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História Regional: experiência, subjetividade e escrita histórica em Vitor Hugo
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Valdir Aparecido de Souza [1]

Hélio Costa Dantas[2]

 


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Primeiras Notas






CONSELHO EDITORIAL
Arneide Cemin
Ednaldo Bezerra Freitas
Valdir Aparecido de Souza

  


RESUMO: Este artigo aborda a obra Os Desbravadores do historiador Vitor Hugo pelo prisma de suas experiências pessoais e de sua atuação pública. Em sua obra o autor remete-se ao período colonial para a sua formulação da identidade rondoniense. Sua obra é marcada pela narrativa linear, contínua e homogênea, uma coesão interna forçosa que tenta afastar os conflitos e a dialética contidos em sua formação social “expurgando” as pressões sociais para a construção de uma identidade regional. Entretanto, a sua experiência pessoal e sua visão de mundo influenciaram sobremaneira sua produção literária e é nessa perspectiva que pretendemos abordar o tema.

PALAVRAS-CHAVE: história regional – experiência - identidade - narrativa

ABSTRACT: This article approaches the workmanship Desbravadores of the historian Vitor Hugo for the prism of its personal experiences and its public performance. In its workmanship the author sends the colonial period to it for its formularization of the people of Rondonia identity. The linear, continuous and homogeneous narrative marks its work. It’s a forcible internal cohesion that tries to move away to the contained conflicts and the dialectic in its social formation "purging" the social pressures for the construction from a regional identity. However, its personal experience and its vision of world had influenced its literary production excessively and are in this perspective that we intend to approach the subject.

KEY-WORDS: regional history – experiency - identity – narrative

 

“Nunca houve um monumento da cultura que não fosse também um monumento da barbárie.”

 Walter Benjamin

INTRODUÇÃO

 Partindo do pressuposto de que o historiador é produtor e produto de seu contexto, percebemos que não se trata apenas de pensarmos uma biografia dos historiadores, mas sim buscar os elementos de suporte às visões de mundo de cada um deles. Ou seja, quais as imagens e experiências práticas que oferecem suporte aos seus discursos “cronológicos”? De quais lugares falam, qual a sua formação ética e profissional e quais são seus objetivos políticos e sociais? Estas experiências são elementos fundamentais para compreendermos como são articuladas as suas idéias e posições, sejam acadêmicas e científicas ou políticas e sociais. Estas idéias projetam as experiências e os sonhos dos autores, repleta de conflitos entre a realidade pensada, a vivida e a idealizada (Pantoja, 1999:91-101). 

Essa relação entre o objeto e o sujeito, onde este é uma projeção imediata do autor não se constitui em nenhuma novidade, na literatura já foi amplamente analisado como no caso dos elementos mortuários em Edgard Allan Poe, relacionados diretamente à morte trágica da mãe. Nas obras literárias do francês Victor Hugo está presente a estrutura do isolamento, da ilha que fez parte da infância do escritor. Enfim, até mesmo Freud, o pai da psicanálise tinha lá seus recalques que eram via de regra analisados nos pacientes (Gay, 1989). No campo da história, George Duby cunhou essa perspectiva de “ego-história” em sua obra Ensaios de Ego-História. Numa vertente cientificista, falar da vida pessoal dos autores ainda pode ser considerado um estigma. Pois se presume que os mesmos devam manter um saudável distanciamento dos seus objetos. No caso do autor analisado, ocorre justamente o contrário, é sua vida pessoal e profissional que direciona a sua expressão literária. Ele é um padre que fala de dentro da Instituição e que sente a necessidade de registrar a história das Ordens Missionárias na região do Madeira.

Vitor Hugo: civilização como missão

A confluência entre o autor e o ator é nítida no caso do Professor Vitor Hugo. Forjado em décadas de estudos teológicos, o autor é dono de uma grande erudição e conhecimento, versando sobre áreas humanistas como História, Geografia, Filosofia e Pedagogia. A sua experiência de seminarista e padre salesiano na Amazônia lhe imprimiu uma visão abrangente e ímpar da história regional. Além disso fez estudos superiores em S.Paulo, Rio de Janeiro e no exterior. Sua obra Desbravadores é conhecida no Brasil e no exterior, possui caráter de crônica histórica pelo viés institucional da missão salesiana, e segundo o próprio autor, “ nasceu sem a menor pretensão de ciência histórica” (1959: IX). Os salesianos são os desbravadores, contrapondo-se aí aos nativos vistos pelo autor como gentios antagônicos à civilização. Apesar do viés ideológico, destaca-se o primor da escrita, a beleza da construção narrativa contida no enfoque religioso.

Sua obra é uma referência no que toca principalmente à História, Etnologia e Geografia da região, pioneira a determinados estudos e informações. Os 4 volumes são os frutos de mais de 12 anos de investigação em algo em torno de 20 arquivos, 16 bibliotecas e mapotecas nacionais e estrangeiras. Dentre estes selecionamos os dois primeiros volumes publicados em 1959. Esse recorte deve-se ao fato de que o enfoque do 1º volume é a história da missão jesuíta no período colonial catequizando os gentios no vale dos rios Madeira-Guaporé. O 2º enfoca a Prelazia de Porto Velho, com os Salesianos dando continuidade à missão evangelizadora dos jesuítas. Em torno da temática da catequese como fator de civilização o autor traçou a crônica da região, com descrições ricas do cotidiano dos povos nativos, dos caboclos, dos religiosos e da população em geral. Já o 3º e 4º volumes foram lançados pela Gráfica ABG em 1998 três décadas depois, com outro enfoque, que o autor chamou de “repositório”. O termo em si implica que a fase épica da catequese “civilizatória” está contida nos dois primeiros volumes, de onde se pressupõem que os recentes são apenas atualizações dos grandes feitos dos jesuítas e salesianos.

Haja vista que os primeiros volumes de sua obra são dedicados exclusivamente à Missão Jesuíta e Salesiana no vale do Madeira, momento no qual ele estava ainda muito influenciado pela instituição, pois foi padre até a década de 60. Nos volumes posteriores dedica-se exclusivamente às obras do Estado e a estruturação deste, justamente quando deixa de ser da Ordem, se casa, tem filhos e passa a ter uma vida profana. Nesta segunda fase o nosso autor ocupa vários cargos importantes como professor do Estado, professor da Universidade Federal de Rondônia, tradutor e intérprete oficial do Estado. Como jornalista criou a Rádio Caiari, foi também o primeiro Secretário de Cultura, Esporte e Turismo do Estado e Reitor da Universidade Federal de Rondônia. Como historiador o Pe. Vitor Hugo participou como Membro do IHG (Instituto Histórico e Geográfico) de São Paulo e IHG do Amazonas. 

Nesse sentido, um dos caminhos possíveis aponta para a elucidação das relações entre posição de classe, experiências pessoais e ideais de vida para podermos tecer a compreensão entre os fatos passados e a experiência de vida do autor, numa perspectiva além da mera biografia, que por sua vez possa oferecer elementos para a interpretação dos discursos. O historiador em questão foi testemunha da história local e participou ativamente de sua construção. Muito mais que autor foi um dos atores principais dessa trajetória, produtor e produto forjado pela experiência projetada no seu discurso histórico.

Segundo Roger Chartier em entrevista concedida à Isabel Lustosa[3] a memória revisitada de um historiador é uma paisagem bela, harmônica e perfeita, mas repleta de armadilhas invisíveis, 

“Bourdieu critica este tipo de narrativa em que uma vida é tratada como uma trajetória de coerência, como um fio único, quando sabemos que, na existência de qualquer pessoa, multiplicam-se os azares, as causalidades, as oportunidades .(...) Ao fazer um relato autobiográfico é quase impossível evitar cair nesta dupla ilusão: ou a ilusão da singularidade das pessoas frente às experiências compartilhadas ou a ilusão da coerência perfeita numa trajetória de vida.” (Chartier: Observatório da Imprensa Web)

Segundo essa linha de raciocínio não pensamos aqui uma forma mais próxima da verdade histórica ao tentar compreender a obra e Vitor Hugo por meio de uma analogia com sua experiência de vida e subjetividade. Tendo posto isto às claras, podemos perceber que os papéis sociais de nossos escritores em função de sua origem, classe social, formação cultural e ética em si os direcionaram para uma visão de mundo peculiar às suas trajetórias. Como exemplo notamos um certo romantismo na obra de Vitor Hugo, pois o mesmo trata a conquista da região do Madeira de forma épica e trágica, na qual os missionários são os heróis centrais e os povos nativos são personagens passivos que viviam nas “trevas”. Os mesmos são vistos enquanto seres “incompletos”, ao não conhecer a “palavra de Deus”. Daí só se tornaram humanizados à medida que foram catequizados.

Para clarear sobre as opções do autor, diríamos que fazia parte da classe dominante local, colocando-se como interlocutor direto entre os valores desta sociedade moderna e os povos nativos. Ao catequizar os gentios alterava o seu modo de vida, impondo novos hábitos e gerando desequilíbrio com o seu meio ambiente. A proibição quanto à prática do aborto ilustra muito bem esse exemplo. Antes era praticado livremente, mas foi culpabilizado pelos missionários. O resultado foi o crescimento gradativo da família cabocla, aumentando a pressão sobre os recursos naturais. (1959)

Temos que pensar que Vitor Hugo vivenciou o final do momento de expansão das Ordens Religiosas na região. Era um contexto favorável ao discurso civilizatório, pois nos anos 40 e 50 ainda se vivia o “novo” surto da borracha em função da Segunda Guerra. O contato entre a incipiente população urbana e os povos nativos ainda eram intensos. É nesse período que vemos surgir alguns personagens que ficaram marcados na memória popular como “sertanistas”: caso de Francisco Meirelles Chefe do Serviço de Proteção ao Índio, de Dom Xavier Rey, 1º Bispo da Prelazia de Guajará Mirim e Costa Marques no Vale do Guaporé e o médico do Território do Guaporé Dr. Ary Pena Tupinambá que registrou o seu contato com as populações nativas.

Podemos inferir que esse período de “desenvolvimento” propiciou o intenso contato entre as diferentes e antagônicas culturas influenciando a visão épica do autor, ele próprio um “pescador de almas” para a civilização. Mas a sua trajetória não foi influenciada somente pela experiência religiosa, após abandonar o hábito se inseriu na vida civil como um respeitado homem de sapiência. Por ser erudito e versado nas letras e se encontrar numa região onde o conhecimento era considerado artigo de luxo, foi absorvido de imediato nas estruturas administrativas do Território do Guaporé. Ficou conhecido como “Professor” Vitor Hugo, título conferido às pessoas de conhecimento, foi também nomeado Secretário de Cultura do Estado na gestão do Governador Jerônimo Santana em 1985 e posteriormente foi nomeado Reitor Pró-Tempore em mandato relâmpago da Universidade Federal de Rondônia em 1988. Além desses cargos de relevância social e política era o Tradutor Oficial do Estado de Rondônia, versado em Espanhol, Italiano, Francês e Latim.

Podemos fazer um paralelo entre sua vida pessoal e sua carreira profissional. Na sua primeira fase são as Ordens Jesuíta e Salesiana que aparecem como personagens centrais de sua obra, momento que ainda estava sob a influência da Igreja. Já na sua vida de cidadão laico é a estrutura do Estado moderno em expansão que solicita seus serviços a partir de seu vasto currículo e em função da enorme escassez de profissionais formados em áreas humanísticas.

Porém a parte épica do seu discurso está relacionada à sua fase religiosa, até mesmo porque apesar de ter deixado o hábito, sua formação moral e filosófica se deu a partir do seminário e de sua experiência como catequizador dos nativos. Aí se localiza a imensa contribuição da sua obra, pois se constitui num documento de época valiosíssimo, os povos que ele descreve já perderam muitas de suas tradições, alguns estão praticamente à beira da extinção. Apesar de sua visão institucionalizada, o seu trabalho hoje é uma referência etnográfica dessas populações.

Vitor Hugo: a fusão entre autor e obra

Os Heróis do Madeira Colonial: Os missionários são retratados como os desbravadores da região, são os grandes heróis que “amansaram” os nativos a partir do “amor e da fé” ao invés da “violência”. Eles prepararam terreno para a grande obra civilizatória iniciada no séc. XVII, com o trabalho dos primeiros missionários. Vitor Hugo ressalva que “(...) a região do alto Madeira entrou no berço da civilização sob os raios tépidos da luz do cristianismo, liberta de qualquer outro compromisso. De maneira genuína e diferente de muitas regiões do norte brasileiro. (...) os Jesuítas foram os verdadeiros descobridores do Rio Madeira!” (Hugo: 1959, 25, 68). Podemos a partir de sua narrativa depreender o caráter de panacéia que ele atribui à presença e à atuação das ordens religiosas na região e que essa abordagem perpassa toda sua obra. 

Na apresentação dos nativos, estes surgem como “selvagens” sem religião, ociosos, indisciplinados e desorganizados. Eles estavam entregues ao destino sendo perseguidos pelos colonos que buscavam escravizá-los. Neste momento os jesuítas são heróis duplamente, pois estavam imbuídos da evangelização e civilização e prontos a socorrer os “indefesos” (Hugo: 1959, 37, 48).

A descrição dessa primeira fase mistura epopéia e tragédia. A missão primordial era levar a fé e a civilização para seus habitantes e apesar das dificuldades tudo se encaminhava para um futuro promissor, reforçando os elementos da epopéia missionária. Até o momento que surge o personagem antagônico, o arquiinimigo dos jesuítas, Pombal, que pôs em prática o seu plano “diabólico” alcunhado pelo autor de Tempestade Amazônica. O Marquês alterou tragicamente o destino dos seus heróis, expulsando-os da região e afastando-os de sua epopéia civilizatória. Vitor Hugo refere-se ao Ministro de Portugal de forma pessoal, afirmando que era “homem de caráter imperioso e falso, péssimo administrador, encontraria os meios e os instrumentos para implantar as novas idéias” O caráter trágico de sua obra manifesta-se também a partir da perseguição e conspiração “(...) Jansenistas, maçons, filósofos e enciclopedistas, custearam uma guerra” contra os Jesuítas. Lamentando a decadência dos nativos que foram forçosamente “abandonados” pelos padres civilizadores. (Hugo: 1959, 62;91-92) A dupla seqüência de epopéia e tragédia segue o seu cortejo narrativo: “O silêncio de morte pairava sôbre tôda a Amazônia! O Rio Madeira não contava com um só apóstolo! (...) Apesar dos abusos que acidentalmente se encontravam outrora na catequese religiosa, nada mais se tinha feito de bem sem missionários e bons missionários” (1959:122-138). É interessante que aí o trágico beira o farsesco, veja que os abusos dos jesuítas eram acidentais.

Retorno Triunfal dos Missionários: Nesse momento da narrativa é retomado o tom romântico e épico da missão civilizatória. Na perspectiva do autor o novo marco de civilização se funda com a chegada dos padres da ordem Salesiana oriunda da  Sociedade de S. Francisco de Sales à Amazônia. Estes reuniam características ideais, eles são representados como corajosos ao “enfrentar o desafio” de pastorear a região, nas “perigosas” viagens de desobriga pelos rios misteriosos e insólitos, na luta contra a “ignorância” e a “rudeza” das classes pobres. Homens destemidos que lutavam contra o “desregramento moral” e o “paganismo” da população em geral, a “indolência”, a “desorganização” dos indígenas e sua “rebeldia” à fé e à civilização. Por fim, os religiosos europeus lutavam ainda contra a natureza hostil pressionando-os à “adaptação” ao clima e aos costumes da região. 

A despeito da “miséria por toda parte” (1959a: 25), a população da cidade por sua vez é apresentada como “carente material e espiritual” sem nenhum amparo dos governantes e das elites, cuja “(...)grande ocupação era fazer avenida, dansar, jogar futebol, cuidar do aperfeiçoamento da mulher, tango, jazz-band! Os desvalidos da fortuna não tinham importância (...). Não havia caridade social, e a caridade particular era irrisória.” (1959a:29). A região é praticamente apresentada como o berço ideal para a “grande obra salesiana” de civilização e evangelização. São relatos eivados de valores positivos em relação às ações dos salesianos:

“Homem de largo descortínio administrativo, o pe. João lançava-se contra o reinante desinteresse pelo fator econômico da vida, e incutia com o exemplo e as palavras o amor ao trabalho. Apontava como verdadeiras causas pelo fracasso econômico da época a diminuição criminosa dos filhos, (...) impulsionou a agricultura, cuidando do fumo e da mamoneira, pondo em movimento um castanhal e um seringal no Paraná Brasileira, próximo à foz do Jamari; projetou uma cooperativa agrícola, adquirindo a primeira máquina de descascar arroz, incentivou a criação do gado, pleiteou a aquisição duma olaria mecânica, abriu uma farmácia pública e uma caixa econômica de depósitos populares” (1959a: 57, 58) 

Se Pombal era a encarnação liberal do mal o Pe. João Nicoletti era o seu contrário, este interveio nas esferas de atuação do Estado (“herói anônimo”, “novo Anchieta”). Ele personifica a própria ordem salesiana como seu herói faústico, guardião do desenvolvimento social e civilizacional. Lembremos que no início do séc. XX a disputa entre Estado e Igreja pelas áreas do ensino, saúde e assistência ainda não estava definida no país. Além do que a presença efetiva do Estado na região era mínima. 

Na visão de Vitor Hugo a presença dos salesianos reinicia um novo ciclo de progresso para a região. O autor representa a obra missionária de forma romântica e épica, porém não discute os limites e contradições dessa ação. Como por exemplo o impacto causado pela doutrina cristã ao modo de vida das tribos locais e o extermínio em massa dessas populações sob as vistas da própria Ordem.

O Mal está no Outro

Contrapondo a essa atuação moralizante, civilizadora, patriota e desenvolvimentista dos missionários desde o séc. XVII, os nativos são apresentados como incapazes físicos e espirituais à espera do auxílio “religioso”. Com o intuito de inaugurar um novo tempo, o autor parte de seu viés etnocêntrico na comprovação de sua tese. Ele busca sua legitimação histórica por meio de um mostruário de fatos bem encadeados. Seus personagens são presos à cronologia linear e enquadrados numa estrutura hierárquica, refletindo a experiência e os ideais do autor. 

Seu texto faz apologia às Ordens Religiosas e destina ao colonizado somente o papel de um “selvagem”, “pagão” a ser “humanizado”. Para interpretar essa visão baseamo-nos nas idéias de Martins quanto ao fato de que “(...) a fronteira tem um caráter litúrgico e sacrifical, porque nela o outro é degradado para, desse modo, viabilizar a existência de quem o domina, subjuga e explora” (1997: 12-13).  Vitor Hugo não reflete que essa condição de aculturado resulta na privação da cultura nativa, transformando a população indígena e cabocla em “alma penada”. A desqualificação das populações autóctones objetiva legitimar a catequese, pois tenta incutir a idéia que a presença da Igreja era fundamental para “salvar” o gentio “sem-religião”, um “errante” físico e moral por excelência

O autor constrói uma visão histórica evolucionista, onde a “evolução” é vista como um processo natural que leva a “melhoria social”. O autor é um defensor do progresso econômico e tecnológico, atribuindo à cultura ocidental o papel de grande condutora dos “incultos” na marcha inexorável para um futuro melhor. Essa postura reflete uma visão utilitarista em relação ao “primitivo”, colocando-o como objeto de dominação legítima e irreversível, tudo em nome do “progresso”. Sua visão reproduz os estereótipos da literatura e da historiografia oficial que projetam uma imagem pitoresca e selvagem da região para o restante do país “desenvolvido”. Um “vazio construído” na base do genocídio continuado das populações indígenas e como a porção exótica passível de ser “domesticada”. Vitor Hugo reafirma essa imagem assentada de terra sem história, propícia para os labirintos do esquecimento. Ao rotular a região enquanto um “vazio cultural” menospreza a cultura das populações nativas reforçando uma ideologia “aplainadora” da integração nacional e ao mesmo tempo ocultando as guerras da “fronteira humana” travadas diuturnamente. 

CONSIDERAÇÕES

Ao mitificar a colonização o autor acaba por construir uma versão épica dos seus heróis e camufla a sua tragicidade, “que se expressa na mortal conflitividade que a caracteriza, no genocida desencontro de etnias (...) contrapostas não apenas pela divergência de seus interesses econômicos, mas, sobretudo pelo abismo histórico que as separa” (Martins: 1997, 49). A colonização de fato se caracterizou pela fixação territorial dos novos atores, gerando choques violentos com a população local. 

Esta mitificação traz em si algumas implicações funestas. A apologia continuamente afirmada acaba por ser aceita como realidade, vindo a se tornar o alicerce na construção de uma identidade regional. A historiografia sobre a região cria de um lado o herói épico personificado nos missionários e de outro o anti-herói desvalido personificado nos povos nativos. As representações adquirem status de verdade, pela imposição simbólica na memória. Estas representações terminam por inculcar a legitimidade da ordem dominante por meio de um longo processo de “ensino”. Esta perspectiva mascara o sentido da colonização, sua inserção num contexto socioeconômico mais amplo, e principalmente a possibilidade de outros sujeitos atuarem nesta história, visto que aqueles que não compartilhem dessa “identidade” regional serão apagados da memória coletiva.É interessante observar que todo discurso utópico sempre imola suas vítimas em nome desse próprio futuro melhor. 

Enfim, para podermos explorar com mais profundidade a relação entre experiência pessoal e escrita histórica faz-se ainda necessário analisar os documentos históricos a partir das emoções, e frustrações contidas na correspondência pessoal e cartões-postais, álbuns de família, objetos de uso pessoal e relíquias. Também outro ponto fundamental, que perpassa toda a sua narrativa é a disputa entre Estado e missionários pelos “fiéis/contribuintes” da região. Ambos enfoques apenas tangenciados por nós nesta leitura inicial serão aprofundados em breve oportunidade.

BIBLIOGRAFIA

ALBUQUERQUE, Durval M. A invenção do Nordeste e outras artes. São Paulo/Recife, Cortez/Massangana, 1999. 

BANN, S. As Invenções da História. S. Paulo, Edunesp, 1996.

CHARTIER, R. Revista Eletrônica Trópico home page: http://pphp.uol.com.br/tropico/html/index.shl

CHAUNI, Pierre et alli. Ensaios de Ego-História. Lisboa, Edições 70, 1989..

DURAND, G. As Estruturas Antropológicas do Imaginário. S. Paulo, Martins Fontes, 1997.

ECO, U. Lector in Fábula. Campinas, Pespectiva, 1988.

FERREIRA, Antonio C. A Epopéia Paulista. S. Paulo, Edunesp, 1999.

HUGO, Vitor. Desbravadores. Humaitá, 1959.

MARTINS, J. Souza. Fronteira. São Paulo, Hucitec, 1997

PANTOJA, Tânia . “A Constituição da Memória em Benedicto Monteiro e Milton Hatoum. Moara”  Revista dos Cursos de Pós Graduação em Letras da UFPA. Belém, v. 12, p. 91-101, 1999.

 

Notas


[1] Valdir Aparecido de Souza é Mestre em História Social/UNESP, Professor do Departamento de História da Universidade Federal de Rondônia e Pesquisador do Centro do Imaginário Social

[2] Hélio Costa Dantas é Professor de História da Rede Pública de Manaus e Ex-Bolsista do Centro do Imaginário Social (CNPq)

[3] Cientista política, pesquisadora da Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro, autora de Insultos Impressos – A guerra dos jornalistas na Independência (1821-1823) (Companhia das Letras, São Paulo, 2000)

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