Revista Eletrônica do Centro de Estudos do Imaginário - Página Inicial
  
Universidade Federal de Rondônia
Revista Eletrônica do
Centro de Estudos do Imaginário

Labirinto - Revista Eletrônica do Centro de Estudos do Imaginário

  



A crítica nietzscheana ao livre-arbítrio


Vagner da Silva[i]


Artigos

Resenhas

Biblioteca

Entrevistas

Primeiras Notas






CONSELHO EDITORIAL
Arneide Cemin
Ednaldo Bezerra Freitas
Valdir Aparecido de Souza

  


Considerado como um dos mestres da suspeita*, Nietzsche tornou-se conhecido principalmente pela aparente dureza de alguns de seus pensamentos, como também por seu ceticismo perante alguns dos mais importantes elementos de crença, e por que não dizer de fé, da filosofia de todos os tempos, como a razão e a idéia de causa e efeito, sem a qual o pensamento causal e a lógica jamais poderiam ter sido desenvolvidos; a democracia, e o pressuposto dos direitos iguais, que lhe dá base; e também, dentre tantos outros, a moral, e seu pressuposto fundamental, sem o qual ela perderia a importância: o livre-arbítrio.

A grande maioria dos filósofos e seus sistemas de pensamento, ao explicar ou apenas analisar a conduta humana e seus regulamentos pessoais e sociais, sua ética, baseou-se na idéia do livre-arbítrio, que grosso modo, constitui-se na capacidade, ou faculdade que o ser humano teria de escolher suas próprias ações de modo livre, e conseqüentemente, em essa escolha sendo livre, o homem também seria responsável por suas ações.

O livre-arbítrio sempre foi de grande valia para sistemas jurídicos e religiosos, que no fundo se confundem e acabam tendo o mesmo objetivo: responsabilizar o homem por suas ações, tornando possível deste modo, puni-lo ou no melhor dos casos, recompensá-lo por ter agido de um modo e não de outro. A este respeito diz Nietzsche:

Onde quer que as responsabilidades sejam procuradas, aí costuma estar em ação o instinto de querer punir e julgar. Despiu-se o vir-a-ser de sua inocência, quando se reconduziram os diversos modos de ser à vontade, às intenções, aos atos de responsabilidade. A doutrina da vontade é inventada essencialmente em função das punições, isto é, em função do querer-estabelecer-a-culpa. (...) Os homens foram pensados como “livres”, para que pudessem ser julgados e punidos – para que pudessem ser culpados. Conseqüentemente, toda ação precisaria ser considerada como desejada, a origem de toda ação como estando situada na consciência (- com o que a mais fundamental fabricação de moedas falsas transformou-se, no interior do psicologicismo, em princípio da própria psicologia...) [Nietzsche, 2000: 49]

Não é possível conceber a moral, a livre capacidade judicativa do bem e do mal sem o artifício do livre-arbítrio, pois então o apelo ao agir humano perderia seu principal fundamento: a responsabilidade e o mérito da ação. Para Nietzsche a origem da crença neste livre arbítrio é histórica, e se desenvolveu com a sociedade passando por estágios diferentes até chegar à consciência, ou ao menos lhe ser atribuída. Deste modo, pode-se conceber o livre-arbítrio como fruto de uma vontade livre e consciente.

1.1 O Deslocamento histórico da moral.

O que aqui chamaremos de deslocamento histórico da moral, é o processo através do qual as ações humanas foram progressivamente tributadas a um agir consciente e não mais instintivo. Segundo Nietzsche no mais longo período da história humana, a pré-história, as ações de uma pessoa não eram avaliadas como hoje se avalia: o que dava a uma ação o caráter bom ou mau eram as conseqüências úteis ou prejudiciais desta ação.

As ações humanas eram avaliadas de acordo com sua utilidade. Posteriormente os atributos “bom” e “mau”, passaram a ser empregados à própria ação, independente de suas conseqüências. Depois estes atributos passaram a ser atribuídos às causas que motivavam a ação, não mais às suas conseqüências e utilidades ou à própria ação. Por fim, chegou-se ao momento de valoração moral propriamente dito, no qual os predicados “bom” e “mau” foram atribuídos ao agente, acreditando-se que este era livre para escolher de que modo agiria.

A fábula da liberdade inteligível. – A história dos sentimentos em virtude dos quais tornamos alguém responsável por seus atos, ou seja, a história dos chamados sentimentos morais, tem as seguintes fases principais. Primeiro chamamos as ações isoladas de boas ou más, sem qualquer consideração por seus motivos, apenas devido às conseqüências úteis ou prejudiciais que tenham. Mas logo esquecemos a origem dessas designações e achamos que a qualidade de “bom” ou “mau” é inerente às ações, sem consideração por suas conseqüências (...). Em seguida, introduzimos a qualidade de ser bom ou mau nos motivos e olhamos os atos em si como moralmente ambíguos. Indo mais longe, damos o predicado bom ou mau não mais ao motivo isolado, mas a todo o ser de um homem, do qual o motivo brota como a planta do terreno. De maneira que sucessivamente tornamos o homem responsável por seus efeitos, depois por suas ações, depois por seus motivos e finalmente por seu próprio ser. [Nietzsche, 2000: 47]

Para exemplificar a idéia de Nietzsche podemos imaginar uma comunidade primitiva, na qual um de seus membros comete um assassínio contra um membro de uma tribo rival. Se o ato (assassínio) enfraquece a tribo rival e a tribo do agente pode se apoderar das áreas de caça da tribo enfraquecida, esta ação será vista como uma ação boa. Todavia se o assassínio não enfraquece a tribo do assassinado, e ainda desperta o ódio desta contra a tribo do assassino, a ação é vista como má. É importante ressaltar que não será apenas a tribo que julgará a ação como boa ou má, mas o próprio agente assim o fará, a partir das idéias da tribo, pois sofrerá de sua alegria ou sua ira.

Em um segundo momento, afastado no tempo do ato acima tomado como exemplo, a tribo do agente comemorará ou lamentará seu ato, de acordo com o modo que este ato tenha sido interpretado quando aconteceu, e os predicados “bom” e “mau”, serão atribuídos ao próprio ato de matar um inimigo de determinada tribo, não mais às conseqüências que este ato possa trazer.

Em um terceiro momento a qualificação de “bom” ou “mau”, passa a ser atribuída ao que motiva a ação, então certos motivos podem ser considerados como bons (por exemplo, matar para defender a área de caça de sua tribo), outros podem ser considerados como maus (matar um elemento da própria tribo).

Num quarto e final momento neste processo de deslocamento histórico da moral, ao agente passam a ser tributados os qualificativos “bom” ou “mau”. Assim sendo, por exemplo, boa é a pessoa que age de modo coletivo, visando ajudar o crescimento e manutenção da tribo, e má a que age de modo individual, e não pensa no bem da tribo.

O que percebemos aqui é um processo de subjetivação no qual a responsabilidade é transferida de uma avaliação coletiva (lembre-se que a avaliação inicial sobre a qualidade da ação é da tribo), para uma responsabilidade individual, na qual o agente passa a ser responsabilizado progressivamente pelas conseqüências de sua ação, depois pela qualidade de sua ação, em seguida pela motivação da sua ação e por fim por si próprio enquanto ser agente. Para melhor compreendermos este deslocamento histórico, observemos ao gráfico abaixo:

  

Fica claro que neste processo de subjetivação, a responsabilidade pelo ato, e conseqüentemente, o julgamento acerca de sua qualidade (se bom ou mau), é deslocado na direção do agente. No primeiro e segundo momentos, o agente não pode ser responsabilizado por suas ações, nem pela qualidade delas, pois os juízos acerca desta ação não lhe pertencem, como tão pouco o controle sobre eles. Se o agente não é capaz de prever o que sua ação acarretará, não se pode dizer que sua ação foi livre, não há liberdade de ação sem o conhecimento das conseqüências da ação. Quando a ação triunfa ou fracassa, o que a tribo comemora ou pune, não é o indivíduo, e sim as conseqüências da ação, e posteriormente a própria ação independente de suas conseqüências.

No terceiro e quarto momentos têm-se a gênese dos valores morais e da idéia de livre-arbítrio, pois no terceiro momento, quando se tributa a qualidade da ação às motivações do agente, acredita-se que a vontade do agente preferiu os motivos que o levaram à ação aos que não o teriam levado à ação. Ou seja, ele foi responsável pela ação, mesmo que não pudesse prever suas conseqüências, a partir deste momento, também se analisa as suas motivações como boas ou más, o agente passa a ser responsável também por seus sentimentos, não mais apenas pela qualidade de suas ações e as conseqüências que delas decorrem. Daí então, se tributa ao próprio agente a qualidade boa ou má, relacionada às suas motivações, às qualidades que normalmente se tributa às suas ações e por fim, às conseqüências de seus atos.

Retornando a um outro texto de Nietzsche, ainda sobre o mesmo assunto, encontramos a seguinte asserção:

Durante a era mais longa da história humana – a chamada era pré-histórica – o valor ou não-valor de uma ação era deduzido de suas conseqüências: não se considerava a ação em si nem a sua origem (...). Chamemos este período de período pré-moral da humanidade: o imperativo “conhece-te a ti mesmo!” ainda não era conhecido. Nos últimos dez milênios, contudo, em largas regiões da terra chegou-se gradualmente ao ponto em que é a origem da ação, e não mais as conseqüências, que determina o seu valor: um grande acontecimento no seu todo, um considerável refinamento do olhar e da medida, a repercussão inconsciente do predomínio de valores aristocráticos e da crença na “origem”, a marca de um período que se pode denominar moral no senso estrito: com isso fez-se a primeira tentativa de autoconhecimento. Em vez das conseqüências, a origem: que inversão da perspectiva! E sem dúvida uma inversão alcançada após longos combates e hesitações! É verdade que com isso uma nova e fatal superstição, uma singular estreiteza de interpretação tornou-se dominante: a origem de uma ação foi interpretada, no sentido mais determinado, como origem a partir de uma intenção; concordou-se em acreditar que o valor de uma ação reside no valor de sua intenção. A intenção como origem e pré-história de uma ação: sob a ótica desse preconceito é que, quase até os dias de hoje, sempre se louvou, condenou, julgou e também se filosofou moralmente. [Nietzsche, 1992, 38-9]

Foi neste deslocamento histórico da moral então que surgiu a idéia de que uma ação era motivada por uma vontade, vontade que ao ser exercida, era livre para escolher entre conjuntos de ações que teriam conseqüências distintas, mas não o fez, ou em o tendo feito escolheu por uma em especial, pela qual será louvado ou punido. Deste modo pensou-se que a intenção precedia a ação, tornando-se sua pré-história como diz Nietzsche, todavia para o autor, isso não passa de um preconceito.

Nietzsche tributa o agir humano a uma rede de “motivações” bem mais complexas que apenas a vontade, até porque para Nietzsche a vontade também é algo mais complexo e composto do que se tem pensado até então, para ele o simples conhecimento da ação e suas conseqüências, não é suficiente para agir:

(...) Não é justamente isso a “terrível” verdade: que o que se pode saber de uma ação não basta jamais para fazê-la, que a ponte do conhecimento ao ato não foi lançada nem uma vez até hoje? Os atos não são jamais aquilo que nos parecem ser! Despendemos tantos esforços para aprender que as coisas exteriores não são como nos parecem ser – pois bem! dá-se o mesmo com o mundo interior! As ações morais são, na verdade, “algo diferente” – mais não podemos dizer; e todos os atos são essencialmente desconhecidos. [Nietzsche, 2004: 89]

A suposição que todo o conhecimento filosófico desenvolvido até então, não é suficiente para que se possa conhecer algo sobre as motivações das ações humanas é um tanto terrível, todavia podemos encarar as palavras de Nietzsche como uma provocação, comum em sua obra, a toda a tradição filosófica, mais especialmente à tradição da filosofia moral. O autor quer todavia, inserir-se no campo dos estudiosos da moral, e investigar suas causas. De início deixa claro que os atos morais não são aquilo que parecem ser, e que o simples conhecimento sobre eles não é suficiente para escolhê-los. O que então motivaria, para Nietzsche, o agir humano? Os instintos ou pulsões (Trieben). Para Nietzsche o ser humano ainda não perdeu parte de sua natureza animal, ela está apenas adormecida, e é justamente esta natureza animal e instintiva que guia o agir humano.

O superanimal. – A besta que existe em nós quer ser enganada; a moral é mentira necessária, para não sermos por ela dilacerados. Sem os erros que se acham nas suposições da moral, o homem teria permanecido animal. Mas assim ele se tomou por algo mais elevado, impondo-se leis mais severas. [Nietzsche, 2000: 49]

Nietzsche tributa então o agir humano às pulsões instintivas que ainda nos restam, mas que foram sublimadas pela moral. Para ele estas pulsões não são boas ou más, são totalmente destituídas de qualquer valoração moral, sendo mesmo possível que o mesmo instinto, em culturas diferentes ou mesmo na mesma cultura, mas variando a situação, receba uma valoração moral distinta, às vezes, até mesmo oposta.

Os instintos transformados pelos juízos morais. – O mesmo instinto torna-se o penoso sentimento da covardia, sob efeito da recriminação que os costumes lançaram sobre tal instinto; ou o agradável sentimento da humildade, caso uma moral como a cristã o tenha encarecido e achado bom. Ou seja: ele é acompanhado de uma boa ou de uma má consciência! Em si, como todo instinto, ele não possui isto nem um caráter e denominação moral, nem mesmo uma determinada sensação concomitante de prazer e desprazer: adquire tudo isso, como sua segunda natureza, apenas quando entra em relação com instintos já batizados de bons e maus, ou é notado como atributo de seres que já foram moralmente avaliados e estabelecidos pelo povo. [Nietzsche, 2004: 36]

O agir humano então está sujeito aos instintos, é involuntário, não podendo ser tributado à vontade humana, deste modo o homem apenas age, seguindo via de regra, as direções que lhe são fornecidas por seus impulsos. Se suas ações são boas ou más, isso não faz diferença, pois estes são qualificativos que a própria sociedade tributa às ações, mas que não fazem parte de sua natureza*. Sendo então o agir humano fruto da natureza, ele não é uma escolha livre do homem, e deste modo não lhe é possível tributar qualidades boas ou más.

Para Nietzsche o que nos leva a tributar às ações humanas os predicados bom e mau e não o tributarmos à natureza, a um raio por exemplo, é que temos a crença de que no primeiro age uma vontade livre e no segundo apenas uma descarga incontrolável da natureza.

O homem sempre age bem”. – Não acusamos a natureza de imoral quando ela nos envia uma tempestade e nos molha; por que chamamos de imoral o homem nocivo? Porque neste caso supomos uma vontade livre, operando arbitrariamente, e naquele uma necessidade. Mas tal diferenciação é um erro. Além disso, nem a ação propositadamente nociva é considerada sempre imoral; por exemplo, matamos um mosquito intencionalmente e sem hesitação, porque o seu zumbido nos desagrada; condenamos o criminoso intencionalmente e o fazemos sofrer, para proteger a nós e à sociedade. No primeiro caso é o indivíduo que, para conservar a si mesmo ou apenas evitar um desprazer, faz sofrer intencionalmente; no segundo é o Estado. Toda moral admite ações intencionalmente prejudiciais em caso de legítima defesa: isto é, quando se trata da autoconservação! Mas esses dois pontos de vista são suficientes para explicar todas as más ações que os homens praticam uns contra os outros: o indivíduo quer para si o prazer ou quer afastar o desprazer; a questão é sempre, em qualquer sentido, a autoconservação. Sócrates e Platão estão certos: o que quer que o homem faça, ele sempre faz o bem, isto é: o que lhe parece bom (útil) segundo o grau de seu intelecto, segundo a eventual medida de sua racionalidade. [Nietzsche, 2000, 77-8]

Deste modo o agir humano para Nietzsche sempre é bom, tendo em vista que em seguindo sua natureza, e não o direcionamento racional de uma vontade livre, ele não tem opção por agir de um modo distinto. Assim chegamos finalmente à idéia da irresponsabilidade moral: em última instância o homem não pode ser responsabilizado por seus atos, tendo em vista que não age moralmente, assim como um leão não pode ser responsabilizado moralmente por comer uma gazela. No texto abaixo, que embora extenso em comparação aos aforismos de Nietzsche, o filósofo nos dá uma boa idéia de como se fantasia um arbítrio livre como justificativa para a fraqueza ou como condenação para a força:

(...) – Exigir da força que não se expresse como força, que não seja um querer-dominar, um querer-vencer, um querer-subjugar, uma sede de inimigos, resistências e triunfos, é tão absurdo quanto exigir da fraqueza que se expresse como força. Um quantum de força equivale a um mesmo quantum de impulso, vontade, atividade – melhor, nada mais é senão este mesmo impulso, este mesmo querer e atuar, e apenas sob a sedução da linguagem (e dos erros fundamentais da razão que nela se petrificaram), a qual entende ou mal-entende que todo atuar é determinado por um atuante, um “sujeito”, é que pode parecer diferente. (...) a moral do povo discrimina entre a força e as expressões da força, como se por trás do forte houvesse um substrato indiferente que fosse livre para expressar ou não a força. Mas não existe um tal substrato; não existe “ser” por trás do fazer, do atuar, do devir; “o agente” é uma ficção acrescentada à ação – a ação é tudo.(...)

Se os oprimidos, pisoteados, ultrajados exortam uns aos outros, dizendo, com a vingativa astúcia da impotência: “sejamos outra coisa que não os maus, sejamos bons! E bom é todo aquele que não ultraja, que a ninguém fere, que não ataca, que não acerta contas, que remete a Deus a vingança, que se mantém na sombra como nós, que foge de toda maldade e exige pouco da vida, como nós, os pacientes, humildes, justos” – isto não significa, ouvido friamente e sem prevenção, nada mais que: “nós, fracos, somos realmente fracos; convém que não façamos nada para o qual não somos fortes o bastante”; mas esta seca constatação, esta prudência primaríssima, que até os insetos possuem (...), graças ao falseamento e à mentira para  si mesmo, próprios da impotência, tomou a roupagem pomposa da virtude que cala, renuncia, espera, como se a fraqueza mesma dos fracos – isto é, seu ser, sua atividade, toda a sua inevitável, irremovível realidade – fosse um empreendimento voluntário, algo desejado, escolhido, um feito, um mérito. Por um instinto de autoconservação, de auto-afirmação, no qual cada mentira costuma purificar-se, essa espécie de homem necessita crer no “sujeito” indiferente e livre para escolher. O sujeito (ou, falando de modo mais popular, a alma) foi até o momento o mais sólido artigo de fé sobre a terra, talvez por haver possibilitado à grande fé sobre a terra, talvez por haver possibilitado à grande maioria dos mortais, aos fracos e oprimidos de toda espécie, enganar a si mesmos com a sublime falácia de interpretar a fraqueza como liberdade, e o seu ser-assim como mérito. [Nietzsche, 1998, 36-7]

Percebemos que para Nietzsche não há distinção entre o homem e a natureza, este faz parte daquela, é uma de suas espécies. Todavia o homem foi o único animal que até hoje rompeu, por assim dizer com sua natureza, criando a possibilidade de escolher metas para si e progressivamente dominar seus impulsos. Este processo para Nietzsche se dá através da moral e da razão: a razão habilitou o homem para escolher metas para si, e a moral foi uma destas metas, através da qual ele seria capaz de dominar sua própria barbárie e selvageria. É importante aqui, que não pensemos que este escolher metas para si seja uma ação livre, ele não é! Apenas os homens de natureza mais fortes estão aptos para isso, e neste caso escolher metas para si, é a própria expressão desta força, quanto aos mais fracos, eles acabam sendo o alvo deste tipo de força, expressa pela capacidade de escolher metas para si. Isto se verifica no modo pelo qual Nietzsche compreende o surgimento do Estado:

(...) O indivíduo pode, na condição que precede o Estado, tratar outros seres de maneira dura e cruel, visando intimidá-los: para garantir sua existência, através de provas intimidantes de seu poder. Assim age o homem violento, o poderoso, o fundador original do Estado, que subjuga os mais fracos. Tem o direito de fazê-lo, como ainda hoje o Estado o possui; ou melhor: não há direito que possa impedir que o faça. Só então pode ser preparado o terreno para toda moralidade, quando um indivíduo maior ou um indivíduo coletivo, como a sociedade, o Estado, submete os indivíduos, retirando-os de seu isolamento e os reunindo em associação. A moralidade é antecedida pela coerção, e ela mesma é ainda por algum tempo coerção, à qual a pessoa se acomoda para evitar o desprazer. Depois ela se torna costume, mais tarde obediência livre, e finalmente quase instinto: então, como tudo o que há muito tempo é habitual e natural, acha-se ligada ao prazer – e se chama virtude. [Nietzsche, 2000, 75-6]

Porém este processo de autodeterminação do indivíduo é um processo de experimentação, no qual umas metas vão sendo substituídas por outras. Às vezes também é um processo carregado de crueldade, como o próprio Nietzsche afirma:

Ela é simultaneamente uma doença que pode destruir o homem, essa primeira erupção de vontade e força de autodeterminação, de determinação própria dos valores, essa vontade de livre vontade: e quanta doença não se exprime nos selvagens experimentos e excentricidades com que o liberado, o desprendido, procura demonstrar seu domínio sobre as coisas! Ele vagueia cruel, com avidez insaciada; o que ele captura, tem de pagar a perigosa tensão do seu orgulho; ele dilacera o que o trai. Com riso maldoso ele revolve o que encontra encoberto, poupado por algum pudor (...). [Nietzsche, 2000: 75-6]

Torno a insistir na importância de que não se interprete este agir cruel do homem forte, cuja força se manifesta na autodeterminação e no traçar metas para si, e muitas vezes obrigar os outros a segui-las, como uma ação moral (sujeita à predicação boa/má), é na verdade, uma ação natural.

Dissemos anteriormente que para Nietzsche o agir humano sempre é bom, por ser apenas a manifestação de sua natureza, ou seja, está isento de valores morais; não segue os ditames de uma escolha livre pautada em uma análise racional das possibilidades implicadas no agir. Mesmo o escolher metas para si (entre estas metas a moral), fruto da razão, é a manifestação de uma natureza forte, obedecer e seguir estas metas, quando são imposições exteriores, também não é uma escolha, mas novamente a manifestação de uma vontade, embora fraca. Por fim nos deparamos aqui então, com o que seria a essência da idéia de irresponsabilidade moral: o agir humano não é moral, e sim natural. A moralização do agir humano é um processo histórico, que tem seu início em um indivíduo (ou vários, até mesmo uma sociedade) de natureza forte, cuja manifestação da força, consiste justamente em escolher metas para si, entre estas metas, em um dado momento histórico, se inseriu a moral do bem e do mal. Estas metas sendo uma criação dos próprios homens (os de natureza forte), e não uma imposição divina e transcendente, não há porque o homem ser responsabilizado por suas ações mais do que se responsabiliza o leão que ataca e devora sua preza. A este respeito afirma Nietzsche:

Qual pode ser nossa única doutrina? – Que ninguém ao homem suas propriedades; nem Deus, nem a sociedade, nem seus pais e ancestrais, nem ele mesmo (...). Ninguém é responsável em geral por existir, por ele ser constituído de tal ou tal modo, por ele se encontrar sob estas circunstâncias, nesta ambiência. A fatalidade de sua existência não pode ser separada da fatalidade de tudo o que foi e de tudo o que será. O homem não é a conseqüência de uma intenção própria, de uma vontade, de uma finalidade. Com ele não é feita a tentativa de alcançar um “ideal de moralidade”. – É absurdo querer fazer rolar sua existência em direção a uma finalidade qualquer. Nós inventamos o conceito de “finalidade”: na realidade falta a finalidade...(...). Não há nada que pudesse julgar, medir, comparar, condenar nosso ser, pois isso significaria julgar, medir, comparar, condenar o todo... Mas não há nada fora do todo! Que ninguém mais seja responsável, que o modo de ser não possa ser reconduzido a uma causa prima, que o mundo não seja uma unidade nem enquanto mundo sensível, nem enquanto “espírito”: só isso é a grande libertação. – Com isso a inocência do vir-a-ser é restabelecida... (...). [Nietzsche, 2000: 49-50]

Supondo que alguém perceba a rústica singeleza desse famoso “livre arbítrio” e o risque de sua mente, eu lhe peço que leve sua “ilustração” um pouco à frente e risque da cabeça também o contrário deste conceito monstro: isto é, o “cativo arbítrio”, que resulta em um abuso de causa e efeito. Não se deve coisificar erroneamente “causa” e “efeito”, como fazem os pesquisadores da natureza (...), conforme a tacanhez mecanicista dominante, que faz espremer e sacudir a causa, até que “produza efeito”; deve-se utilizar a “causa”, o “efeito”, somente como puros conceitos, isto é, como ficções convencionais para fins de designação, de entendimento, não de explicação. No “em si” não existem “laços causais”, “necessidade”, “não-liberdade psicológica”, ali não segue “o efeito à causa”, não rege nenhuma “lei”. Somos nós apenas que criamos as causas, a sucessão, a reciprocidade, a relatividade, a coação, o número, a lei, a liberdade, o motivo, a finalidade; e ao introduzir e entremesclar nas coisas esse mundo de signos, como algo “em si”, agimos como sempre fizemos, ou seja, mitologicamente. [Nietzsche, 1992: 27]

Se um livre arbítrio não é possível, também não o é um “cativo arbítrio”, preso nas cadeias da causa e do efeito. Todo agir humano para Nietzsche é instintivo e natural, a moralização é o resultado de um processo histórico, que se inicia a partir da diversidade da natureza, da qual a natureza humana é apenas mais um componente. Só se pode pensar causalmente quando se recorta a natureza, mas dentro do todo ao qual se refere Nietzsche na primeira citação das duas anteriores, não é possível analisar onde começa e onde termina um processo, não é possível se julgar o todo, pois não há nada fora do todo.

A assunção de uma teoria como a da total irresponsabilidade perante o bem e o mal, traz quase que uma humilhação para o homem, pois este via seu maior substrato de humanidade, justamente na capacidade de fazer escolhas morais, e de estas escolhas serem livres, uma vez esta possibilidade negada, ele se encontra novamente em meio à natureza, percebendo inclusive a aceitação e/ou não aceitação de uma moral como elemento desta natureza. Todavia essa natureza não é estática e evolui tentando se aprimorar, através de um processo gradual de crescimento que Nietzsche nomeia de Vontade de Poder* (Wille zur Macht), que é o próprio movimento da natureza tornando-se mais forte e mais pulsante, a vida que se expande, não apenas se mantém.

Irresponsabilidade e inocência. – A total irresponsabilidade do homem por seus atos e seu ser é a gota mais amarga que o homem do conhecimento tem de engolir, se estava habituado a ver na responsabilidade e no dever a carta de nobreza de sua humanidade. Todas as suas avaliações, distinções, aversões, são assim desvalorizadas e se tornam falsas: (...); ele já não pode louvar nem censurar, pois é absurdo louvar e censurar a natureza e a necessidade (...); entre as boas e as más ações não há uma diferença de espécie, mas de grau, quando muito. Boas ações são más ações sublimadas; más ações são boas ações embrutecidas, bestificadas (...). Os graus da capacidade de julgamento decidem o rumo em que alguém é levado por esse desejo [de agir no bem ou no mal]*; toda sociedade, todo indivíduo guarda continuamente uma hierarquia de bens, segundo a qual determina suas ações e julga as dos outros. Mas ela muda continuamente, muitas ações são chamadas de más e são apenas estúpidas, porque o grau de inteligência que se decidiu por elas era bastante baixo. E em determinado sentido todas as ações são ainda estúpidas, pois o mais elevado grau de inteligência humana que pode ser atingido será certamente ultrapassado: então todos os nossos atos e juízos parecerão, em retrospecto, tão limitados e precipitados como nos parecem hoje os atos e juízos de povos selvagens e atrasados. – compreender tudo isso pode causar dores profundas, mas depois há um consolo: elas são as dores do parto (...). Nos homens que são capazes dessa tristeza – poucos o serão! – será feita a primeira experiência para saber se a humanidade pode se transformar, de moral em sábia. [Nietzsche, 2000: 81-3]

O texto acima dá uma mostra perfeita de como Nietzsche encara o movimento de desenvolvimento da própria natureza, e de como a moral neste processo corrobora o crescimento da natureza. Para Nietzsche a moral é um elemento contrário à natureza primitiva humana, mas que através de processos de expansão da Vontade de Poder e de uma profunda submissão e repetição acabaram tornando-se parte da natureza humana. Deste modo o filósofo alemão mostra que as ações humanas não sendo livres, e os homens não sendo responsáveis por seu ser/agir assim ou de outro modo, são todos irresponsáveis moralmente por seus atos, todavia, são responsáveis sociais por eles, pois a mesma sociedade que lhe obrigou a aceitação dos valores morais, também o julgará por estes valores.

Apenas alguns homens, aqueles que Nietzsche nomeia como Espíritos Livres, têm a força suficiente para romper com os limites de sua própria natureza e também com as imposições sociais e projetarem-se em novas direções, expandindo suas forças, e permitindo que os domínios do natural cresçam sobre aquilo que inicialmente lhes parecia inatural, ou seja, estes Espíritos Livres, dotados de uma Vontade de Poder forte e jovial obrigam a natureza a dar uma volta sobre si mesma, expandindo os limites de sua dominação.

Bibliografia.

ANSELL-PEARSON, Keith. Nietzsche contra Rousseau: Nietzsche’s moral and political thought. Nova York: Cambridge University Press, 1991.

DELEUZE, Gilles. “Pensamento Nômade”. In: MARTON, Scarlett (org.). Nietzsche hoje? São Paulo: Brasiliense, 1985. p. 56-76.

ITAPARICA, André Luiz. Nietzsche: Estilo e Moral. São Paulo: Discurso Editorial/Editora Unijuí, 2002.

JUNIOR, Oswaldo Giacóia. Nietzsche. São Paulo: Publifolha, 2000.

______. Nietzsche como Psicólogo. São Leopoldo (RGS): Editora Unisinos: 2001.

KAUFMANN, Walter. Nietzsche: philosopher, psychologist and antichrist. New York: Princeton University Press, 1960.

NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. A Gaia Ciência. Tradução, notas e posfácio: Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras 2001.

______. Além do Bem e do Mal: prelúdio a uma filosofia do futuro. Tradução, notas e posfácio: Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras 1992.

______. Aurora: reflexões sobre os preconceitos morais. Tradução, notas e posfácio: Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras 2004.

______. Crepúsculo dos Ídolos. Tradução: Marco Antônio Casanova. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000. (Conexões 8).

_______. Genealogia da Moral: uma polêmica. Tradução, notas e posfácio: Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

______. Humano, Demasiado Humano: um livro para espíritos livres. Tradução, notas e posfácio: Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras 2000.

 ______. Sämtliche Werke. Kritische Studienausgabe, edição organizada por Giorgio Colli e Mazzino Montinari, 15 volumes. Berlim: Walter de Gruyter & Co., 1988.

Notas

* O termo mestres da suspeita foi criado por Michel Foucault, e refere-se originalmente a K. Marx, S. Freud e F. Nietzsche. Ver: FOUCAULT, M. Theatrum Philosoficum. In : Dits et Écrits, v. I. Paris: NRF, Éditions Gallimard, 2001.

* Para Nietzsche a natureza não é estática, o que nos permite pensar a natureza humana, mesmo dentro de cada indivíduo em constante transformação. Isso é importante para que não se pense Nietzsche como um filósofo naturalista ou determinista, para o filósofo há possibilidade de que o indivíduo supere sua própria natureza, a própria idéia de um além-do-homem (Übermensch), está ligada a possibilidade de superação da natureza humana em direção a uma natureza mais vigorosa e jovial.

* Nietzsche tem uma extensa teoria acerca da Vontade de Poder, todavia não abordarei de modo aprofundado este ponto, para não me desviar do objetivo central deste trabalho, desta forma, trataremos aqui Vontade de Poder, como vontade de vida, como o sentimento de crescimento e expansão da vida, presente em toda a natureza, embora se manifeste de modos diferentes.

* Observação minha.



[i] Vagner da Silva bacharelou-se em história pela Universidade Federal de Rondônia (Unir) no ano de 2003, com um estudo crítico da inserção da economia amazônica na economia nacional da década de 1940-60. Posteriormente titulou-se como mestre em filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas, onde foi bolsista do Capes e defendeu a dissertação: A Grande Política de Nietzsche: uma moral da irresponsabilidade (2005). Nesta mesma universidade ainda ligou-se ao grupo de pesquisa Ética, Cultura e Sociedade, do qual ainda faz parte. Durante o período do mestrado também participou de diversos congressos e seminários de filosofia, publicando outros artigos sobre filosofia moral e filosofia política. Atualmente o autor se prepara para seleção de ingresso no curso de doutorado, e estuda as possibilidades de se criar, a partir do pensamento de Nietzsche uma nova concepção de pedagogia.




Copyright© 2000
CEI - UNIR
Todos os Direitos Reservados.
    
Página Principal   |   Artigos