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Universidade Federal de Rondônia
Revista Eletrônica do
Centro de Estudos do Imaginário

Labirinto - Revista Eletrônica do Centro de Estudos do Imaginário

  

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Problematizando o imaginário:
limites e potencialidades de um conceito em construção - O imaginário da militância comunista em Porto Alegre (1945-47)
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Marisângela Martins(1) 

 


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CONSELHO EDITORIAL
Arneide Cemin
Ednaldo Bezerra Freitas
Valdir Aparecido de Souza

  

Resumo: O objetivo desse artigo é promover breve reflexão acerca dos limites e potencialidades do conceito de imaginário para a construção do conhecimento histórico.

Palavras-chave: imaginário, simbólico, conhecimento histórico.

Abstract: This article propose to proceed a brief reflection about limits and conveniences of imaginary notion to construction historical knowledge.

Key Words: imaginary, symbolical, historical knowledge.

O conceito de imaginário insere-se no conjunto de transformações epistemológicas que acompanharam a emergência da História Cultural, caracterizada, e por esse mesmo motivo também criticada, pela vastidão de seu território e por certa inconsistência teórica. No entanto os estudos dedicados a essa temática se avolumam, lançando novas (no sentido de ainda não previstas) perguntas a antigos documentos, ou descobrindo potencial em fontes inusitadas, um fenômeno que, além de abrir novos horizontes à interpretação histórica, conquistou espaço significativo na mídia. O crescimento das pesquisas no âmbito da História Cultural não acontece sem reflexão e preocupação com suas imprecisões e indefinições. Neste artigo, pretendo contribuir para esse debate, discutindo os limites e as potencialidades do conceito de imaginário. Para tanto, optei por me movimentar pela área para a qual venho dispensando minhas atenções nos últimos três anos, a saber, a militância comunista em Porto Alegre no imediato pós Segunda Grande Guerra, tema que permeia não somente o político, tal como era concebido até há pouco tempo, mas também o social e o cultural. Penso que um exemplo concreto pode auxiliar no desdobramento da análise, até porque não acredito ser possível refletir teoricamente sem ter suporte no empírico. Em um primeiro momento, abordo questões teóricas acerca do conceito: definições, contribuições para a construção do conhecimento histórico, relevância para o estudo dos comunistas, relação com conceitos vizinhos, entre outros. Em seguida, dedico-me a pensar as maneiras pelas quais o imaginário se expressa, as diferentes fontes que lhe dão acesso, o que elas permitem ver que inova em relação a outras abordagens, usando como exemplo as fontes que dão acesso ao imaginário dos militantes do Partido Comunista do Brasil (PCB).

Definições e Indefinições

Uma das contribuições do conceito em questão para a análise histórica está no fato de, através dele, haver a possibilidade de alcançar aspectos referentes às formas de pensar, de agir e de sentir, um lado da militância completamente novo na historiografia sobre o comunismo, por exemplo. Entretanto, assim como o imaginário apresenta concordâncias na perspectiva de diferentes autores, também suscita, como qualquer categoria de análise, controvérsias em torno de sua definição e aplicação. Ponto pacífico no tratamento que estudiosos dispensam à categoria do imaginário é seu elemento simbólico. Cornelius Castoriadis, por exemplo, afirma que o imaginário utiliza o simbólico para se exprimir e para existir, ao mesmo tempo em que o simbolismo pressupõe a capacidade imaginária, a capacidade de investir significações (1982: p. 154). Tomando sua matéria do que já existe, o simbolismo estabelece um vínculo entre dois termos, de maneira que um "representa" o outro, fornecendo respostas a perguntas colocadas implicitamente pelo próprio fazer social. Temos, aqui, o imaginário como habilidade de criação/recriação própria ao ser humano, como capacidade humana para representação do mundo. Entretanto, na medida em que o filósofo grego vê as relações sociais e de produção como instituições, como maneiras de fazer universais, simbolizadas e sancionadas, ele acaba por descartar o lugar que a realidade tem no processo histórico. Qual seria a validade de tal concepção para o trabalho do historiador? A meu ver, ela deve ser relativizada, pois desconsiderando o componente da realidade, elimina-se o elemento com o qual o imaginário se relaciona constantemente. Conforme Tânia Swain, o imaginário formula o real e é trabalhado por ele, num constante movimento de circularidade (1994: p. 52). Lucian Boia coloca o simbólico numa dimensão flutuante, como o elemento do imaginário responsável pela sua transformação (1998). Bastante influenciado pelas idéias de Jung, esse historiador francês atribui ao imaginário estruturas próprias - os arquétipos, tendência inata ao ser humano - o que lhe confere o caráter de regularidade. Mas essas estruturas são reelaboradas permanentemente, adaptando-se aos ritmos da história, através dos símbolos. Boia, assim, movimenta-se entre permanências e mudanças. Em um estudo de caso, ele afirma que a Ciência e a Razão perseguiriam os mesmos objetivos da Religião e da Teologia, elas seriam respostas às mesmas perguntas. Nessa perspectiva, o Progresso não representaria senão um milenarismo secularizado. Mais relacionado ao comunismo, a teoria de Marx, segundo esse autor, teria substituído Deus pela idéia do espírito humano, a luta do bem contra o mal pela luta de classes, e assim por diante. A vitalidade das idéias comunistas estaria, portanto, na sua conformidade aos grandes arquétipos, às grandes esperanças da humanidade. Contudo, ao afirmar o caráter universal e trans-histórico, global e coerente, do imaginário, o autor abre uma brecha para velhos questionamentos (direcionados, mormente, ao conceito de mentalidades), tais como: se o imaginário é global e coerente, como ficam as divisões dentro da sociedade? Todos os militantes comunistas, provenientes das mais diversas regiões, inseridos nas mais diferentes sociedades, culturas e classes sociais, homens e mulheres, intelectuais e operários, enfim, teriam todos eles as mesmas representações acerca dos vários aspectos da teoria marxista? Muito pouco provável! Além do mais, sua convicção nos arquétipos como características mentais intrínsecas à condição humana é questionável. O homem configurou sua vida de tal maneira que nos causa a ilusão de ser impossível deixar de lançar determinadas questões, como a da existência de uma realidade transcendente, por exemplo. Na verdade, porém, até essas perguntas que nos parecem insurgir de maneira natural são construídas culturalmente. Diria, inclusive, que a certeza nessa naturalidade é um dado cultural. De acordo com Castoriadis, nenhuma necessidade definida é "a" necessidade da humanidade. Ela, a necessidade, nasce historicamente. O homem a faz fazendo e se fazendo (1982: p. 164). Para Jacques Le Goff, por sua vez, o imaginário é dimensão (1994: p. 11). Ele pertence ao campo da representação, na medida em que traduz uma realidade exterior percebida, tradução que alimenta o homem e o faz agir. Dessa maneira, para Le Goff, o que o homem considera realidade é fruto do próprio imaginário, concepção próxima da de Castoriadis. Na verdade, o entendimento de Le Goff sobre imaginário é tão impreciso e ambíguo quanto o que ele tem sobre mentalidades. A indefinição da categoria é considerada um traço positivo, pois permite atravessar fronteiras e escapar às compartimentações (p. 31). Torna-se difícil pensar a aplicação do conceito tal como entendido pelo medievalista francês. Incrivelmente, ao lermos seus trabalhos, é possível compreendermos o que ele parece querer que compreendamos, porém, ao sermos interpelados sobre a concepção de imaginário, ali operada, tudo parece circular no âmbito do intuitivo, pois que é complicada a tentativa de verbalizar acerca do assunto. A perspectiva de Bronislaw Baczko também apresenta relação estreita entre o imaginário e o simbólico, mas dando respostas mais convincentes para a definição e aplicação da categoria aqui problematizada. Baczko afirma que o imaginário social se assenta e opera através dos sistemas simbólicos, os quais são construídos a partir da experiência dos agentes sociais, dos seus desejos, aspirações e motivações (1985: p. 311). Ele é elaborado e consolidado por uma coletividade, como uma resposta que esta dá a seus conflitos, divisões e violências reais ou potenciais. É uma das forças reguladoras da vida coletiva, designando identidades, elaborando determinadas representações de si, estabelecendo e distribuindo papéis e posições sociais, exprimindo e impondo crenças comuns, construindo modelos de bom comportamento. Ou seja, o imaginário interpreta a realidade, suscita a adesão a determinados sistemas de valores ao mesmo tempo em que motiva à ação; ele é alvo de disputas, além de ser inteligível e comunicável através da linguagem. A compreensão de Baczko acerca do conceito de imaginário apresenta uma maior coerência, sobretudo para o estudo da militância comunista. O uso de tal definição torna possível explicar não somente como os seguidores do comunismo percebiam a realidade, mas também como atuavam nela em decorrência dessa percepção. Jorge Ferreira, por exemplo, ao analisar a influência que a crença na inevitabilidade da revolução exercia sobre os comunistas, utiliza-se dos preceitos de Baczko, dizendo:

são as imagens exaltantes da vitória iminente e certa a condição para a própria possibilidade da ação. As descrições grandiloqüentes de si mesmo e da fraqueza e da iniqüidade do inimigo aparecem como representações imaginárias, sem dúvida, mas são elas que modelam os comportamentos, mobilizam as energias e legitimam as violências (Ferreira, 2002: p. 49).

No Brasil, é possível encontrar outros historiadores que bebem das idéias de Baczko. Sandra Pesavento deixa transparecer suas afinidades com o pensamento do autor, embora também sustente suas idéias em outros profissionais, como no filósofo Paul Ricoeur, no sociólogo Pierre Bourdieu e no historiador Roger Chartier, sobretudo na reflexão sobre o simbólico. Para ela, "enquanto representação do real, o imaginário é sempre referência a um 'outro' ausente. O imaginário enuncia, se reporta e evoca outra coisa não explícita e não presente" (Pesavento, 1995: p. 15). Observa-se, aqui, a ligação fundamental entre os conceitos de imaginário e representação. Pesavento igualmente chama a atenção para a função criadora do imaginário resgatada por Baczko. Essa função criadora/recriadora tem um fio terra, que é o já vivido, o já existente (um aspecto já percebido na abordagem de Castoriadis), no qual se apóia para que tenha aceitação social. O imaginário não está descolado da realidade, nem esta é fruto dele. Há a concretude das condições objetivas e a representação que dela se faz. A realidade, assim, pode ser entendida tanto como o que aconteceu, quanto o que se pensou do acontecido. Mas, se não são reflexos do real/social, como os símbolos se articulam com ele? Está aí uma questão assaz importante. Autores, como Edward Thompson, Robert Darnton, Carlo Ginzburg, Roger Chartier e outros, salientam a necessária correlação entre o contexto (econômico, político, social) e o discurso sobre ele, operando a linguagem como um meio de representação. Se a linguagem é veículo do imaginário, e este é um conjunto de representações, como é possível chegar ao social? Os historiadores podem alcançar algo que não seja representação? Quem melhor responde a essa pergunta é Pierre Bourdieu, ao pensar que a palavra concentra um capital simbólico acumulado pelo grupo que a enuncia e pretende agir sobre o real, agindo sobre as representações deste real (Apud. Pesavento, 1995: p. 18) . Ou seja, as representações veiculadas pela linguagem são construídas socialmente, daí que elas também fazem parte do social. O aspecto simbólico, ainda uma vez, foi explorado por Tânia Swain como a expressão do imaginário por excelência. Trabalhando o sentido conotativo, ele é uma representação que faz aparecer um sentido secreto. O plus na perspectiva de Swain, que de maneira semelhante a Pesavento recorre a Baczko, é sua "orientação" foucaultiana, na medida em que procura levar em conta as condições de produção que permitiram que determinados discursos aparecessem em dado momento. No entanto, é importante refletir sobre outro aspecto abordado pela autora, através da seguinte citação:

Na medida em que estabelece estereótipos e paradigmas, absorvidos e normatizados socialmente em níveis básicos, como o status sexual dos indivíduos, o perfil da ordem familiar, a atribuição de deveres/direitos inerentes a uma suposta 'natureza' dos seres, bem como a divisão do trabalho social, o imaginário, através das mais diferentes linguagens, atua como um vigoroso caudal que atravessa obliquamente as formações sociais, penetrando todos seus meandros, em todos os níveis, todas as classes sociais - interclasse - modelando conjuntos/pacotes de relações sociais hegemônicas, cuja duração compreende maior ou menor lapso de tempo (Swain, 1994: p. 49).

Ora, se o imaginário penetra em todas as classes, modelando relações sociais hegemônicas, estabelecendo estereótipos e status sexuais, etc., no que ele se difere do conceito de mentalidades, ou do de cultura, ou, ainda, de visão de mundo? Uma questão embaraçosa que exige respostas difíceis de serem pensadas. Talvez, uma forma de dar conta do problema seria apelar para a capacidade criadora do imaginário, aspecto já mencionado nesse ensaio e também trabalhado por Swain. Segundo a autora, o imaginário opera por dois registros: o da paráfrase, que seria a repetição do mesmo sentido sob outro invólucro; o da polissemia, que seria a criação de novos sentidos, o deslocamento de uma perspectiva, permitindo a instauração de novas práticas (p. 52). Colocando o imaginário como potência criadora, ele poderia ser pensado como a parte do psíquico responsável, justamente, por originar e reproduzir um conjunto de símbolos que caracterizariam uma determinada cultura. Ele se tornaria, assim, parte indispensável para a constituição de uma cultura ao mesmo tempo em que faria parte dela. Seria possível levar uma proposta como essa a efeito. Contudo, em um primeiro momento, talvez não se conseguisse vislumbrar os acertos e os equívocos de tal intento. Poderia-se pensar sua aplicação para o estudo da militância comunista, terreno no qual me permito experimentar. No caso da construção da identidade dos militantes do PCB, o imaginário desempenharia o papel da elaboração das representações sobre si e sobre os "outros", criando símbolos - com base no já vivido, no herdado -, atribuindo a eles determinados valores, estabelecendo certos padrões de comportamento, um processo sujeito à sanção do grupo e a mudanças a todo momento. Vendo qual a concepção que esses agentes sociais tinham da democracia, por exemplo, o conceito em questão funcionaria da mesma maneira, sendo responsável pela construção de uma série de representações sobre o tema. A todo esse conjunto de representações - de si e da democracia, além de outros relacionados com as mais diversas facetas da realidade - chamaríamos de cultura. Resta, porém, uma indagação: só é possível fazer uma análise funcionalista do imaginário? Não chegaríamos a outro resultado senão o de que essa categoria de análise desempenha um certo papel e só pode ser explicada em função disso? Outras confusões são comuns nesse campo relacionado ao mental. Márcia Espig, historiadora dedicada ao estudo do Contestado, levantou uma série de questões envolvendo as aproximações entre ideologia, mentalidades e imaginário (1998). Em relação a este da noção de ideologia, Espig menciona que ambos têm eficácia através da crença de um grupo, que devem fazer sentido para esse grupo, que ambos possuem pretensões universalistas de explicação do real e que não são reflexos dele, mas leituras possíveis a seu respeito. Contudo ideologia tem uma conotação negativa, como uma crença falsa e alienante que serve aos interesses de uma certa classe social. Imaginário, por sua vez, não questiona o verdadeiro ou o falso, mas tenta perceber sob que condições criou-se determinada "comunidade de imaginação", além de parecer ampliar a possibilidade de análise ao não dividir a sociedade em dominantes versus dominados, e, sim, destacando a existência de grupos diferentes e de imaginários diferentes dentro de uma mesma sociedade (p. 164-165). Distinguindo-se do conceito de mentalidades, a categoria do imaginário mostra não se restringir à longa duração, nem à abordagem estrutural; tenta explicar como acontecem as mudanças e pode ser determinado por outras variáveis, como sexo, etnia, etc. (p. 165). Tentando realizar uma síntese, podemos afirmar que o imaginário é um sistema de representações construídas coletivamente - apoiadas no já existente, ou seja, em uma ordem simbólica constituída e sancionada pela coletividade anteriormente - capazes de conferir sentido às múltiplas facetas da realidade, de dar condições para que os indivíduos identifiquem-se não somente a si próprios, mas também aos outros, de tornar possível que esses mesmos indivíduos expressem seus valores e crenças, definam seus papéis e posições no meio em que vivem e reajam frente a conflitos. Ele é um conceito capaz de apreender, dependendo do problema de pesquisa, as representações que um dado grupo social partilha entre si e com seus diferentes, podendo atravessar obliquamente uma sociedade, mas não tendo o compromisso de ser universal, pois diferentes são as representações que os indivíduos podem elaborar e múltiplas podem ser as combinações de representações dentro de uma mesma sociedade. Não basta, porém, prendermo-nos apenas em torno dessas questões. Torna-se igualmente relevante problematizarmos os canais que dão acesso ao imaginário: como chegamos até ele por meio das diferentes fontes? Que tipo de informação cada uma pode fornecer? É adequado falarmos em fontes privilegiadas do imaginário? É a esse conjunto de indagações que vou me deter nas próximas linhas, procurando ilustrar a reflexão com exemplos referentes à militância comunista, tal como realizado até agora.

No rastro do imaginário...

É fato que o advento da história cultural foi responsável pela descoberta de documentação até então não considerada aproveitável pelos historiadores. Como é possível, à luz do conceito de imaginário, trabalhar com esses variados testemunhos? Ao tratar dessa questão, Lucian Boia afirma que cada tipo de pergunta dispõe de fontes privilegiadas e de métodos específicos, que cada documento é suscetível de inúmeras perguntas (1998: p. 43) e que a ilustração, o texto literário e o testemunho oral se impõem como os três eixos privilegiados das perguntas da história do imaginário (p. 52). A postura de Boia pode ser entendida, se levarmos em conta que ela é extremamente influenciada pela psicologia analítica de Jung. Dessa forma, esses documentos são considerados privilegiados por descortinarem aspectos sociais dos quais a sociedade não tem ainda completa consciência, funcionando como sintomas sensíveis. Le Goff, ao mesmo tempo em que afirma que todos os documentos encerram uma parte do imaginário e podem ser comentados em seus termos, destaca obras literárias e artísticas como fontes privilegiadas desse campo (1994: p. 13-14). Uma afirmação dessa natureza requer alguma relativização. Ora, se considerarmos o imaginário como um conjunto de representações, elaboradas socialmente, capazes de conferir sentido ao mundo e de estimular uma determinada forma de agir, todo vestígio do passado concentra uma sua parcela, e não há razão plausível para considerar que as características de certos testemunhos possam excluir ou diminuir os demais. Vejamos essa proposta relacionada ao conjunto de fontes disponíveis para o estudo da militância comunista em Porto Alegre no período de 1945-1947. Os testemunhos reunidos são bastante variados. Trata-se de documentos de diferentes naturezas, cada qual revelando uma parte do imaginário comunista e exigindo o domínio de procedimentos distintos. Periódicos, Anais da Assembléia Legislativa gaúcha, panfletos, manuscritos, relatórios da polícia política do RS, obras literárias, peças teatrais, entrevistas e ilustrações fazem parte desse grupo. O material jornalístico - constituído pelos jornais Correio do Povo (de circulação comercial) e Tribuna Gaúcha, além da revista Libertação - pode ser pensado como representações possíveis acerca das múltiplas facetas do real (3).

PARTIDO COMUNISTA DO BRASIL - Reuniu-se, domingo, o secretariado da célula São João, em sua sede provisória. Além de outros assuntos ficou resolvida a convocação de uma assembléia geral para o próximo dia 7, quarta-feira, às 20 horas em local de costume. Nessa assembléia o secretariado prestará informes de suas atividades neste último mês. Será debatida, também, a possibilidade de criação de uma biblioteca, a qual será acessível a todos os interessados. Tratarão ainda da escolha do nome da célula. Na assembléia do dia 7, será aclamado um dos nomes já sugeridos. Ao patrono da célula será, oportunamente, prestada significativa homenagem (4).

Por meio de notícias como essa, é possível construir um mapa das atividades dos militantes do Partido Comunista, onde e com que freqüência aconteciam, que espécie de assuntos tratavam, como organizavam suas células e quais pessoas eram consideradas dignas de servirem de patronos dessas unidades. Ademais, a partir daí, pode-se indagar: como os assuntos das assembléias eram abordados? Que relevância tinham para os comunistas naquele momento e que traço de seu imaginário revelam? Que significados teriam os patronos e o que faria um personagem ser aclamado como tal? Existiria alguma identificação dos comunistas com seus patronos? Em quais sentidos? Essas são algumas das muitas perguntas possíveis de serem feitas. Tal documento pode dar acesso às comunicações e aos avisos de reuniões, de abertura de células, de comícios, bem como a matérias de opinião - sob a ótica comunista - acerca da situação política nacional e internacional, etc. Já os Anais da Assembléia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul proporcionam a oportunidade de se examinar os discursos e as votações dos candidatos comunistas eleitos. Esses discursos remetem às características e à importância que os deputados da bancada do PCB atribuíam às mais variadas questões da época, isto é, aos significados que teciam em torno delas. Em discurso proferido em 10 de novembro de 1947, quando o registro do PCB já havia sido cassado, Dionélio Machado protesta contra a repressão aos comunistas:

A ditadura anseia por aqueles tempos de unanimidade cômoda, a ditadura anseia pelo pântano, pelo charco em que consciências estão amordaçadas, em que o cidadão não pode defender seus direitos, por que esse direito quase que importa em jogar a própria vida e a liberdade (5).

Percebe-se que a repressão aos companheiros é associada à ditadura, e esta a elementos que suscitam imagens muito negativas: o pântano e o charco, lugares caracterizados pela imundície, pelo mau cheiro e pela estagnação. Qual o significado que isso teria para os comunistas? O que revela sobre sua maneira de perceber o mundo em que viviam? Os relatórios do DOPS, por sua vez, são repletos de documentos referentes ao dia-a-dia da militância comunista, como atas de reuniões e assembléias, por exemplo. Constituem-se material apreendido pela polícia política do Rio Grande do Sul, encaminhados ao Rio de Janeiro. Os relatórios podem nos remeter ao que se discutia no interior das diversas unidades - os problemas considerados prioritários, as estratégias para solucioná-los, as concepções acerca da realidade brasileira e internacional que os transpassam, etc. As fontes literárias, as peças teatrais e as entrevistas, por sua vez, remetem a aspectos e sintomas quiçá não perceptíveis nos demais documentos. A literatura comporta representações, através das quais é possível resgatar as sensibilidades de uma época e de um determinado grupo social. De acordo com Pesavento, o texto literário dá indícios dos sentimentos, das emoções, das maneiras de falar, dos códigos de conduta partilhados, da gestualidade e das ações sociais de um outro tempo (2000a: p. 8). Assim sendo, e levando em consideração que os autores são guiados por um conjunto de convicções e valores assimilados e construídos ao longo de suas existências, pode-se perguntar: que imagens/significados são associadas a sua realidade e que sentidos elas produzem? Que representações são elaboradas sobre ela, que sensibilidades afloram e a que atitudes encorajam? A literatura disponível abrange romances, novelas, poemas e memórias escritas por militantes comunistas no intervalo de 1945-1947. No caso das memórias, é importante mencionar, que, como referido por Pesavento, não se trata de "um espelho mimético do vivido ou do acontecido", e sim de uma representação que se coloca, trabalhada e ressignificada pela temporalidade que separa passado e presente, no lugar de um momento ou de um fato, no caso, o objeto da rememoração (2000b: p. 47). As peças teatrais O Homem Bom e Graças a Deus foram encenadas por comunistas em Porto Alegre. Não é possível analisarmos a encenação das peças teatrais, apenas seus roteiros. Assim, entendo que a melhor maneira de trabalhá-las seria tomando-as enquanto obras literárias. Como foram escritas em época anterior à conjuntura 1945-1947, nas décadas 1920 e 1930, seu estudo também coloca outras questões, visto que havia mudado o "horizonte de expectativas". Que mensagem os comunistas queriam passar ao encenar tais peças nos três primeiros anos que sucederam o Estado Novo? Que significados as obras adquiriam nesse novo cenário político? Quanto às fontes orais, o procedimento mais adequado seria observar como os militantes, na época em que foram entrevistados, vivenciaram e relembraram sua atuação, buscando informações que possibilitem compreender de quais maneiras eles percebiam aquele momento pós-ditadura Vargas. Ao proceder a análise do conteúdo das entrevistas (6), procura-se levar em conta noções importantes que devem nortear o estudo do testemunho oral, como o conceito de memória. Alistair Thompson adverte que quem rememora sofre várias influências: do pós-acontecimento, do papel de contador do acontecimento, do relacionamento com o entrevistador e das lendas de sua vida (2001: p. 66). Maurice Halbwachs, de maneira semelhante, salienta que, quando recordamos, as lembranças se adaptam às nossas percepções atuais, mas são e permanecem sendo sempre coletivas, recordações de um indivíduo inserido em um contexto familiar, social, nacional, etc. (1990: p. 25-26). Mas esse autor lembra que, dessa massa de recordações que dizem respeito aos membros de um determinado grupo, "não são as mesmas que aparecerão com mais intensidade para cada um deles. Diríamos voluntariamente que cada memória individual é um ponto de vista sobre a memória coletiva e que este ponto de vista muda" (p. 51) de acordo com o lugar que se ocupa no grupo. O conteúdo da memória é coletivo, portanto, por ser formado a partir de experiências comuns. Memória também deve ser entendida, aqui, enquanto representação do passado. Logo, ao analisar os testemunhos orais, será preciso não esquecer que a lembrança não é um reflexo do passado, mas sofre diversas influências, ressignificações e adaptações. Julieta Batistioli, por exemplo, trabalhou durante muitos anos na fábrica Renner e era militante do PCB, chegando a ser, no final da década de 1940, sob legenda de outro partido, eleita a primeira vereadora mulher da capital gaúcha. Um trecho de seu depoimento pode ilustrar a riqueza do testemunho oral para a história do imaginário comunista:

[...] ... a Gína ficou de assistente, minha assistente aí na Renner, e ela era tipo da [pessoa] antipática, sabe, ela era tão, tão... mas que mulher, ela dizia assim: 'Eu, Julieta, me reconhecem que sou comunista até pelo caminhar'. Digo (pensou): 'Ai, meu Deus, que nojo'. [...] (7).

O trecho revela (pelo menos da parte de uma das militantes) uma disputa talvez não declarada em torno de como seria a comunista por excelência, bem como a necessidade disso ser reconhecido e reforçado publicamente. Aspectos que se referem à construção da identidade daqueles que militavam no PCB. As figuras, embora não sejam tão abundantes quanto os textos, igualmente aparecem como veículo para o estudo do imaginário desses agentes sociais. Nos periódicos, as notas são, com alguma freqüência, ilustradas com fotografias, o que permite o enriquecimento da interpretação desse material. Durante a campanha para as eleições presidenciais de dezembro de 1945, muitas foram as reportagens publicadas na revista Libertação e no jornal Correio do Povo, exaltando as virtudes do candidato comunista Yedo Fiúza, acompanhadas de sua fotografia. Seria interessante analisar a que associações a imagem de Fiúza divulgada no jornal autoriza, o fato de estar virado para a esquerda, a expressão do seu rosto, a direção do seu olhar, etc., ou seja, que impressão se deseja transmitir a respeito do candidato através da fotografia (8). [FIG.I]

Em um exemplar do jornal Correio do Povo de agosto de 1946, uma reportagem dá conta do concurso realizado para a constituição do Monumento ao Expedicionário (no Parque Farroupilha), do qual participou o comunista Vasco Prado (9). A fotografia da sua maquete aparece na manchete, o que possibilita um interessante estudo sobre os significados que ela comporta, apoiado nas imagens da maquete para o monumento que Vasco Prado pensou para homenagear os Expedicionários e o que isso revela sobre o imaginário comunista. Comparando com as maquetes concorrentes, que elementos são partilhados com os não-comunistas? [FIG.II]

Vale, ainda, mencionar que os documentos oficiais do PCB também compõem o conjunto de fontes sobre a militância comunista. São fontes consideradas "tradicionais", mas que estão, poderia dizer, praticamente intactas às questões levantadas pela história cultural. É um olhar outro que se lança aos discursos, manifestos e conferências do Partido. De modo geral, múltiplas são as realidades às quais se pode ter acesso por meio de todos esses documentos. É preciso reconhecer que, embora a noção de imaginário esteja envolta em inúmeros questionamentos, referentes à validade de seu uso para a construção do conhecimento histórico, quando partimos para um exame mais apurado das fontes à luz desse conceito, percebemos o quanto ele pode ser profícuo. Dependendo do problema de pesquisa, elaboram-se e direcionam-se diferentes perguntas, tendo-se sempre a possibilidade de apresentar aspectos inéditos sobre o tema e de embutir novas peças no mosaico da história. E, para encerrar esse artigo, sirvo-me de algumas palavras de Le Goff, pedindo que não se faça do imaginário a panacéia da história, mas que seu halo de indefinição também não prive o trabalho do historiador da necessária pertinência de seu uso (1994: p. 31).

Bibliografia BACZKO, Bronislaw. Imaginação Social. In: Enciclopédia Einaudi (Anthropos-Homem). Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1985, v. 5. BOIA, Lucia. Pour une histoire de l'imaginaire. Paris: Les Belles Lettres, 1998. CASTORIADIS, Cornelius. A Instituição Imaginária da Sociedade.Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982. ESPIG, Márcia Janete. Ideologia, mentalidades e imaginário: cruzamentos e aproximações teóricas. Anos 90. Porto Alegre: PPG - História - UFRGS, nº 10, dezembro de 1998. ____________. O uso da fonte jornalística no trabalho historiográfico: o caso do Contestado. Estudos Ibero-Americanos. Porto Alegre, PUCRS, v. XXIV, nº 2, dezembro de 1998. FERREIRA, Jorge. Prisioneiros do Mito: cultura e imaginário político dos comunistas no Brasil (1930-1956). Niterói: EdUFF, Rio de Janeiro: MAUAD, 2002. HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Vértice, Editora Revista dos Tribunais, 1990. LE GOFF, Jacques. O Imaginário Medieval.Lisboa: Editorial Estampa, 1994. PESAVENTO, Sandra Jatahy. Em busca de uma outra história: imaginando o imaginário. Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 15, nº 29, 1995. ____________. (Org.). Leituras Cruzadas. Porto Alegre: Ed. da Universidade/UFRGS, 2000a. ____________. As leituras da memória: a cidade imaginária de um cronista do sul brasileiro (Antônio Álvares Pereira Coruja e a Porto Alegre do início do século XIX). Anos 90, Porto Alegre, PPG - História - UFRGS, nº 14, dezembro de 2000b. ____________. História & História Cultural. Belo Horizonte: Autêntica, 2004. SWAIN, Tânia Navarro. "Você disse imaginário?". In: SWAIN, Tânia N. (Org.). História no Plural. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1994. THOMPSON, Alistair.et all. Os debates sobre memória e história: alguns aspectos internacionais. In: Usos e abusos da história oral. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 2001.

Notas (1) Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, orientada pela Profª. Drª Carla S. Rodeghero. Bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). 

(2) Sandra Pesavento mapeou bem essa questão, mostrando de que maneira autores como Bronislaw Baczko, Lucian Bóia, Cornelius Castoriadis e Jacques Le Goff a entendem. PESAVENTO, Sandra Jatahy. História & História Cultural. Belo Horizonte: Autêntica, 2004, pp. 43-48. 

3) Para maiores informações sobre o uso do jornal como fonte para a história cultural ver: ESPIG, Márcia Janete. O uso da fonte jornalística no trabalho historiográfico: o caso do Contestado. Estudos Ibero-Americanos. Porto Alegre, PUCRS, v. XXIV, nº 2, dezembro de 1998.

(4) Correio do Povo, 06.11.45, p. 12. 

(5) Anais, vol. 12, 10.11.47, p. 363. 

(6) Cabe salientar que não abordarei, nesse ensaio, o processo de realização da entrevista, mas apenas a análise de seu conteúdo. 

(7) Julieta Batistioli, entrevista realizada em Porto Alegre, 22.07.1992, p. 77. 

(8) Correio do Povo, 29.11.45, p. 7. 

9) Idem, 11.08.46, p. 14.

Biografia Marisângela Martins licenciou-se em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul em 2004 e se dedica ao estudo da militância comunista desde 2003, quando passou a trabalhar, como bolsista de iniciação científica, junto ao projeto de pesquisa da professora Drª Carla Rodeghero, intitulada A conjuntura de 1945-1947: o combate à subversão e ao comunismo na encruzilhada do autoritarismo e da democracia, em Porto Alegre. Desde então, apresentou o resultado de algumas pesquisas nessa área. Atualmente, é mestranda do Programa de Pós-Graduação em História dessa mesma Universidade, estudando na linha de cultura e representações a relação entre os comunistas e a democracia, projeto apresentado sob o título Viva a Democracia: imaginário, militância comunista e democracia em Porto Alegre (1945-1947). Para maiores detalhes de sua trajetória intelectual ver currículo Lattes no sítio www.cnpq.br .

                                                                                                  

(1) Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, orientada pela Profª. Drª Carla S. Rodeghero. Bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq)



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