Labirinto - Revista Eletrônica do Centro de Estudos do Imaginário

  



Arte (manhas) do demônio no estampadinho da cortina: identidades e representações

 

Sainy C. B. Veloso[1] 


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CONSELHO EDITORIAL
Arneide Cemin
Ednaldo Bezerra Freitas
Valdir Aparecido de Souza

  

Resumo: A autora reflete a construção da identidade do Demônio delimitada dentro da relação binária de Bem ou Mal, todavia, superada na atualidade em favor do prazer que domina a sensação estética.

 

Palavras-Chaves: representação, identidade, prazer.

 

Circunscrito na percepção ótica, Leonardo da Vinci entendia o olho humano como janela da alma. Com sua grandeza e esplendor, o homem do renascimento centrava-se no universo e o especulava. Revolucionando esta ótica, Nicolau Copérnico afirmou um universo que não girava em torno da Terra. Nosso planeta e muito menos, o homem, não eram o centro de nada. Ambos eram apenas poeiras cósmicas na imensidão do universo.

Atordoados, recebemos, no século XIX, um outro golpe. Charles Darwin anunciou nossa origem animal. Parentes longínquos do macaco, a despeito da crença de sermos criados à imagem e semelhança de Deus. O entendimento e registro destas bordoadas, assim como, um terceiro e fatídico golpe, foi dado pelo pai da psicanálise, Sigmund Freud[2].  Propondo um novo aparelho psíquico, compreendendo o ego, o id e o superego, alertava para a concepção do ego dado como eu, como uma peneira por onde o inconsciente escorrega, incessantemente. Freud acabou com a ilusão de sermos senhores do nosso eu.

Descentrados, animais, e estranhos a nós mesmos vislumbramos a fugaz semelhança perdida. Por estas três feridas abertas reconhecemos o oculto, o familiar, o desconhecido, o estranho - fenda aberta na percepção humana que possibilitou a construção dialética do homem e do mundo.

O que vemos não são somente evidências objetivas, mas construções imaginárias. São simbolizações construídas histórica e socialmente. Portanto, estamos falando de imaginário como psiquismo humano formado individualmente e coletivamente expressando-se sobre a forma de representação e de simbolização (Castoriadis, 1999). Afirmando o sujeito como o sujeito do inconsciente, Jacques Lacan (1971: 11-20) assegura que o eu se constitui, inicialmente, em sua formalização mimética[3]. Isto é, a imagem é ilusoriamente tomada pelo real, por identificação inoportuna do objeto. O que é visto e representado é somente a projeção narcísica do sujeito, todavia, não reconhecida como tal. Assim sendo, o imaginário especular irá se identificar somente como visível e rejeitar seu modo de representar-se como imaginário. Todavia, a concretude do mundo apresentar-se-á sempre, como o único acesso autêntico ao real.

Um bom exemplo para o entendimento desta relação narcísica de isomorfia do homem e o mundo, formalizado no campo do imaginário especular[4], é a percepção humana do homem do renascimento. Acreditava ele, que a verdade e a perfeição eram passíveis de serem encontradas no mundo, porquanto se enfatizava valores como o naturalismo, o realismo, a harmonia (Diniz, 2001).

Ao contrário do imaginário especular, o imaginário simbólico é, segundo Lacan, o resultado da comprovação da impossibilidade de acesso ao real. Diferentemente da relação narcísica do primeiro, o sujeito reconhece o imaginário simbólico e refere-se a ele constantemente. Busca com a presença do signo e seu jogo simbólico, desviar a angústia produzida pela ausência do real.  Portanto, sua função é estabelecer significação e atribuir sentido a partir de um universo de signos, viabilizando a inclusão de homem na linguagem, resultado da divisão fundamental do sujeito (Lacan, 1977). Isto é, de sua percepção como separado da mãe e de sua necessidade de construir uma linguagem para se comunicar com o diferente, o outro.

Entendendo o mundo representacional como criação da linguagem na qual os discursos são moldados e proferidos, o historiador Roger Chartier (1988), considera primeiramente, a função simbólica como mediadora das diferentes apreensões do real, difundindo a ideologia na utilização dos signos lingüísticos, figuras mitológicas, religiosas, ou conceitos do conhecimento científico, para posteriormente, também abarcar as representações nos rituais, saberes populares e no senso comum.

Destarte, essa reflexão tem a pretensão de entrelaçar o popular, o senso comum, e o conhecimento científico, evidenciando produções de significados e identidades, posicionadas nos sistemas de representação e poder. 

No texto a seguir, subsistem três questões estruturais: primeiramente, a busca de sentidos, necessária ao espaço de falta - cisão entre o eu e o outro. Espaço intermediário entre o olho e o olhado. Entendemos que nele, as identidades são representadas e adquirem sentido por meio do código lingüístico e dos sistemas simbólicos.

Como perceber este estranho que fala por meio de nós, sendo nós e ao mesmo tempo tão estranho? Estamos cegos e insensíveis às imagens em virtude de seu bombardeamento? Como ver neste mundo “globalizado”, em que um pensamento único vem buscando se impor cada vez mais, e a cada dia perdemos nossa capacidade criadora? Fechando os olhos para ver[5]?

Encontramos intrinsecamente relacionada ao sentido, a sensação (aïsthèsis = estética). Ela é a segunda questão de nosso trabalho. Por meio dela apreendemos o memorável no corpo, marcado como cicatriz, vestígios do que não se esqueceu, ou seja, sem espelho para se refletir, “as marcas da carne são condições de ver”, afirma o filósofo francês Dibi-Huberman (1998: 35). Portanto, sensação como apreensão ética do mundo.

O que permanece é somente aquilo que faz sentido para recomeçar? As recorrências memoriais do corpo são movimentos constantes em direção a vida? Podemos fazer da vida uma obra de arte, tal como nos propõe Maffesoli (1996)?

Com a morte de Deus[6], contemplamos nossa própria morte.  Sem outra evasiva do presente, buscamos a criação do humano apoiada na ética do cotidiano. Nela bebemos conhecimento ao celebrarmos um depoimento oral como fonte de pesquisa e buscamos um encadeamento de significados que subvertem o fechamento do discurso teórico - fissuras pelas quais produzimos sentidos e o gozo da criação.

Em 11 de julho de 2002, estava eu fazendo um comunicado de pesquisa no Congresso de História Oral: Fronteiras, Migrações e Cultura, promovido pelo núcleo de História Oral de Goiás, sobre o imaginário e representações do demônio, quando, logo aos dez primeiros minutos, fui interrompida por uma participante, moradora de São João D’Aliança/GO, que ponderou: “A senhora está falando que o Demônio é criação de nossa imaginação. Então, Ele não existe. Se Ele não existe, Deus também, não. Como a senhora explica isso?”

Acreditando não ter sido suficientemente clara quanto à pesquisa, voltei ao conceito de representação e imaginário. Considerando as representações como esquemas racionais construídas no cerne das instituições, tal como nos propõe o filósofo e psicanalista, Cornelius Castoriadis (1982), percebemos como uma determinada realidade é construída, pensada, dada a ler, por meio de figuras produtoras de sentido, forjando entendimentos do outro e do espaço. A despeito de almejarem a universalidade, estas representações são produzidas de formas diferentes em diferentes momentos e lugares, contudo, sempre determinadas pelos interesses do grupo que as forjam, implicando em relações de dominação e poder.

Castoriadis pugna a autonomização das instituições, tão bem tolerada pelo marxismo[7], ao considerar a via simbólica constitutiva das instituições. Aponta uma mobilidade nas estruturas representacionais, assim como em suas relações, quando considera as instituições como uma rede simbólica onde se combinam as capacidades criativas do psiquismo humano oriunda do imaginário e os limites funcionais que a vida social impõe. Conjuga a alienação não re-significativa nas relações institucionais e históricas ao priorizar um suposto “real” e um “racional-funcional” com o deslizamento de sentido do imaginário. Todavia, segundo o autor, neste deslizamento os símbolos são investidos de outras significações, reconstruindo-se diferentemente das significações normais ou canônicas.

O autor define a vida social e histórica não só como mimeses ou representação do concreto, tal como na fase especular de Lacan. Concebe o social e o fazer da história no imaginário simbólico, portanto, na linguagem, de uma forma dinâmica, sujeita à transformação, onde a criação é o fulcro para a constituição ativa do novo.  Castoriadis entende o imaginário, mediado pelo símbolo[8], como criação sócio-histórica e psíquica denotadora de diferentes sentidos do mundo. Alvitra um sujeito que se constrói tanto quanto constrói o mundo, por meio de sua ação. Implícita nesta ação estão os atos de criação lingüística constitutivos da identidade, envolvendo um trabalho discursivo, marcando fronteiras simbólicas.

No reconto do evangelho, José Saramago em o Evangelho segundo Jesus Cristo   (1991: 393), compõe o humano excluído da poderosa construção das identidades de Deus e do Demônio:

Não te aceito, não te perdôo, quero-te como és, se possível, ainda pior do que és agora, Porquê, Porque este Bem que eu sou não existiria sem ti seria inconcebível, a tal ponto que nem eu posso imagina-lo, enfim, se tu acabes, eu acabo, para que eu seja o Bem, é necessário que tu continues a ser o Mal, se o Diabo não vive como Diabo, Deus não vive como Deus, a morte de um seria a morte de outro.

Por que Deus reivindica para si o poder de definir a identidade, marcando os territórios do Bem e do Mal? O humano é tão anódino na cadeia de significação formada por estas duas identidades?

Todas as identidades são construídas sobre o significado ‘positivo’ de qualquer termo. Marcadas pela diferença são definidas no reconhecimento perturbador da relação com o Outro, da relação com aquilo que não é, com aquilo que falta e é chamado por Derrida (1981), de exterior constitutivo. O autor mostra como a identidade é baseada no ato de excluir algo e de estabelecer uma violenta hierarquia entre dois pólos. O que é peculiar ao segundo é sempre reduzido em oposição à essencialidade do primeiro. Assim sendo, o excluído é o exterior, o excesso, é o diferente transformado em abjeto. Como execrável, o Demônio, Anjo decaído, indisciplinado, foi expulso do convívio de Deus. Responsável pela Lei moral, o Pai-Deus recalcou uma parte muito importante da vida psíquica, as pulsões, diabolizando-as (Muchembled, 2002). Assim concebido, o discurso da alteridade é aqui o discurso de políticas disciplinares, positivistas e antropologicamente superior. Quem é o outro de quem, senão aquele que já estabeleceu a diferença, pergunta Jean Baudrillard (1992: 32).

Rejeitando as ordens de um Deus-pai tirânico, o Demônio, figura onipresente, originou-se na oposição para diferenciar a identidade de Deus. Contudo, mostrou também, a face terrível de um Deus punitivo. Coexistem num jogo de identidade e poder conforme fala o Jesus de Saramago:

Percebo agora por que está aqui o Diabo, se a sua autoridade vier a alargar-se a mais gente e a mais países, também o poder Dele sobre os homens se alargará, pois os teus limites são os limites Dele, nem um passo mais, nem um passo menos (p.371).

Posteriormente, à definição das figuras do Bem e do Mal, criou-se uma grande hierarquia de demônios e anjos para sustentar seus poderes. Indagamos: Há uma relação de alteridade entre ambos? Não seria somente Deus, do alto de sua arrogância a definir todas as outras identidades? E as outras identidades, consideradas resto, excesso, ignóbil, não seriam o que Ele não pode assumir ser? Humano?

Supostamente humanos, existem grupos sociais que pensam a alteridade, pensando a si mesmos como superiores, tal como observou Norbert Elias (2000). Para sustentarem sua superioridade social, esses grupos utilizam-se de estratégias para manterem seu poder, como, por exemplo, atribuir as características “ruins” aos grupos excluídos, considerados como inferiores.

Alertando sobre aqueles que detêm e manipulam a alteridade em seu próprio proveito, Jean Baudrillard (1992) esclarece que, na definição do outro por estas políticas, é levada em consideração a diferença estrutural e não a ordem simbólica. Ao priorizar a organização simbólica, Baudrillard justifica sua importância frente às transformações que a sociedade de consumo opera nas estruturas mentais do homem contemporâneo. Segundo o autor, a sociedade de consumo impõe o entendimento do signo somente como imagem visível, aparência[9], destituído de referencial em memória e representação e construção  simbólica.

Em o Evangelho segundo Jesus Cristo, Saramago retira as imagens de Jesus, do homem, do Demônio e de Deus, de suas identidades construídas no imaginário especular. O autor constrói seus personagens fora da relação binária, todavia, apresentando complexas e tensas figuras de identidade.  O humano, pecador, é vestígio do sagrado, excluído e joguete na luta de poder construída pelo homem[10], entre o Bem e o Mal. Articula os opostos, conferindo traços de bondade, naquele que deveria ser somente maléfico, o Demônio, e Jesus é filho de Deus, entretanto, opta por sua humanidade. Percebemos claramente a recorrência de Saramago ao imaginário simbólico ao articular uma sobredeterminação ou uma falta, sujeita ao jogo da diferença, marcando as fronteiras simbólicas, mesmo sendo, a refeitas todo o momento.

Contrariamente as identidades sustentadas na unidade e homogeneidade interna, construídas ao longo de toda história, a modernidade tardia nos mostra identidades fragmentadas e nunca pensadas em uma totalidade primordial. São multiplamente construídas nos discursos, práticas e posições que podem, inclusive ser antagônicas como as identidades de Deus, do Demônio, de Jesus e do Homem, de Saramago.

Impossível falar de identidade como criação lingüística, envolvendo um trabalho discursivo, marcando fronteiras simbólicas, quando se fala sozinha. Percebi que estava fazendo um solilóquio, quando a participante do Congresso de História Oral, voltou a falar, indignada e indiferente à minha exposição: Mas eu já vi o demônio. Surpresa, perguntei: Onde? Ela: Na cortina de florzinha, transparente, de meu banheiro. Curiosa, voltei a perguntar: Mas, se a cortina era estampadinha como você viu o Demônio? Ela respondeu: No desenho das flores. Eu: Quando? Ela: Todo dia, quando tomo banho.

Estupefata, sem entender nada deste “novo Demônio” que se apresentava desmaterializado em uma cortina transparente, e não querendo perder a chance de fazer mais um ‘exorcismo’, optei pelas suas históricas representações. Ilustrei com a dispensável representação corporal da entidade maligna dos hebreus primitivos e a lenta construção do Diabo cristão.

Lembrei-os da perseguição aos cristãos nos três primeiros séculos, das imagens nas catacumbas e da inexistência da representação do Demônio. Nossos antepassados não precisavam imaginar um rosto para o Demônio, porquanto toda crueldade e maldade humana serem transpostas para a arena romana. Nela, gladiadores, leões e cristãos se trucidavam sob o olhar e gozo coletivo.

A corporificação do Diabo cristão consumiu pelo menos 400 anos de deliberação e só se consolidou no século VII, por meio da arte cristã.  Portanto, o Demônio da Idade Média não tinha poder. A astúcia humana era superior aos poderes do pobre diabo, que em representação visual passava de serpente, a dragão, a serpente com chifres, a morcegos, ao bode e tantos outros. Após o século VII o imaginário europeu construiu inúmeras representações.

Com o surgimento da era moderna na Europa, o surgimento da imprensa e as reformas religiosas, inúmeras ilustrações do demônio se popularizaram em uma estética do medo.  Um prazer estético se propagou associado ao mal. Basta lembrarmos das ilustrações da Divina Comédia, escrita no século XIV, pelo italiano Dante Alighieri, e da iconografia do inferno renascentista. São imagens de ferros em brasa perfurando vaginas, entre outras. Imagens sado-masoquistas de fazer inveja até ao Marquês de Sade. Entretanto, sabemos o quanto a tradição cristã demonizou a sexualidade, como sabemos também, da dicotômica relação entre repressão/liberação[11], ou seja,  em virtude desta repressão, o prazer sexual se apresenta libertador e integrador, no imaginário, restabelecendo a identidade entre a natureza e a cultura. A projeção imaginária revela assim, os desejos recônditos do inconsciente, reprimidos, nos quais a atividade sexual infinita se configura concomitantemente como o grande tabu da cultura e o supremo desejo, inatingível (Souza, 1986).

Visto na cortina de um banheiro, este novo Demônio, cujo imaginário arde na sociedade de consumo popular, se esconde passivo e voyeur, nos metros e metros de plástico transparente. Prolifera-se no cotidiano, despertando desejos adormecidos. Ali, na inocente cortina de um banheiro, ele agita as forças reprimidas e obscuras do corpo – a sexualidade transformada em neurose e perversidade. Pobre Demônio! À espreita, todo dia, vendo e sendo visto, desejando e sendo desejado, entretanto, desmaterializado. Preso entre florzinhas de uma cortina. Sigmund Freud bradaria: há uma clara correspondência entre o imaginário do inferno e as profundezas da mente humana. Lá, nos subterrâneos da mente humana, deparamos com nossos instintos. Deparamos com o animal humano queimando nas chamas de seu desejo, no ímpeto à violência e peculiaridade de seu egoísmo.

Lembrei-me da proliferação das imagens de Satanás, a partir do século VII. Sua figura monstruosa e assustadora se multiplicando nos vitrais, nas colunas e nos tetos dos templos. No popular, o aspecto violento do sexo, invariavelmente associado ao Demônio, era sublinhado nas imagens por enormes falos __ uma representação, possivelmente, absorvida de outras culturas. Mostradas em murais nas ruas, assume a imaginação de clérigos e do povo, abrindo caminho para as práticas mais obscuras da Idade Média, cujo ápice é a Inquisição.  Quanto mais o homem se afastava do humano, mais perto se sentia de Deus, e maior força adquiria o Demônio.

O imaginário do século XVII produziu um demônio poderoso oriundo da disputa por poderes na Contra-Reforma entre protestantes e católicos. A austera moral protestante criou a imagem terrível do demônio, a qual reconhecemos até hoje: chifres, rabo, olhos vermelhos, feições animalescas. A Igreja Católica arcou com o lado “bonzinho” da história. Instituiu a prática do exorcismo. Em nome de Deus, arrogou-se o poder sobre as almas. Milhares de pessoas foram libertados do demônio queimadas na fogueira da Inquisição. “Piedosamente”, a Igreja encontrou uma maneira de salvar não só a alma dos cristãos, mas também, seus corpos. Dessa maneira exercia seu pleno poder sobre o corpo e a alma humana (Muchembled, 2002).

A imaginação simbólica permite que elementos psíquicos[12], imagens mentais, sobreviventes na mente humana desde tempos imemorial cheguem à consciência por meio da linguagem, tal como considera Castoriadis (1982). Não são resíduos mortos, são, sobretudo, valiosos pela sua natureza histórica. O ser assim como a cultura é um entrecruzamento de sentidos, condensadores de experiências do passado que se reorganizam constantemente. Constituem a ponte entre a racionalidade de nosso pensamento e uma forma de expressão mais pictórica, apelando para nossa sensibilidade e nossa emoção, permitindo associações entre o mundo racional e o mundo instintivo. A fenda entre estes dois mundos se dilata proporcionalmente, até chegar em uma dissolução neurótica, quanto mais nos afastamos deste mundo primitivo e de seu simbolismo (Jung, 1964).

Sigmund Freud (1930), já no início do século XX, advertia a Europa, sobre a ameaça da barbárie como destino, oriunda do cinismo e indiferença narcísica, estagnadores da condição humana. Após quase um século, vários pensadores, cientistas, artistas e outros, estendem esta ameaça à cultura. A produção de imagens forjadas, consentidas e consumidas como montra, isto é, destituída de referencial em memória, representação, e relação simbólica, condensa-se em um conjunto de políticas. Estas imagens, perpetradas por sistemas totalitários e democráticos definidores da geopolítica veiculam um suposto bem-estar e segurança. Impõem uma territorialidade diabólica onde o Estado-nação com seus códigos, práticas e instituições atualizam o mito do pertencimento e da comunidade de destino, definindo identidades. De tal forma, a figura do Demônio é cercada de ambigüidades. Põe o Demônio dentro de casa ao travesti-lo de anjo anunciador de novas esperanças, carregando consigo uma suposta abertura para o universal e um fechamento para o particular repressivo. Inclui pelos mecanismos perversos do mercado e exclui de múltiplas formas, pelo desemprego, pela fome, pela miséria, pela cultura (Muchembled, 2002).

Sendo assim, a imagem do demônio perdeu sua identidade universal ou pelo menos atemporal na qual podia se acomodar. Atualmente, saiu de sua indolência ao ser chamado a ocupar tudo o que, além de ser diferente e desconhecido, favorece as políticas discriminatórias dos Estados-nação, dando origem às várias lutas localizadas. Desde a ameaça russa, o Demônio soviético vem velozmente, mudando de cara. Passa de Bill Clinton, ao presidente sérvio, a Sadam Hussen, a Bush, a Bin Laden e outros. Presente ao mesmo tempo em vários lugares, como quando o presidente americano George W. Bush satanizou o líder islâmico e os demais países que se opõem à política externa norte-americana, posteriormente a tragédia de 11 de setembro de 2001.

Por sua vez, Bin Laden qualificou Bush como o grande Demônio do ocidente, mantendo seu posto de defensor dos pobres e oprimidos. Os ataques à Nova York e Washington expandiram seu internacionalismo, identificado no imaginário popular islâmico como o Enviado, unificador do mundo árabe em virtude de sua oposição fundamentalista, coligada com os pobres, ao regime impopular da Arábia Saudita. O projeto de unidade ideológica árabe e islâmica, na segunda metade do século XX já tinha focalizou outros satãs: Israel e os Estados Unidos.  Lembremos que por um século, a unidade política árabe e islâmica esbarrou em diferenças entre os Estados e nas políticas discriminatórias de muitos regimes, face às suas minorias nacionais, religiosas ou étnicas. Explicitamente, o olhar etnocêntrico de ambos, se esbarra no reconhecimento e respeito pelo diferente, o ‘outro’. Jogam um jogo de inclusão e exclusão, construindo identidades de acordo com suas conveniências ideológicas, entretanto, visando atualizar o mito do pertencimento e da comunidade de destino.

Bendita cultura popular legou-nos a pop arte – arte popular criada pela cultura de massa. Os artistas na década de sessenta deram ênfase às imagens produzidas no cotidiano urbano e se inspiraram nos meios de comunicação de massa __ imagens publicitárias, histórias em quadrinhos, imagens produzidas em série, industrializadas.  E lá estava o demônio, neste contexto. Na cortina estampadinha, transparente, acessível a todos. Vendido a metros no cotidiano banal da sociedade de consumo, em qualquer banheiro, em qualquer lugar. Presente na mais recôndita intimidade __ o banheiro. Lugar de intimidades e higienes. Nele nos lavamos, penteamos, defecamos, cantamos, choramos, enfim, lavamos nosso corpo e nossa alma. Nele, despidas, tomamos contato com o fogo (chamas escabrosas do inferno) que consome nossas carnes e orifícios por onde o Diabo entrou. Ocultando-se sob múltiplos disfarces, o Demônio pode, inclusive, segundo a crença popular, entrar no corpo pelos seus orifícios __ crença encontrada tanto nas pequenas cidades de Minas Gerais, como nos países anglo-saxônicos.  Sustentada através do espirro, este é entendido como a expulsão do demônio, seguida da frase “Deus o abençoe” (Souza, 1986). 

Imaginei esta “inquisidora” debaixo do chuveiro, com a água inutilmente, tentando apagar seu fogo, desejando encontrar às espreitas, um perverso Demônio, que a levaria, de corpo e alma ao paraíso e gozo divinos.

Seduzida por esta imagem, percebi, tardiamente, quão esperta foi esta participante. Roubou-me a cena e o demônio. Sua sensualidade infantil e perversa utilizou a mesma tática dos colonizadores europeus quando chegaram às Américas (Souza, 1986). Invocou o demônio ajustando-o em seu jogo maniqueísta de expansão e poder. Se ela tinha acesso ao demônio, também tinha a Deus. Entretanto, eram figuras desmaterializadas, abstratas, percebidas de forma inusitada na cortina transparente. O poder era só seu em percebê-los. Ela destituiu o Demônio de seu ar caricato, dando-lhe uma nova representação presente na volúpia da intimidade carnal, no poder de ver e ser visto, no dinheiro circulante na sociedade de consumo, no qual é produzido a metros. Naquele momento, seu poder se expandiu. Ela transferiu seu Demo-pop para mim. Eu era o demônio.  Ela a representante da Igreja que, em nome de Deus, estava ali para expulsar o Demo. Seu poder era tão completo, que a sala ‘veio a baixo’ com as suas afirmações, impossibilitando-me de continuar o comunicado. Afinal, o demônio o qual represento, é o mais terrível de todos, o Demônio que reside nas profundezas de nossas fracas carnes humanas.

Encarar a face do Demônio fora do universo religioso é talvez, a tarefa mais árdua no mundo contemporâneo. Significa encarar o lado obscuro de nossa própria face. Ela nos remete aos problemas concretos do poder, da soberania, da vigilância das consciências, da repressão sexual, das identidades, entre outras.

Independente de suas múltiplas faces, as representações do Demônio, sempre se encontraram em um lugar-comum – a parte sóbria de nossa sociedade. Contudo, percebemos historicamente, que a partir do séc. XVII e XIX, as explorações dos meandros da consciência e inconsciente humano, afastaram o Demônio de seu papel principal. Esse movimento se acelerou no século XX quando se percebeu as sutis metamorfoses do demônio interior (Muchembled, 2002).  O mundo ocidental começou a desconfiar de si mesmo e de suas pulsões mórbidas. A figura do Demônio ressurgiu assim, no imaginário contemporâneo, como o fantasma da barbárie, da bestialidade humana, nos discursos de enquadramento de identidades - presentificando o perigo do uso da força bruta e negação do outro, mascarando a ferida narcísica, já aberta por Copérnio, Darwin e Freud. Impossibilita dessa maneira, a busca de novos olhares sobre si mesmo, o mundo e novas formas de trançar os fios do tecido social.

Impossível não reconhecer a valiosa colaboração das diversas representações do BEM e do MAL, durante todos estes séculos, como motor de civilização, na busca de superação em todos os domínios, religiosos, políticos, intelectuais, sociais, até porque nosso imaginário guarda fortes marcas simbólicas.

Após todos estes séculos de expurgos, um outro sentido começa a se instaurar, principalmente na Europa – a transubstanciação da figura do Demônio, permitindo e inserindo-o no humor e na lógica do hedonismo.

Afinal, o Demônio seria uma figura imaginária, percebido na cortina estampadinha do banheiro, despertando desejos e perversidade, oriundo da sexualidade reprimida da participante de São João D’Aliança/GO, ou despojado de toda sua reverência cultural seria apenas, motivos da estamparia da cortina? Mais uma vez, o popular celebrou a simplicidade e a vida?

Diabolicamente bom, o Demônio surge como símbolo das pulsões perversas do homem, entretanto, não mais como figura punitiva. Ele é hoje, principalmente na Europa, símbolo de bem-estar (Muchembled, 2002).  Ilustra os rótulos das cervejas, chocolates, sex shop, tecidos, carros, historias em quadrinhos, chicletes e comete várias outras imposturas satânicas. A banalização do mito maléfico integrado a um vasto imaginário lúdico trazido pela cultura popular, publicidade, filmes, historias em quadrinhos, é decorrente de uma estética da existência que permite integrar o uso dos prazeres na vida social (Maffesoli, 1996).

Encontramos na derrisão popular ao Demônio, o prazer que domina a sensação estética. De tal forma, transgredir as instâncias de controle externo, produtoras de recalque é um valor positivo em um universo marcado pelo hedonismo.  Dessacralizando o cotidiano, desestruturando os limites binários, oscilando entre a selvageria e a civilidade, a transgressão, e a rebeldia, o signo maligno brinca de esconde-esconde com suas múltiplas faces estampadas na cortina estampadinha do banheiro?

Afinal, o Demônio seria uma figura imaginária, percebido na cortina estampadinha do banheiro, despertando desejos e perversidade, oriundo da sexualidade reprimida da participante de São João D’Aliança/GO? Seria uma figura demoníaca interposta entre nós, delimitando identidade e jogo de poder? Seria o deleite de todos nós? O demônio despojado de toda sua reverência cultural seria apenas, motivo da estamparia da cortina?

Mais uma vez, o popular celebrou a simplicidade e a vida?

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SOUZA, Laura de Mello e (1986). O diabo e a Terra de Santa Cruz: feitiçaria e religiosidade popular no Brasil colonial. São Paulo: Companhia das Letras.



[1] Mestra em Arte e Tecnologia da Imagem e atualmente é doutoranda em História da Cultura - UnB.

[2] Freud aponta estes três cortes do real como feridas narcísicas. In Conferências Introdutórias sobre a Psicanálise (1916-17), Ed. Standart Brarsileira, vol. XVI, Ed. Imago, 1976.

[3] O investimento libidinal volta-se para o ego (eu) do sujeito. Foi denominado por Freud de narcisismo. “O eu é como Narciso: ama a si mesmo, ama a imagem de si mesmo [...] que ele vê no ouro. Essa imagem que ele projetou no outro e no mundo é a fonte do amor, paixão, do desejo de reconhecimento, mas também da agressividade e da competição”. In Quinet (1995: 7).

[4] Jacques Lacan explica a constituição do eu durante o “estágio do espelho” a partir da imagem especular. O eu se projeta nas imagens em que se espelha, buscando uma completude repetidamente, lograda. Metáfora da condição humana condenada à busca de um sentido e uma completude, onde o sentido está sempre em falta. In, Santaella, L. e Nöth, W. (1997). Imagem: Cognição, semiótica, mídia. São Paulo: Iluminuras, p. 190-191.

[5] Ver para nós significa conhecer.

[6] A morte de Deus nietzschiana anunciou também a morte do homem. Todavia, prenuncia um novo nascimento: o super-homem, que é capaz de viver sem Deus, sem consolo, sem redenção. In Pena-Veja e Almeida (1999: 94).

[7] Marx não desconsiderava o imaginário. Entretanto, para ele o imaginário era uma ilusão, uma solução fantasiosa das contradições reais. In Instituição Imaginária da Sociedade,  p.161.

[8] O imaginário utiliza-se do símbolo para sair de sua virtualidade e atualizar-se, isto é,  fazer-se imagem “real”.

[9] Chartier (1988), caracteriza este signo como montra, vitrine.

[10] Animal exclusivamente racional e pretenso controlador de si e do mundo.

[11] Quanto maior a repressão, maior o desejo de liberação.

[12] Estes elementos eram, até então, consideradas “resíduos arcaicos”, chamados por Freud de imagens oníricas e localizadas somente em sonhos.  

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                     



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