cronológico e cíclico grego com o tempo linear da alma de Santo Agostinho, para criarmos o tempo do calendário. Em um só cálculo contamos a partir dos ciclos naturais, seja lunar e na rotação da terra, herança da cultura grega e também acumulamos o tempo linear de forma seqüencial e evolutiva, como se houvéssemos partido de um ponto em direção ao seu lado oposto – da criação do mundo ao seu final. Esse calendário é atualizado para o conceito de tempo/processo numa longa tradição de linearidade, como se estivéssemos situados num ponto, no qual haveria - a partir de um sistema interno - uma possibilidade de retorno ou de avanço infinita.

A partir desta breve introdução poderíamos inferir que à medida que os grupos passam a ser mais amplos, nos quais as formas de produção e comportamento também se complexificam e se diversificam há uma maior precisão em relação ao tempo. Estas sociedades passam a ser organizadas de forma bastante hierarquizada e principalmente padronizadas a partir do centro dessa civilização. À medida de seu crescimento e expansão vão se constituindo em grandes sistemas bem mais complexos e burocratizados, como no caso dos impérios e reinos unificados. Uma das resultantes desse quadro é a tendência simultânea à burocratização e à abstração das formas de se relacionar e conceituar o tempo. Também devemos tomar cuidado com nossas afirmações a partir do exemplo ocidental, pois parafraseando Levi-Strauss,  a nossa trajetória “são atos falhos do grupo que tiveram êxito”, ou seja, nunca houve uma forma modelar a ser alcançada, apesar de nos trairmos e considerarmos que somos a sociedade mais bem acabada.

Porém, o inverso não é verdadeiro, as várias culturas “tradicionais” apesar da aparência de uma temporalidade ligada diretamente à natureza, as suas formas de organizar e mensurar, bem como se situar em uma dimensão do tempo são também percepções e práticas puramente abstratas.

De forma diversa, outras culturas tradicionais - sem inferir nesta contraposição um antagonismo civilizado/selvagem, que sabemos de antemão ser apenas um olhar distorcido do outro - marcam o tempo por meio de sua experiência ou a de seus antepassados, referenciados em sua experiência presente e concreta, como é o caso do povo Balinês objeto de estudo de Geertz (1989), para aqueles o tempo está lastreado no seu ciclo de vida, uma vez que até mesmo as pessoas são nomeadas por este ciclo de vida que raramente ultrapassa a geração do bisavô ou do bisneto. Não há linhagens contadas seqüencialmente como em nossa mitologia judaico-cristã, na qual Jesus descende de Adão e isso vem sendo acompanhado seqüencialmente de forma linear. No caso dos balineses, estes se referenciam pelas suas gerações, e elas só existem até determinada geração na qual os membros do grupo tiveram um contato concreto, os nomes dos filhos também vão até certo número, após este limite do grupo os nomes começam a se repetir novamente de forma cíclica.

Em termos gerais, percebemos que as pessoas organizam o seu tempo a partir das atividades econômicas ou as consideradas mais importantes para o grupo. Várias populações da América Latina, África e Ásia apesar de herdeiras do modo ocidental, o elemento que menos conta para muitas delas é o tempo abstrato do relógio. Há uma clara referência ao tempo marcado pelos modernos meios de mensuração, porém estes têm pouca importância na vida cotidiana, pois a maioria de agricultores sazonais mescla suas atividades agrárias com as atividades urbanas do comércio, ou seja há uma multiplicidade ocupacional, que por sua vez flexibiliza o tempo. Povos inteiros que não calculam as suas ações pelo relógio, porém sem nenhuma manifestação verbal, ou gestual, sem uma única olhadela no pulso, a maioria gasta mais ou menos o mesmo tempo para o descanso do almoço. Há como que uma sincronia “perfeita” a partir dos costumes.

No caso dos Nuer, um povo distribuído ao largo das margens do Nilo oriental entre vários grupos como os Dinka, os Lou e outros, Evans-Pritchard (1993) observou os seus costumes e concluiu que os mesmos possuem duas formas de tempo que são o ecológico e o estrutural. O tempo ecológico é mensurado a partir das épocas de cheia e de seca da região, que eles nomeiam grosso modo de tot e mai. Na estiagem eles devem ter certos cuidados com o gado - sua principal fonte de alimentação - para garantir a sua sobrevivência, complementada por outras formas de proteína como o sorgo e o milho, além da pesca. No caso, eles conduzem o gado até o leito do rio, onde há pastagem e montam seus acampamentos, o tempo é divido entre as tarefas de preparação de montagem dos acampamentos e da retirada dos membros do grupo das terras altas que haviam ocupado no período anterior das chuvas.

Já a época das chuvas, o grupo retorna para suas cabanas permanentes, junto dessas estão os currais para os animais, estas estão situadas nas terras mais altas desta planície nilótica. Pritchard observou que as estações da chuva e da seca é que determinam as atividades do grupo, ou seja o que ele denominou de tempo ecológico.

Os Nuer possuem convenções similares aos nossos doze meses do ano, baseado nas fases da lua. Porém, como o autor frisou não há muita referência aos meses e sim às atividades desenvolvidas neste ou naquele período e quais os acontecimentos marcantes para o grupo.Mas os Nuer ao indagarem a sua memória não se referem a meses ou estações, mas às atividades que realizavam quando de um evento marcante para o grupo. Por exemplo, eles não se referem ao mês de pet, mas às atividades que desempenhavam naquele período e a partir dessa descrição sabem em que período estavam. Aliás segundo Pritchard eles raramente usam os nomes do ano, mas referem-se à época do plantio, época dos casamentos, época da pesca, época da colheita e por aí seguem os exemplos desse povo nilótico

Há um alto grau de abstração em relação ao tempo, pois tot e mai não correspondem exclusivamente às secas e às chuvas. Os períodos intermediários entre tot e mai dificultam qualquer abordagem reducionista. Pois há períodos de mai, a maior parte jiom, sem equivalente para nós, pois não é a seca propriamente, que alguns, os mais velhos estão nas aldeias. E há períodos de tot, como rwil, no qual os mais jovens ainda estão nos acampamentos. São as atividades e a faixa etária envolvida em determinadas delas que organiza o tempo dos Nuer.

Mas apesar de numa primeira observação parecer que o tempo ecológico é que determina as formas de entendimento do mesmo, Pritchard aponta que o tempo apesar de tudo é estrutural, pois está relacionado aos papéis sociais na produção e sobrevivência dos Nuer, mas isto não significa uma correspondência imediata. No caso o tempo estrutural está determinado por aquilo que o autor cunhou de distância estrutural, é dizer que são as relações de linhagem e parentesco, bem como os grupos etários é que determinam a forma de se relacionar com a categoria temporal entre os Nuer. Um Nuer pode falar de um acontecimento referindo-se a ele em determinado período de auge de um conjunto etário, ou de predomínio de outro conjunto, mas nunca se refere ao período em si.

Outro ponto, não há universalização do tempo para os Nuer, pois como são vários grupos espalhados pelas margens do Nilo, cada um deles tem seu sistema de referência baseado nos acontecimentos internos a si próprio. Por sua vez, estes acontecimentos fornecem significados para apenas aquele grupo e não para outros. Ainda Evans-Pritchard  (1993: 120) reconhece os limites de nossa compreensão das categorias do tempo em outra cultura.

Em termos mais atuais Fabian (1983) vai além das observações feitas por Evans-Pritchard aos limites da compreensão de outras culturas e vai situar o tempo como o objeto principal de sua análise. Para Fabian, esta categoria extremamente abstrata, e ao mesmo tempo naturalizada pelo ocidente, reside uma dimensão política. Nesta categoria se dá principalmente a construção do Outro enquanto objeto antropológico, este é distanciado pelo pesquisador ocidental por meio da temporalidade. Esta distância construída por uma visão evolucionista legitimou uma diferença inexistente entre outras culturas e o ocidente, pois está baseada numa corporificação do tempo. Esta concepção secular e universal do tempo é que impõe o distanciamento.

O autor esclarece que a negação da simultaneidade entre as culturas não se trata de uma questão semântica e sim de um fato político. Segundo Fabian o evolucionismo influenciou a formação do funcionalismo, do culturalismo e do estruturalismo e ainda estrutura outras dicotomias comparativistas como: passado e presente, primitivo e moderno, tradição e modernidade que reproduzem e perpetuam as formas de dominação ocidental sobre outras culturas.

Ainda Levi-Strauss (1993) aponta essa contraposição ao fazer a crítica à razão dialética em Sartre. Para ele, o reducionismo e a comparação feitos pelo filósofo beiram à ingenuidade, pois aquele considera os outros povos como se estivessem “atrasados” ainda na fase do pensamento pré-lógico em comparação à cultura ocidental que desenvolveu o pensamento lógico. Para argumentar Levi-Strauss vai eleger a história como o campo de reflexão para evidenciar que não há diferenças entre os aborígenes australianos e outros povos que utilizam os churinga para conferir sincronia ao presente e suas festas que impõem uma atualização diacrônica ao momento presente. Para o autor, estas experiências possuem os mesmos elementos da cultura ocidental que por sua vez confere um valor excepcional, para não dizer mágico à documentos e artefatos utilizados pelos nossos antepassados e também eventos cívicos que inserem o passado no presente.

Consideramos a partir destes exemplos que as relações com o tempo em primeiro lugar são criadas pelo grupo de forma conceitual e cultural. É a cultura que imprime o formato do tempo e suas representações.

BIBLIOGRAFIA

CAULA, Silvana. Fabian Johannes. Time and the Other: How anthropology makes its object. Procesos Históricos no.5, Mérida, jan. 2004, p.217-219. ISSN 1690-4818.

EVANS-PRITCHARD, E. E. Os Nuer. 2ª ed. S. Paulo, Perspectiva, 1993.

LEVI-STRAUSS, C. O pensamento selvagem. S. Paulo, Paz e Terra, 1996.

[1] Mestre em História e Sociedade pelo Programa de Pós Graduação da Faculdade de Ciências e Letras de Assis - UNESP.

Professor do Departamento de História e Pesquisador do Centro de Estudos do Imaginário da Universidade Federal de Rondônia

[2] REVISTA CADERNO DE CRIAÇÃO nº 22, P. Velho, out. 2000 (Centro de Hermenêutica do Presente).



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