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Universidade Federal de Rondônia
Revista Eletrônica do
Centro de Estudos do Imaginário

Labirinto - Revista Eletrônica do Centro de Estudos do Imaginário

  


Gênero e violência: práticas, imaginários, feminismos e políticas públicas.

Arneide Bandeira Cemin[1], Camila  Alessandra  Scarabel[2], Clícia Henriques  de Souza[3], Fátima B de Souza[4], Márcia Noleto[5], Naiara dos Santos Nienow[6], Silvanio De Matia Gomes[7]


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CONSELHO EDITORIAL
Arneide Cemin
Ednaldo Bezerra Freitas
Valdir Aparecido de Souza

  

RESUMO: Este artigo apresenta resultados de pesquisa e extensão acadêmica sobre violência contra a mulher em Porto Velho\RO. Identifica como fatores de violência contra a mulher à dependência econômica feminina em contexto de pobreza e os imaginários que instituem a inferioridade feminina. Fornece subsídios para Políticas Publicas de gênero. Argumenta que o modelo proposto socialmente para o exercício da sexualidade masculina é informado por dispositivo produtor de subjetividade sexual, que se fundamenta em imaginário social que é também indicador do valor negativo que a sociedade brasileira atribui a mulher. Considera a condição de área de colonização do estado, verificando dados de migração e o modo como ela incide sobre a “circulação de mulheres”. Expõe dados de mobilidade social e rede social e estabelece relação entre as praticas de violência, a pobreza e o imaginário social. Conclui que a violência é social e generalizada, embora afete com maior gravidade a parcela pobre da população.

PALAVRAS-CHAVES: Gênero, Violência, Imaginário, Políticas Públicas.

 I-                                Introdução. 

Esse artigo apresenta os resultados parciais do projeto ‘Gênero, família e violência em contexto urbano (cotidiano, rede social e imaginário)’; em desenvolvimento no Centro de Estudos do Imaginário Social, CEI/UNIR, com bolsistas do Programa de Iniciação Cientifica (PIBIC-CNPq-UNIR. 

Gênero, família e violência

O emprego da noção de gênero tem origem na tradição antropológica e psicanalítica feminista, e visa, como na gramática, acentuar a diferenciação entre seres e coisas designadas como da ordem do masculino e do feminino. Ou seja, a partir de uma diferenciação anatômica – pênis ou vagina – a sociedade classifica e institui os sujeitos em uma ordem social previamente instituída. Essa ordem define lugar, objeto e comportamento específicos a homens e  mulheres, distribuindo a cada um funções, saberes e poder social de acordo com as características distintivas que a própria sociedade constrói como sendo pertinentes a cada um dos sexos. A exemplo de inteligência e coragem para os homens, afetividade e fragilidade para as mulheres.

Analisando o “estado da arte“ sobre a produção antropológica em torno do tema de gênero, Heilborn (1982) indica que a categoria gênero veio em substituição à categoria mulher que não dá conta do caráter relacional que a noção comporta. Adverte que a simples substituição de uma noção por outra não garante o estabelecimento da interdependência estrutural dos pares de oposição masculino e feminino. 

Scott (1995) argumenta que a categoria de gênero pode ser tomada em duas acepções – forma de classificação e dado constitutivo da identidade dos sujeitos. Entretanto, há que se considerar o fato de que  gênero é categoria construída em um solo especifico, que é a academia. Instituída portanto, pelas concepções de homens e de mulheres de classe media branca, - sujeitos das revoluções políticas e comportamentais desde o final da Segunda Guerra Mundial. Ao mesmo tempo, os gêneros se instituem e se entrecruzam socialmente de vários modos: classe, etnia, religião, opção partidária, faixa etária, escolarização e profissão. Alem disso, no interior de cada pólo as diferenças também se multiplicam. Por isso não podemos conceber o feminino e o masculino como oposições estanques, mas  examinar o contexto dinâmico e concreto das relações sociais, pois ali as solidariedades e os afrontamentos se mostram como arranjos plurais que desautorizam dualismos simplificados. É preciso ainda, considerar que gênero e identidade não são substâncias ou unidades fixas e naturais, mas relações construídas culturalmente; tratando-se portanto, de realidades  múltiplas e mutáveis (Scott, 1995; Butler,2003). De tal modo que a pós-modernidade já não indaga apenas sobre o sujeito, mas principalmente sobre “quem vem depois do sujeito”, a exemplo de Haraway que anuncia a identidade cyborg, ao avaliar as conjunções entre o homem e as maquinas (2000); e Butler (2003) evidencia a construção social das demarcações de fronteiras entre os gêneros, criticando tanto o falocentrismo quanto à heterossexualidade compulsória.

Os estudos sobre família e gênero no Brasil correlacionam pobreza com família irregular, sem muita consideração sobre os aspectos políticos e ideológicos que envolvem a questão. A exemplo das impossibilidades que as famílias de baixa renda encontram frente à discrepância entre sua vida familiar e as condições da família pequeno-burguesa, e ainda as dificuldades para se oporem ao autoritarismo do sistema, que nega as diversidades étnicas que envolvem o processo de construção de identidades parentais e de gênero (Kaloustian, 1994; Donzelot,1980). A diversidade nos modelos de relacionamento desorientam as pessoas incidindo sobre o incremento de conversões religiosas seja ao catolicismo carismático ou ao protestantismo em busca de paradigmas para as relações conjugais (Machado, 1996). 

Por outro lado, predomina o pressuposto de que a família existe enquanto unidade substantiva, derivada apenas de processos biológicos, sem indagação sobre a existência dos suportes de reprodução material e simbólico que lhes fundamenta a existência. Neste sentido compete indagar: a família existe? Qual a sua forma? Quais são as suas condições de sustentação? (Sluski,1997)

Em seu estudo sobre mulheres, relações violentas e a prática feminista, Gregori, analisa o modo pelo qual as mulheres vêem-se a si mesmas e aos seus parceiros, a fim de pensar como as relações de conflito conjugal se instituem e ganham permanência. A autora indica que no geral as explicações para a crise doméstica são atribuídas a “... condutas inadequadas de seus maridos: beber, ser mulherengo, ser boêmio, praticar ‘exageros’ sexuais” (Gregori, 1993:140). A autora reconhece que seu estudo deixou uma lacuna importante ao não analisar o que ela chamou o “lado dos homens”. Ao mesmo tempo, que falta ao seu estudo, bem como as pesquisas nas quais ele se baseia, a etnografia das condições familiares.

No que refere a família, a violência é vista como conflito de gênero e de gerações, onde o mais fraco é “coisificado”. Entendidos como permanentes, esses conflitos - manifestos ou latentes – seriam agravados ou suprimidos em função dos modelos de gestão dos mesmos. Quando o modelo é autoritário, suprime a flexibilidade necessária à superação das disputas; e quando é democrático, abre espaço para a busca e a consolidação de resolução. As condições de degradação econômica e/ou simbólica ameaçam a possibilidade de condução adequada aos conflitos inerentes ao convívio familiar (Vicente, 1994). 

De acordo com Weber (1986), dado o “politeísmo de valores”, não é possível eliminar a luta que surge como o fundamento de qualquer relação social. Neste sentido, a violência indica a articulação lógica em um  confronto de valores. Retomando as reflexões de Weber, Maffesoli (1987) indica que a potencialidade conflitual inerente aos processos societários implica um certo grau de “ritualização da violência”. Ou seja: a regulamentação das armas e dos meios de luta; o apelo aos precários direitos humanos; o consenso para provocar ou terminar uma guerra; o estabelecimento de regras do jogo. A desordem para ele tem função estrutural expressando a dialética viva do imaginário e do instituído. Nesse sentido, Foucault (1987) também critica a visão simplesmente dualista do poder como constituindo a  relação dominante/dominado elucidando que o exercício do poder sempre comporta manobras e táticas pelas quais o sujeito dominado pode operar sua liberdade.

Partindo do pressuposto que a função simbólica especifica o humano como ser de cultura (Levis-Strauss, 1989), consideramos sobretudo o aspecto simbólico, ou seja, cultural da violência física. A violência em todas as suas formas de existência social é violência lógica, instituinte  cognitivo pelo qual  estabelecemos  relações e identidades. A lógica é ser de pensamento  e de práxis. Envolve relações econômicas e praticas classificatórias (Bourdieu). A violência pode ser compreendida como dispositivo para a resolução de problemas de definição da realidade, isto é, apropriação de recursos para a efetivação do real. Trata-se do poder de nominar, situar, deslocar, preservar, destruir, acumular e distribuir palavras, coisas e seres. As  lógicas classificatórias e as categorias coletivas do entendimento constituem o mundo social. Ou seja, instituem as relações sociais e, entre elas, as relações de gênero (Durkheim e Mauss, 1999; Levi-Straus, 1989). 

Por isso o mundo humano é, a cada vez, instituído pelo imaginário social de época, a partir das matérias já trabalhadas pela imaginação ao longo da historia do sapiens (Bachelard, 1990, 2001; Durand, 1997), ressignificando a tradição de modo histórico e criativo, através do dizer e do fazer sociais, pois o humano é uma espécie de ser que  define a si mesmo de maneira inventiva, ao modo da poieses (Castoriadis, 1982). Por isso é importante criticar a forma pela qual a sociedade define o humano e o lugar que homens e mulheres devem ocupar no mundo construído e reconstruído pelas definições auto-instituídas socialmente. 

II-Objetivos e hipóteses da pesquisa

O projeto tem por objetivos identificar os motivos para o casamento e a separação e o modo pelo qual a violência se atualiza no decorrer desses processos; analisar a mobilidade social e a rede social dos sujeitos (onde/como os sujeitos localizam o conflito e o apoio para a superação dos mesmos); caracterizar imaginários específicos a homens e mulheres quanto à noção de trabalho e  divisão doméstica e social do mesmo; 

fazer etnografia da Delegacia da Mulher, das residências e dos contextos urbano das famílias.

III-Metodologia e modelos de análises

A perspectiva teórica com a qual trabalhamos, toma por base o programa e os procedimentos da Escola Sociológica Francesa (Cemin, 2001), focalizando as “categorias do entendimento”, através de pesquisa etnográfica que se operacionaliza através da escuta de narrativas de vida, de observação quanto aos usos do espaço e do tempo e demais saberes de várias ordens específicos aos grupos. Incluímos também o estudo da rede social dos sujeitos da pesquisa: quais sejam, homens e mulheres envolvidos em situação de violência física.

A analise do imaginário foi feita ainda, a partir do AT-9 (Teste Arquétipo de Nove Elementos), criado por Yves Durand com o objetivo de testar as estruturas antropológicas do imaginário propostas por Gilbert Durand. A abordagem deste ultimo inclui os métodos estruturalista e fenomenológico, embasado no princípio de “convergência das hermenêuticas”, visando o estabelecimento de diálogos com diferentes perspectivas teóricas e analíticas, necessárias aos estudos das complexidades culturais. 

Estudamos o imaginário portanto, no marco da “teoria geral dos sistemas”, considerando os sistemas como “ordem dinâmica de partes e processos em mútua interação” (Bertalanffy,1977:277). As “categorias do entendimento” dependem da organização psicofísica do homem, do ambiente e do meio e da organização cultural – linguagem, lógica, saberes. O imaginário articula as “pulsões subjetivas assimiladoras”  - nível psicofísico – às intimações sociais e cósmicas (Durand, 1997). Consideramos o meio – família, trabalho, amigos – como “recortes” em relação  ao ambientes. Desse modo, estaremos indagando, via analise de rede social (Sluzki,1997), quais ambientes são acionados pelos indivíduos nas situações de formação e dissolução do sistema matrimonial. 

Iniciamos o contato com os sujeitos da pesquisa na Delegacia da Mulher[8], através de questionário para verificação dos dados sociológicos básicos de ego (o sujeito da pesquisa) e de seus ascendentes e descendentes (endereço, nome, idade, escolaridade) e autorização dos sujeitos para continuarmos a pesquisa em suas casas. Em três ciclos do PIBIC, foram preenchidas 63 fichas de dados sociológicos, realizadas 30 entrevistas, 30 levantamentos de rede social e 26 testes de AT-9. Procuramos ampliar o numero de casos, não para aumentar a coleção de exemplares, mas pretendendo multiplicar a variedade da observação, de modo que entrevistamos homens e mulheres que perderam seus filhos para o Estado (em pesquisa sobre violência domestica e abrigos institucionais (Cemin et alii, 2002), e, posteriormente, nos dois outros ciclos nos voltamos para outros homens e mulheres, a partir do registro de violência conjugal feito na Delegacia da Mulher. A pesquisa incluiu a perspectiva masculina e as condições familiares e sociais dos envolvidos. Também foi fundamental o dialogo com diferentes públicos, via extensão acadêmica, atendendo convites para realização de palestras para diferentes movimentos e instituições.

As interpretações que fazemos dos dados da pesquisa não se apóiam em validade estatística. O alcance de nossas analises dizem respeito ao universo pesquisado, embora os resultados tenham sua relevância confirmada pelos diálogos com diferentes agentes sociais através da extensão universitária acima mencionada. 

A pesquisa teve caráter descritivo e exploratório, como mencionado, e estabelece a hipótese de que a violência é social e generalizada, embora afete particularmente os mais pobres. Evidencia também as temáticas afeitas ao problema da violência conjugal, indicando as múltiplas manifestações da violência sexista.

IV-    RESULTADOS

Casamento, economia e afeto: os motivos para o casamento - as mulheres e os homens.

As mulheres destacaram a necessidade econômica e a fragilidade social como motivo para o casamento.Tornando-se mães antes dos dezoito anos de idade, com parceiro casado ou jovem, sem interesse, maturidade e condição econômica para responsabilizar-se pela orientação e manutenção de uma família, pois, sem qualquer “capital social” (Bourdieu, 1997), é comum que não tenham trabalho fixo formalizado, alem de necessitarem contribuir com o sustento de sua família de origem (seus próprios pais e irmãos), ou, a família conjugal, no caso dos homens casados. Grávidas ou com filho pequeno, acreditam que não podem dar conta de suas vidas sozinhas: não concluíram o primeiro grau, e, sem profissão, optam pelo casamento como solução para as suas dificuldades. Uma entrevistada (empregada domestica) explicitou o sentido do conflito provocado pelas transformações sociais contemporâneas, ao dizer: “hoje em dia os homens querem escrava para trabalhar fora e dentro de casa, mesmo doente tem que trabalhar”. 

Os homens ressaltaram a paixão inicial, mas a questão econômica se apresentou como necessidade de alguém para cuidar da casa, e para educar filhos oriundos de outros relacionamentos. No conjunto, as motivações econômicas de mulheres e de homens para o casamento, confirmam Levi-Strauss (1982).

Os homens enfatizaram a parceria sexual, como fundamento da união, em contrapartida as mulheres acentuaram o desconforto do sexo “contra a vontade” nos períodos de conflito

Violência e Maternidade.

Verificamos expulsão de casa, agressões verbais e mesmo físicas em geral por parte do pai (mas não apenas por ele, visto que a mãe também reage violentamente), para que a filha, grávida fora de uma união estável, deixe a casa paterna, pois os pais se dizem envergonhados com a situação. A mulher é acusada de desonrar a família e de perder valor no “mercado matrimonial”, além de a gravidez causar angustia na família, visto que os pais sabem que terão que arcar com a criação de mais uma pessoa. No caso da avó, a ênfase foi em de novo não ter um tempo para cuidar de si. 

Desamparada socialmente pela família, expulsa de casa e sem ajuda econômica, a mulher entende que sua escolha de parceiro não pode ser exigente, sobre isso elas em geral sintetizam ao falar da decisão para se “ajuntar” (morar junto em regime de casamento): “eu, mãe de filho, não tinha nada a perder”.

As mulheres mencionaram terem sido estimuladas por parentes, amigos, ou colegas de trabalho para procurar homem mais velho por razoes econômicas. A aceitação deles quanto aos filhos que elas trazem de outra relação é vista como qualidade positiva que elas apreciam muito. Em contrapartida, são esses mesmos filhos as primeiras vitimas dos problemas conjugais sofrendo maus-tratos por parte de seus maridos nas situações de crise. Além do motivo econômico existe a convicção socialmente estabelecida de que cabe ao homem o sustento da casa, deste modo foi comum ouvirmos a frase: “eu moro com uma pessoa é para ser ajudada”.

Ambos enfatizaram o desejo de ter família e por varias expressões emocionais (choro, embargo da voz) disseram que no casamento buscavam compensação por não terem tido a família que gostariam de ter. Predominou nos relatos de ambos os sexos, os maus-tratos (espancamentos descritos como brutais, expulsão de casa e ameaças de morte) praticados por seus pais, ao longo da infância dos entrevistados. 

Quanto ao imaginário sobre a capacidade reprodutiva, mulheres mais velhas ou as operadas para não ter filhos, foram classificadas por um entrevistado como “deficiente”, porque não podem “render família”. Contraditoriamente, o nascimento dos filhos assinala a desvalorização da mulher como parceira sexual, sobrecarrega-a quanto ao cuidado dos mesmos, aumentando ou justificando as relações extraconjugais de seus maridos. Nossa conclusão é de que a maternidade penaliza socialmente a mulher por não ter filhos e também por tê-los.

Violência e trabalho feminino em casa e fora de casa

No universo pesquisado predomina o imaginário de que a mulher deve restringir-se ao espaço doméstico e que apenas em momentos de dificuldade financeira do marido é que essa ordem pode ser alterada. Entretanto, por força das transformações sociais provocadas pelos movimentos feministas e pelas condições de desemprego e do alto grau de exploração da forca de trabalho, alguns homens e mulheres constatam que “hoje em dia a mulher tem que trabalhar fora de casa”. Entretanto, o discurso enunciado por eles e por elas, indica que esse fato não deve alterar o projeto de vida estabelecido no imaginário social como prerrogativa masculina - “o trabalho não deve atrapalhar o comportamento da esposa”. Esse imaginário sustenta praticas sociais que se expressam na equação - uma mulher em casa cuidando deles e dos filhos e vida pública e liberdade para eles, inclusive de caráter sexual.

Uma outra questão que apareceu de forma quase absoluta, indica a falta de solidariedade masculina na divisão do trabalho doméstico e na educação dos filhos; além do que, muitas vezes, segundo elas, “o homem não cumpre suas obrigações com a família” – obrigação de mantenedor da mesma. Isto é dito principalmente pelas mulheres que tem a preferência de trabalhar em casa, só buscando trabalho fora quando o marido está desempregado ou devido ao fim do casamento.

Por outro lado, o estado de privação e aquilo que elas identificam como “humilhação” (restrições econômicas), por parte deles, leva algumas a concluírem acerca da necessidade de terem renda própria. Esta situação provoca momentos tensos na relação, uma vez que o marido constrangido pelo que identifica como inversão de papéis desencadeia agressões com intenção de fazer a mulher desistir dos seus planos profissionais. Alem do que, tendo saído do isolamento doméstico, essas mulheres são incentivadas pelas patroas, amigas de trabalho e de escola ou vizinhas, na decisão de denunciar na Delegacia da Mulher o parceiro que a agride. Sobre essa questão, é possível que as campanhas pelo fim da violência contra a mulher (a exemplo de uma que invertendo o sentido do dito afirma que – “Em briga de marido e mulher todos devem meter a colher”), tenham mudado o quadro assinalado por Camargo (1971:53), “... de que as relações de vizinhança e de amizade não se envolvem com a violência nas relações de gênero”.

O ritmo casa, trabalho, escola diminui o tempo de convívio da mulher com os filhos, que, na ausência de familiares e de creches públicas (quase inexistentes), ficam em casa sozinhos, com graves conseqüências para o seu desenvolvimento físico e intelectual. O homem entende que o cuidado da casa e dos filhos é dever da mulher. O mesmo imaginário que desqualifica o trabalho doméstico, informa também a percepção da mulher, visto que ela não reconhece o trabalho domestico, que porventura venha a ser realizado pelo homem, como trabalho.

O resultado do teste AT-9, evidenciou o distanciamento das mulheres de práticas sociais que permitam a apropriação de tecnologias, visto que nossa ultima hipótese indica que a presença ou ausência de imagens tecnológicas no imaginário das mulheres tem a ver com o tipo de sua inserção no processo produtivo. Para a maioria de nossas entrevistadas falta noção precisa do ”mercado de trabalho”, de modo que quando indagadas sobre o tipo de profissão que gostariam de ter elas descortinavam um imaginário de trabalho sem esforço.

Mesmo a mulher tendo acesso ao trabalho e a escola, o imaginário dominante é determinado pela mesma lógica que antes a submetia: a lógica da família patriarcal: “estrutura de relações entre desiguais” que configura, na atualidade, um modelo de “autoridade consubstanciada no homem” (Sarti 1992:39-40). Esse esquema de autoridade concretiza-se na idéia da mulher com função estética e de satisfação sexual do homem, de atendimento as suas necessidades de bem-estar, sem que ele tenha compromisso com o cuidado da casa e dos filhos, e sem consideração com as aspirações e as condições de vida da mulher na realização destas tarefas e aspirações.

Ritualização da violência e Relação extraconjugal. 

As mulheres procuram controlar a situação de conflito principalmente pela violência verbal através das “categorias de acusação”: palavrões, xingamentos e estereótipos (Velho, 1994), ou por aquilo que Bourdieu (1999) chamou de as “armas do fraco” –  “visitas” furtivas a carteira do marido em busca de dinheiro que elas supõem ou sabem, esteja sendo gasto com mulheres e bebidas (mulheres que elas chegam a flagrar em suas próprias camas, de acordo com dois casos relatados). Elas admitiram iniciar a agressão física ou utiliza-la como defesa após vários anos de agressões. Entretanto, a conclusão delas sobre esse assunto é unânime: “eu não agüento com ele”. Os homens buscam se impor pela violência física. De modo que identificamos os seguintes modos e temporalidades de ritualização da violência no contexto da relação.

a)           Violência verbal: expressa por categorias de acusação, evitação sexual e racismo. 

b)           Violência física: funciona como escape das tensões individuais e sociais, tais como desemprego, fome, desafios da “nova ordem econômica”, relação extraconjugal e consumo constante de álcool. Os estágios a e b podem acontecer juntos. Tanto as práticas de violências verbais quanto às de agressão física ocorrem na frente dos filhos.

c)           Continuidade da união: constitui um círculo vicioso com retorno aos estágios a e b. 

d)           Separação: proposta na maioria das vezes pela mulher, quase sempre o homem não aceita o fim do relacionamento. Nesse estágio a ameaça de morte, as agressões físicas e a pressão para retomar a união são uma constante por parte dos homens. Esta situação de ameaças e agressões pode levar a mulher a retomar a relação, ou seja, retornar ao estágio c.

e)           A presença do Estado: a mulher busca junto a Delegacia da Mulher a garantia de sua vida, além da formalização da separação e, às vezes o direito a pensão alimentícia para os filhos, buscando romper o ciclo de silencio e de submissão.

As relações extraconjugais do marido e, em menor escala, da esposa, foram apontadas como causa importante da violência conjugal. Apenas duas dentre as entrevistadas relataram relação extraconjugal. Entretanto, é de se supor que constrangimentos de caráter sociológico provoquem distorções nos dados quanto às mulheres, visto que, contraditoriamente, esse tipo de comportamento valoriza socialmente o homem (diante de seus pares e mesmo diante do imaginário social feminino), e desvaloriza a mulher que passa a ser vista como prostituta com toda a ambigüidade e estigma que a noção comporta. A aceitação por parte da mulher quanto ao  marido ter sexo fora do casamento se ampara em um imaginário social de naturalização e valorização desse comportamento considerado indicador de virilidade e supostamente constitutivo de uma também presumível natureza masculina. Esse imaginário aparece expresso em frase que diz: ”homem é assim mesmo”.

A questão de as mulheres serem “enganadas” não é uma questão decorrente apenas do comportamento de homens pobres e pouco escolarizados, como estudos acadêmicos, centrados nas classes populares podem nos fazer acreditar. Afirma-se que os homens precisam “naturalmente” fazer sexo com todas e dizem a cada uma aquilo que elas gostariam de ouvir. Conforme se pode constatar em publicação diretamente expressiva do imaginário machista (Prazeres, 2003) e aquelas que pretendem nos ensinar como viver.( PEASE e PEASE, 1984, 1987).

A “infidelidade” sexual masculina é também naturalizada pelas mulheres e tratada como algo que por força dos fatos precisa ser aceita. A principal condição imposta pelas mulheres, é a de não ficar sabendo do fato. Esse não ficar sabendo, por si só já é um indicador de que a questão não é pacifica, ao contrário, ocasiona conflitos emocionais, escamoteados pela tentativa de negação, via “desconhecimento” auto-induzido. O zelo deles para ocultar tais práticas é entendido por elas como sinal de “respeito”.

As outras exigências são a de que eles não tenham filhos com outras mulheres e que não deixem faltar nada dentro de casa ou, ainda, “recompensá-las” com viagens ou carro, no caso do casal com poder aquisitivo de classe média. A infidelidade sexual, provoca sofrimento, tendo sido indicada como fator correlato aos conflitos violentos. As mulheres também se mostraram preocupadas com as doenças sexualmente transmissíveis, particularmente a AIDS.

Recusa sexual feminina, violência e separação. 

Constatamos correlação também entre sexo e violência nos casos em que, em meio aos problemas vividos pelo casal, a mulher se recusa a fazer sexo com o marido. Essa situação chega a durar alguns meses, durante os quais os maridos acentuam as praticas de violência física e verbal contra suas mulheres. Entretanto, os homens minimizam o uso que fazem da violência - quando perguntados pelo motivos de sua presença na Delegacia da Mulher eles diziam ignorar. 

Violência, direitos da criança e pensão alimentícia 

Constatamos que as mulheres freqüentemente não reivindicam a pensão alimentícia para os filhos, desobrigando os homens de tal responsabilidade,  violentando-se, porque em geral enfrentam dificuldades econômicas para criar o filho (a) sozinha ou com a ajuda, (melhor diríamos sistema ajuda/recusa) de seus novos parceiros, ao tempo em que violenta a criança, visto que lhe retira um direito humano básico que é a condição de desenvolver-se. Por menor que seja o valor da pensão, em contextos de carências, representa um recurso valioso para a manutenção da criança. Alem do que, a simples existência de pensão alimentícia contribui para reforçar a auto-estima dos filhos (as) porque ela assinala a participação do pai no processo de manutenção da criança. Assim, entendemos que no âmbito de políticas publicas, seria preciso rever a legislação tornando a mulher esclarecida quanto à necessidade de requerer pensão alimentícia para os filhos porque entendemos que esse é um direito da criança que pode ser assegurado pela mãe. Ainda mais se considerando o crescente aumento de lares sustentados por mulheres.

Violência, mobilidade, rede social e pobreza inter-geracional.

Os dados de trajetória social mostraram a preponderância de mobilidade social horizontal e o aprofundamento da exclusão social expressos em desemprego, baixa renda e escolaridade, dificuldade para ter acesso a alimentos, remédios, vestuário e moradia. Isto se torna importante quando consideramos que em nosso universo de pesquisa, constituído aleatoriamente, apenas um casal não tinha dificuldades econômicas. No caso deles, porém, ambos nos disseram que as constantes brigas motivadas pelas relações extraconjugais, pela boemia e pelo consumo freqüente de bebidas alcoólicas, pelos dois, ocasionavam desperdício de recursos de modo que quase tudo na casa estava em estado ruim de conservação, coisa que eles mesmos faziam questão de explicitar verbalmente, responsabilizando um ao outro pelo que eles diziam ser o péssimo estado da casa. 

Encontramos mais homens oriundos de outras regiões do país do que mulheres, a maioria delas nascidas no estado de Rondônia ou nos outros estados amazônicos. No caso de uniões de mulheres amazônicas com sulistas, registramos conflitos de ordem cultural. A percepção deles sobre as mulheres da região é de que elas são menos rigorosas no controle de si e dos filhos. 

O levantamento de rede social pessoal mostrou que as pessoas dependem de  frágeis unidades familiares, a sempre citada “família desestruturada” que, nessa pesquisa, se consubstancia em pertencimento a família pobre por pelo menos três gerações. Os processos de urbanização excludentes não afetaram esse padrão, e talvez ate o reforce em função da escassez de recursos econômicos e sociais (escolarização, qualificação profissional). De tal modo que a importância da família como suporte para o individuo se expressa também no padrão habitacional, pois os membros da família procuram morar próximos, seja compartilhando o mesmo terreno ou espaços próximos. Ao mesmo tempo em que a família é indicada como o mais importante apoio, encontramos predominância de pais e mãe avaliados como maus, por expulsar de casa, espancar e ameaçar de morte os filhos, desde a primeira infância. 

A analise da rede mostrou ainda ausência de filiação e participação em instituições comunitárias afora a igreja, evidenciando vazios de sociabilidade que podem agravar processos de  desagregações sociais. A socialização fica restrita a família, a igreja e aos meios de comunicação de massa, reduzindo a capacidade de reflexão, pela comparação com outros modos de vida e de família. As conseqüências disso são mais graves devido aos rápidos processos de mudanças que requerem continuo aprendizado social. Além disso, a pouca inserção da família em instituições limita a visibilidade em questões de incesto (em geral não relatados na Delegacia da Mulher) e outras formas de violências.

Em estudo clássico sobre Família e Rede Social, Both (1976), argumenta que nenhuma família urbana se manteria sem sua rede de relações externas, ocorrendo, porem, que essas relações não estão contidas dentro de grupos organizados, razão pela qual ela prefere o termo família individualizada, rejeitando a noção de família isolada. A autora acrescenta ainda, que poucas áreas urbanas podem ser chamadas de comunidades, do ponto de vista da coesão social, e que o meio social das famílias urbanas não é propriamente o local de residência, e sim a rede de relações sociais que elas mantêm. 

V-  Conclusões 

A Delegacia da Mulher evidencia dois indicadores aparentemente contraditórios: indica que a violência contra a mulher no Brasil assumiu tais proporções que necessita a intervenção do Estado, ao tempo que evidencia a força do movimento feminista na formulação e garantia de efetivação de políticas publicas voltada para as mulheres. Constatamos a necessidade de outras modalidades de serviços além do jurídico-penal, dirigidos para as mulheres e homens, a exemplo de orientação psicológica quanto às perdas afetivas e quanto às funções materna e paterna (é preciso evitar que as pessoas permaneçam em desespero, vitimizando-se a si, as ex-parceiras (os) e as crianças). A Casa Abrigo é necessidade urgente para as mulheres em situação de risco de vida. A ausência do poder público quanto às creches e a pré-escola, retardam o retorno da mulher ao estudo, dificultando o seu acesso ao trabalho remunerado fora de casa.

São recomendáveis políticas públicas que viabilizem a ascensão social das mulheres, a exemplo  de campanhas de escolarização, cursos profissionalizantes, e organização social das mulheres para a conquista e a garantia de direitos humanos de acesso aos bens nos níveis conquistados pela civilização contemporânea quanto a alimentos, saúde, educação, moradia,  informação e artes.

É recorrente que a troca de parceiros restabeleça o ciclo de agressões, porque a condição social dos envolvidos permanece a mesma, devido à situação de pobreza, desamparo social e o imaginário predominante sobre a inferiorização feminina.

O poder sexista e suas formas de exercício nas relações inter e intra gêneros se espraiam em um imaginário que é misto de coerção e persuasão, encontrando expressão na música, e nas práticas estabelecidas em escolas e locais de culto, de trabalho, de formulação política nos âmbito dos partidos, dos sindicatos e das diversas associações, bem como, através do imaginário social veiculado pelas praticas de lazer, onde os chistes (Freud:1987) e os ditos populares reproduzem a idéia de inferioridade feminina, relegando a mulher a imagens estereotipadas.

As condições para a construção de direitos sociais e políticos passam pela critica dos imaginários que desqualificam o feminino como o lugar dos processos de deterioração física e moral, “como se” os homens fossem imunes ao envelhecimento, as doenças, a infertilidade, ao desinteresse sexual temporário e as perplexidades desorientadoras; “como se” fossem “naturalmente” portadores de direitos, pelo fato de ser homem. É preciso que se institua nas escolas projeto educativo de gênero, procriação e direitos humanos, explicitando o imaginário social, as relações e os processos pelos quais são instituídas as identidades e as relações de gênero. Faz-se necessária a critica ao imaginário naturalizante, e  é preciso que a sexualidade seja considerada em sua complexidade e conflitualidade.

 

BIBLIOGRAFIA

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BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro, Bertrand Russel, 1989.

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Notas

[1]. Doutora em Antropologia Social (USP). Professora do Departamento de Sociologia e Filosofia da Universidade Federal de Rondônia – UNIR e Pesquisadora do Centro Interdisciplinar de Estudo e Pesquisa sobre o Imaginário Social – CEI-UNIR.

[2]. Bolsista PIBIC/CNPq /UNIR/ Psicologia.

[3]. Bolsista PIBIC/CNPq /UNIR/Psicologia.

[4]. Bolsista PIBIC/CNPq / UNIR/Psicologia.

[5]. Bolsista PIBIC/CNPq /UNIR.Psicologia.

[6]. Bolsista PIBIC/CNPq /UNIR. Pedagogia

[7]. Bolsista PIBIC /UNIR Geografia.

[8] Agradecemos a Dra. Walquiria Boaventura Monfroi, Delegada da Delegacia da Mulher de Porto Velho, a autorização de acesso aos dados necessários ao nosso trabalho de pesquisa.

 



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