Labirinto - Revista Eletrônica do Centro de Estudos do Imaginário

  

José de Alencar: memórias e canto indianista

 

Cléria Botelho da Costa*


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CONSELHO EDITORIAL
Arneide Cemin
Ednaldo Bezerra Freitas
Valdir Aparecido de Souza

  

 

“ Se a História representa o desejo  verdade, o romance representa o desejo da efabulação, com a sua própria verdade “.

Antonio Cândido

RESUMO:  Neste texto analisarei alguns aspectos das obras Iracema e Guarani, de José de Alencar escritas, em 1865 e 1857 respectivamente,  as quais cantam o indianismo no Brasil do século XIX. Destacarei a literatura enquanto possibilidade de construção da identidade nacional, realçando a senha nacionalista nas obras em relevo e a não visibilidade que é dada ao negro na formação da nacionalidade brasileira, traço comum a outros países do Caribe.  Destacarei também, os elementos textuais que, particularizando o modo literário do autor , ajudam a decifrar o mosaico de sugestões oferecidas pela realidade. Pelo andamento do enredo, pela formulação da linguagem e pela construção do foco narrativo tentarei identificar a ligação dessas obras com o contexto do qual elas emergem.

                                      Utopia Romântica e Ótica Nacionalista

Se no desejo de transparecia os romances alencarianos incorporam características de regionalismo e urbanismo, sua modulação é de função romântica. Enquanto estilo da época, o Romantismo  abrigou marcas e procedimentos tão diferentes que se torna quase impossível defini-lo com apoio no simples levantamento de algumas características. A combinação de atitudes díspares tem levado os estudiosos do tema como Ernest Fischer[1] , dentre outros, a insistirem na ênfase da contradição como seu princípio fundamental. Nascida do choque entre o ideal e a realidade sempre limitada, a perspectiva romântica conduz ao desencanto e à insatisfação, cujas conseqüências, do ponto de vista existencial e estético serão muitas. Dante Moreira Leite em seu importante estudo sobre o sentimento nacionalista no Brasil[2] traça um sensível perfil do Romantismo entre nós, destacando a relevância de alguns de seus traços na estruturação de nosso caráter nacional. Entre os elementos que teriam repercutido decisivamente na constituição da vida nacional, ele assinala: a ligação profunda entre a natureza e o homem, a procura de uma língua nacional e a celebração do índio como o verdadeiro dono da terra, alertando para a sua identificação com a exuberância da tão decantada paisagem natural.

Todas essas características levam diretamente ao conceito de nacionalismo, que participa do cerne da atitude romântica. Se é certo que o sentimento nacionalista beneficiou-se das condições instaladas na Europa com o Liberalismo, tivemos, no Brasil do século XIX, mergulhado numa situação confusa , sobretudo pela permanência do escravismo em seu sistema econômico , também a sua expressão. Apesar da dura realidade do país, causada pela evidencia do seu atraso, a independência gerava um entusiasmo que aumentava a confiança no seu futuro. E, para ampliar a possibilidade desse futuro, era fundamental construir uma imagem de seu passado apta a satisfazer as necessidades de história que todo nacionalismo por definição requer, o que pode explicar a supervalorização do índio por Alencar, como um antepassado valoroso e com estatuto de ser próprio da terra, para redignificar um povo manchado pela dominação colonial. A anterioridade desses homens que aqui se encontravam quando chegou o português expressava uma marca capaz de estabelecer a distinção indispensável à nacionalidade brasileira nesse momento estratégico para a sua afirmação.

Assim, a conjugação de história e passado constituía um pressuposto básico para a construção do nacionalismo no Brasil bem como em outros países do Caribe. No Brasil a paixão nacionalista se espalha após 1922. O indianismo aparece matizado por uma conotação ideológica ambígua: o desejo de reforçar o próprio para minimizar a intensidade do alheio que permeava nossa composição cultural; porém estava insidiosamente marcado o seu lado conservador; convertido em imagem do passado, escondia-se a contemporaneidade de sua situação. Evitava-se colocar em risco a ordem em vigor, uma vez que não se tocava no problema da escravidão. Encantadas com o glorioso passado, nossas elites não se preocupavam com a miséria e marginalização que em pleno século XIX já atingia os herdeiros reais de nossos míticos antepassados. A utopia, então, constituía-se sobre matizes de uma certa historicidade, apoiando-se em forças potenciais vislumbradas pelo entusiasmo gerado pela independência e os  descompassos que a velocidade colonial impôs ao ritmo da tradição. Assim, a perspectiva romântica está na raiz pela mudança e dos sonhos pela transformação ainda que sob a égide de uma composição social onde as fraturas acionavam a coexistência de extremos: de um lado, modos presididos pelo presente e de outro, formas arcaizadas orientadas por um outro código.

As obras Iracema e o Guarani são testemunhos da preocupação de Alencar com o tema nacional expresso na figura do índio , ao que me leva a crer muito influenciada pelo mito do “ bom selvagem” , o que mostra em Alencar a presença de idéias  de Rousseau. Gilberto Freire ao tecer comentários sobre a biografia de Alencar reafirma a filiação do autor ao romantismo:

“ Ele reúne fatos, por si próprios românticos , sem submetê-los a qualquer espécie de interpretação capaz de dar odor clínico ou travo científico à sua narrativa literária “.

Na elaboração [3]dessas obras, o autor utiliza procedimentos artísticos articulados com a valorização de traços que idealizam o índio , em favor de uma mitopoética histórica onde se podem combinar o telúrico e o celestial. A cada capítulo abrem-se aos olhos do leitor cenas em que os matizes da nacionalidade, ainda nascente, propiciam a sugestão de emblemas patrióticos e de elementos quase míticos em sua vontade de coerência e lisura; tudo contribuindo para a crença na utopia reclamada pelo texto. Jacó Guinsburg [4] aponta questões que podem nos auxiliar na compreensão desse aspecto na estruturação do romance alencariano:

“ É certo que, sob a tutela de seus numes ou espíritos e de seus heróis por eles inspirados, a história romântica traça a trajetória de cada povo, país ou nação como se ela fosse imbuída de um telos , de uma finalidade a presidir-lhe o sentido de sua existência e nascida de um ontos intrínseco , do-ser-do-grupo, cuja verdade específica , irrefutável em seu campo específico porque não sujeita a prova empírica ou lógica, inapreensível só pela razão sem o sentimento e a intuição, guiaria a grei, realizando-se nela e levando-a através de crises e tragédias personalizadas ou coletivas às realizações expressivas de seus fatos e dos feitos de seus expoentes “.

Nos livros em discussão os índios, personagens centrais dessas obras são enfocados em cenários selvagens, eles emergem como elementos da natureza, enfatizam a cor local e são símbolos de um passado histórico idealizado e glorioso. Nelas, o sentimento nativista e a valorização do índio ganham tons de valorização e exagero , principalmente quanto às características físicas e morais e assim, o autor os apresenta nos romances como heróis. Na obra O Guarani, por exemplo, ao descrever o índio ele ressalta “ sua alvura diáfana do algodão, a sua pele cor de cobre, brilhava com reflexos dourados.(...) a boca forte , mas bem modelada e guarnecida de dentes alvos , davam ao rosto a beleza inculta , da força e da inteligência” (pg 43).  Na visão de Alencar o índio parece representar a perfeita conciliação entre o homem e a natureza.

Historicamente delineada, a utopia para os literatos brasileiros estava associada à independência do Brasil, cuja efetivação condicionava atitudes esteticamente ligadas ao conteúdo ético do sentimento nacional. Nessa linha inscreve-se, por exemplo, o processo de particularização tão característico da concepção romântica. No romance de José de Alencar esse esforço vai materializar tanto na incorporação de elementos locais , com reflexos na referencia a traços culturais próprios como: objetos, hábitos, crenças, etc quanto na tentativa de nacionalizar esforço explicitado ao preservando a oralidade nos seus romances como afirmação de um grau de autonomia essencial à conquista da identidade nacional. Contudo, apesar daquela preocupação não se furtou a generosidade do emprego de adjetivos – considerados excessivos sobre a ótica atual, o uso de advérbios e de figuras metafóricas que a um só tempo permitiam exaltar a natureza  e o índio ligado à ela. Disso resulta uma linguagem exuberante, colorida, marcada pela plasticidade nas extensas descrições.

A construção idealizada de Iracema , a “virgem dos lábios de mel” e de Peri, índio que tinha um farto vocabulário e ampla imaginação , aponta a direção escolhida pelo autor para conjugar utopia romântica e nacionalismo, formas e conteúdos em romances que tiveram como preocupação central  a construção e a disseminação do nacionalismo no país. Penetrando no interior da matéria ficcional , o narrador de Alencar suaviza a distancia que poderia haver entre o sujeito que escreve e o mundo daqueles sobre os quais tece o seu texto.  Mesmo sob a forma de uma terceira pessoa , nos dois romances , esse narrador está identificado culturalmente com o universo narrado, numa atitude que, graças ao contexto especial daquele momento, acaba por exprimir também a adesão ideológica às propostas ali sugeridas e até veiculadas de maneira mais clara.

Através da identificação concretizada  na linguagem, o narrador se inscreve na cadeia de solidariedade trançada pelos personagens para apreender como valorosa a cultura dos índios brasileiros e a possibilidade de aperfeiçoamento dessa pelo contato com os brancos europeus , que ofereciam aqueles a civilização e a fé cristã. Assim, a mistura da tradição européia com a beleza, coragem e virtudes dos índios poderia constituir a base étnica da nação brasileira.

Sob o ângulo da temática , observo que o cotidiano de Iracema quanto o de Peri revelam que embora sob o signo da dor, da separação e da guerra , o índio participando do processo de nacionalização do país, inviabilizado no quadro colonial. A despeito da nitidez da temática trabalhada por Alencar nos romances em tela, o indianismo e a relação explícita desse com o movimento histórico que animava a sociedade brasileira no século XIX – o nacionalismo, o seu projeto literário não põe em risco o estatuto literário do texto, porque aliado ao legítimo desejo de transformar o país em nação estão a necessidade de inventar – missão do artista – e o empenho no aproveitamento das virtualidades que a realidade, por mais dura e nebulosa, não deve encobrir. Fato que põe em cena o pacto entre  a  literatura romântica e a realidade desconstruindo a compreensão dicotômica de que a literatura romântica é forjada somente a partir da imaginação. Isso porque não existe um real objetivo, realidade fotográfica , toda realidade é perpassada pela imaginação de quem a percebe[5]. Assim, realidade e ficção se misturam na configuração do imaginário e desse modo, os limites entre literatura e história se tornam cada vez mais tênues.

O projeto ideológico de José de Alencar de disseminar, por meio das obras Iracema e O Guarani , o imaginário nacionalista se cumpriu. No entanto vale lembrar que esse integrava um projeto maior da literatura brasileira no XIX – compartilhar com o s ideais do Império de transformar o país em nação á exemplo do que já vinha ocorrendo em alguns países europeus. Assim, os literatos brasileiros , no período em pauta , como José de Alencar, Joaquim Macedo, Visconde de Taunay, Bernardo Guimarães dentre outros, para ficarmos apenas, no romantismo em prosa, em seus romances buscavam , por meio da literatura , fazer frente à rede opressiva da violência colonial vivenciada pelo país e  propalar um imaginário de fé e confiança na proposta nacionalista que nascia. Estavam articulados a um movimento eticamente comprometido com a conscientização do momento histórico e com a Independência do país. Essa preocupação em espargir o imaginário nacionalista, via literatura foi uma prática comum em muitos outros países  caribenhos como Cuba, Haiti dentre outros, que lutaram e continuam lutando para a construção da identidade nacional em oposição ao projeto colonialista.

Observo, no entanto, que a função da  literatura tanto no Brasil quanto em outros países caribenhos, no século XIX, era de “sacralização “, ou seja , consistia em amalgamar a comunidade em torno de seus mitos, de suas crenças, de seu imaginário como ensina    Edouard Glissant [6]. E acrescento, das letras à repressão , tudo foi utilizado para  construir , de forma homogênea, a imagem do país que a elite, na verdade , ainda não tinha podido criar. A nação imaginada como seria pela literatura , resulta, pois , da urgência de se contrapor algo ao projeto colonialista. Assim, o nacionalismo que mobilizaria movimentos culturais e políticos naqueles países confirma o conceito defendido por Anderson[7], para quem : o “ nacionalismo não é o despertar das nações para a auto- consciência: ele inventa nações onde elas não existem”.

No entanto, questiono essa  função sacralizadora da literatura, ou seja, a sua capacidade de dar homogeneidade a um leque de diversidade política, cultural existente em cada país.  Uma   mesma sociedade , por exemplo, Cuba, apresenta internamente, matizes diferenciados presididas por critérios amplamente diversificados como  a cor, a classe social, ao gênero etc, e essas diferenças, não tenho dúvidas , conduzem em seu bojo projetos políticos, culturais e sociais diversificados e, a conseqüente disputa de poderes.  Assim, no Caribe, grupos étnicos constituídos em grande quantidade por negros e afros-descendentes, tocados pela vil escravidão reconheceram-se como  diferente das demais camadas daquelas  sociedades e assim, defenderam um projeto político  abolicionista que se contrapunha ao projeto das elites . E, no sentido de fortalecê-lo , buscaram conexões entre os vários  países caribenhos  que abrigavam grande quantidade de negros africanos e afro descendentes. Nesse sentido, a possibilidade de existência de múltiplos projetos políticos, culturais  revela a dificuldade de se pensar a literatura como uniformizadora dos imaginários sociais.

Nos países que compõem o Caribe, ou seja , que foram hospedeiros da migração forçada africana e que, como herança africana ,  abrigam  sua população grande contingente de negros e afro descendentes, a literatura desempenhou e continua desempenhando valoroso papel na reconstrução da identidade étnica daquela camada da população.

                                                O fascínio do Outro

Os  romances Iracema e O Guarani enfocam as relações entre os próprios índios e destes com os brancos portugueses, focalizando os conflitos armados entre os silvícolas. No entanto,  é interessante observar a sutil intervenção do branco colonizador na cena que é primordialmente indígena. Em Iracema , essa interferência discretamente ameaçadora se faz presente através do português Martim que ao se perder na floresta, de seu amigo Poti  , entra na tribo inimiga dos tabajaras onde é muito bem recebido na cabana do pajé Araquém,  pois cada hóspede branco é sagrado para os índios. Assim, o branco , gente poderosa, para quem o mundo não tem caminhos desconhecidos, já começa a exercer um fascínio que se vai contrapor as experiências situadas no espaço das relações internas das tribos. Aos poucos se consolida o enfraquecimento desse universo com a união do branco português com a índia Iracema, ato motivador da  guerra entre as duas tribos – potiguás e tabajaras. Nessa luta, Iracema vê seus irmãos morrendo. Assim, o resultado é demonstrado no desafeto dentre a mesma tribo e no desrespeito aos padrões étnicos já estabelecidos. Em O Guarani, a narrativa tem na floresta tematiza o  amor e aventura numa seqüência ininterrupta, característica da imaginação prodigiosa de Alencar através da união do índio Peri com Ceci, branca e européia, filha do colonizador.

Mais uma vez, no romance, o fascínio do branco português fica evidenciado seja pelo encantamento de Ceci pelo índio Peri  seja  sobre o poder do pai de Ceci, um fidalgo português, colonizador, leal ao seu país. Aqui,  mais uma vez observa-se  que a presença portuguesa põe em confronto culturas diferentes – a dos portugueses brancos e a cultura indígena e cujos conflitos se desdobram no desmantelamento das forças responsáveis pela manutenção, da tribo indígena dos Aimorés e num total desrespeito aos preceitos sagrados daqueles. O efeito preponderante dessa quebra de valores parece ser exatamente a instalação de um clima de desordem, tornando confuso o repertório de elementos sobre o qual se fundam os traços da identidade cultural. Desprovidos assim desse eixo de sustentação, os índios se vêm alienados de sua força espiritual, incapazes de opor resistência aos desmandos do inimigo, representado pelos agentes da colonização. Um pequeno exemplo desse desrespeito cultural pode ser observado quando Peri, a pedido de Ceci, sua amada, torna-se cristão, única forma possibilitada para a fuga dos dois e a conseqüente sobrevivência deles,  na batalha com os Aimorés. Assim, a desqualificação dos valores grupais constitui face  complementar de uma equação que se desdobra no desmantelamento das forças responsáveis pela manutenção do grupo como tal. Em ambos, a quebra da identidade entre o índio e seu universo explica a dimensão do poder do colonizador branco camuflado pelo fascínio que exercia sobre o índio.

No entanto para nós que conhecemos as conseqüências dessa caminhada do índio em direção ao homem branco, compõem – se logo os sinais da inviabilidade. A escolha do índio como legítimo representante do homem brasileiro  propicia á exclusão do negro africano, considerado como estrangeiro, na formação da nação brasileira. O narrador/autor fiel a seu desejo de apresentar o índio como primeiro habitante do país, portanto, seu legítimo representante, silencia o negro. Ele não esconde sua fascinação pela beleza física dos índios, realça a coragem do silvícola , enaltece a  cultura deles embora deixe transparente a superioridade da cultura européia. Assim, se refere á Iracema “ o favo da jati não era doce como o seu sorriso ; nem a baunilha recendia no bosque como seu hálito perfumado “ (pg. 23). E no trecho que se segue de O Guarani ressalta a coragem     daquele  “ ... o selvagem distendeu-se com a flexibilidade da cascavel ao lançar o bote: fincando os pés e as costas no tronco, arremessou-se e foi cair sobre o ventre da onça, que (... ) debatia –se contra o seu vencedor ...”. O subjetivismo e idealização do índio são características marcantes de suas obras.

Para Alencar  e muitos outros românticos, a busca das raízes brasileiras os conduzira  à época do descobrimento e, a conseqüente  valorização do índio como    expressão  da raça nacional. Essa deveria se firmar a partir da mistura dos elementos da cultura indígena com a tradição européia, caminho seguro para a  “ brasileiridade “.  Temas como abolição e escravatura, questões candente na sociedade brasileira no XIX foram pelo autor silenciadas , certamente, consideradas como de somenos  importância    na construção da identidade nacional. Silencio que não tenho dúvidas , fora ditado pela colonização na História e na literatura no país , utilizadas à serviço das elites que, numa visão benjaminiana, sempre pisoteiam a tradição dos vencidos.

Essa parca visibilidade da cultura negra tanto na História quanto na literatura no XIX, fora comum tanto no Brasil quanto nos demais  rincões caribenhos que receberam migração forçada da África e tiveram na força de trabalho africana e de afro-descendente seus pilares na construção da nação. Por exemplo,  vale destacar que  no final do século XIX, viviam nas três maiores províncias do Império brasileiro  819. 789 escravos e 289.154 homens e mulheres livres, dos quais 41% eram descendentes de africanos. Portanto, se numericamente era expressiva a presença do negro no país os traços culturais africanos teimavam em fazê-los sobreviver seja na doçura da noite quando cantavam as velhas canções africanas, quando dançavam ao som de atabaque e , recontavam historias da África, dentre outras.  Contudo, nos  fazeres dos literatos e de muitos historiadores, os negros foram e continuam sendo silenciados. Traço comum a quase todos países caribenhos. Penso que outro dado a  ser levado em conta nesse silencio da cultura negra no Caribe é a visão  eurocentrica expressa não somente na literatura, mas também na historiografia de autores como MacIver [8]R. ,  Van Lier[9] dentre outros, que em geral silenciam a presença da cultura negra no Caribe, por se pautarem em uma visão teológica da História que dissemina o imaginário de superioridade das  sociedades européias, como modelos a serem alçados pelas sociedades caribenhas, logicamente inferiores. E essa lógica linear de inferioridade das sociedades caribenhas parece estar aliada ao signo de uma cultura da  cor na qual os brancos, europeus são sempre “civilizados”, “modernos” e os negros, africanos ou afros-descendentes são “bárbaros “, “incultos”. Essa compressão dicotômica da cultura me remonta a Bakhtin[10] ao apontar  que há circularidade dos  traços culturais, ou seja, aqueles não podem ser apreendidos como inerentes a uma determinada camada ou grupo social. Os mesmos traços culturais  são apropriados ora por um grupo ora por outro grupo, em tempo e espaço definidos, constituindo o que o mencionado autor denomina de circularidade cultural. Penso que a adoção da categoria  circularidade cultural, no quadro da teoria da cultura, possibilita uma visão crítica  à naturalização da  noção homogênea e vazia de essencialidade. Em outros termos, permite  que não se naturalize a cor branca ou negra do indivíduo, a  etnia como  definidora  da cultura humana. 

O silencio sobre o negro e a escravidão propiciado por  Alencar e outros românticos como Manoel Macedo, Álvares de Azevedo, dentre outros, foi interpretado anteriormente, como forma de exclusão daquele do projeto nacional brasileiro. No entanto, destaco que  por trás desse silencio poderia também , se esconder o desejo da elite de forjar uma imagem  nacionalista  do país  na qual a fraternidade racial fosse uma realidade. Além do índio, habitante nato das terras brasileiras,  para cá se dirigiram branco, negro embalados quem sabe, pela aventura, pela procura de riqueza ou simplesmente deportados pela coroa portuguesa, fato que propiciava a  imagem de uma sociedade na qual a convivência de diferentes etnias se fazia harmoniosamente. Além disso, vale lembrar que Alencar sempre foi fervoroso partidário da manutenção da monarquia e da escravidão [11]. E, como a obra literária expressa tanto o individual , identificado pelo estilo do escritor quanto o coletivo  expresso pelo ethos da comunidade, o imaginário conservador perpassou  sua escrita literária. Enquanto Castro Alves fazia eclodir a voz do negro escravo na sociedade brasileira, no mesmo século, Alencar e muitos outros a silenciavam Essas múltiplas possibilidades de atribuição de sentidos a um mesmo fato, no caso o negro e a escravidão,  me possibilitam afirmar que o escritor é um tradutor de sentidos. Por meio da literatura ele vai atribuindo sentidos aos fatos do cotidiano, ao vivido transformando-os em instantes poéticos como evidencia Bachelard[12] calcados tanto no histórico social quanto nas crenças ideológicas e individuais..   Assim, a literatura se configura como uma forma de reinvenção do mundo, um modo de tecer os diferentes fios de identidades disseminadas[13].

Contudo, a história do Romantismo revela que a escolha de seus caminhos pressupunha bem mais que a simples adoção de alguns procedimentos estéticos. O aspecto político desse movimento, ancorado no progresso político, social econômico e político da burguesia valorizava a iniciativa individual e a capacidade criadora de cada um. Além disso, integrar-se a correntes que atravessavam fronteiras, materializando-se em produções artísticas de vários países, significava inserir a literatura brasileira num esforço maior, vinculado a luta que através dela se efetivava a um projeto mais amplo. Vale lembrar que o romantismo, no Brasil, surge paralelo ao processo de independência política o que favorece a sua adesão ao movimento nacionalista. Daí  a preocupação  de José de Alencar em buscar    identificar, naqueles  romances, o “ genuíno brasileiro” na constituição da  nação brasileira.

É preciso assinalar que a preocupação anteriormente apontada conduz o autor ao movimento indianista na literatura pátria do século XIX e o fez com maestria. Iracema e O Guarani foram obras que lhes proporcionaram fama. Assim, o seu fazer nacionalista consistira na cooptação da tradição indígena em ficção. Muitas páginas de suas narrativas relatam mitos,  lendas, tradições, festas religiosas, usos e costumes observados por ele durante suas viagens. Acabou sendo um suave e prazeroso retratista do Brasil.

Munido do instrumental do fotógrafo que vasculha o mundo, procurando ângulos que lhe permitam revelar as realidades às vezes submersas nas desordens dos dias , Alencar lançava  mão de lentes que pudessem desvendar um universo nitidamente cindido, onde se contrapõem o lado dos brancos e o lado dos índios. A unificá-los apenas o peso de um projeto que delineava a mistura do branco com o índio. Nos dois romances é muito  forte o encanto do narrador/autor pelos homens do além mar, mantendo-se fiel ao imaginário predominante da  época de que o meio cultural brasileiro deveria se manter em contato constante com os grandes centros europeus, águas que deveriam irrigar e fortalecer nosso modo de vida. Impulsionado por esse fascínio, José de Alencar  desenhara nesses romances indianistas,  a nação brasileira com a qual sonhara – mistura dos ameríndios, legítimos brasileiros,  com os brancos, europeus. Vale destacar que o sonho da libertação nacional  também fora acalentado por outros países do Caribe como Cuba, Republica Dominicana e Porto Rico, que  no século XIX, vivenciaram a opressão colonial e organizaram movimentos nacionalistas contra a Espanha, a metrópole colonizadora. Contudo, nestes países, o movimento nacionalista também não se preocupou em dar visibilidade à cultura negra naqueles espaços, em reconhecer o negro como sujeito  na formação das nações cubana, dominicana e porto-riquenha [14]. Assim,  nem mesmo na região do Caribe , espaço que recebera grande contingente de mão de obra forçada do continente africano e cujas culturas foram matizadas pela negritude,  à  cultura negra foi posta em visibilidade. O seu ocultamento significa a exclusão do negro do projeto que arquitetava a nação. 

                                              Memória: a experiência possível

O apego à dimensão da memória faz pensar nas relações que as obras Iracema e O Guarani, tão linhadas na modernidade do romance, podem estabelecer com o passado. E, nas obras são significativos os elos surpreendidos entre os textos de Alencar e a identidade cultural brasileira.  Era primeira metade do século XIX, época em que a civilização ocidental vivia profundas contradições, grande parte delas trazidas pela revolução industrial e pelo aumento da complexidade determinado por ela. Assim, marcado pela preocupação de dar um passo à frente na construção da identidade cultural, o imaginário alencariano reconstrói luzes saudosista da tradição indígena , com ares medievais, ele também se direciona para  o presente e  para o futuro encarnados na preocupação  de transformar o país em nação.  Assim, o passado é visitado pelo escritor numa perspectiva que avança para o futuro. Aqui se delineia o reino da ficção. Despido do saudosismo imobilista , seu trabalho prefere , na verdade, envolver num só abraço o passado e a modernidade como forças conjugadas para viabilizar a coerência e o alcance de seu verbo.  Contudo, um olhar para o outrora de Alencar reporta para o menino, no seio domestico, lendo velhos romances para a mãe e tias enquanto rodeado pelas cenas da vida sertaneja e da natureza pátria  que tanto influenciaram o sentimento nativista que lhe fora transmitido pelo pai revolucionário.

Do pensamento moderno, Alencar acolhe a motivação permanente, responsável por dotar as obras em tela do direito (e, possivelmente, do dever) à experimentação contínua. O inconformismo diante das limitações postas pelo mundo absurdo retesa a disposição de adaptar o épico à tendência romântica pela cor local e pela investigação histórica, em reconstituir com rigor e pormenor , o passado, baseando suas obras em volumosa documentação. O caráter exótico da natureza indígena apontado na literatura alencariana, serve ao passado mitológico brasileiro , parecido em sua figuras com os romances medievais, mostrando a influencia que tivera a literatura européia sobre o escritor. A articulação entre elementos selecionados através da observação cotidiana e elementos resultantes da relação com muitas formas culturais entre as quais a leitura de autores internacionais como Goethe, Lamartine, Byron entre outros, de escritores nacionais como Gonçalves Dias, Basílio da Gama , dentre outros e o contato direto com as manifestações da cultura nacional,  condensa-se nos exercícios da imaginação e acaba por conduzi-lo a um caminho literário que buscou espargir a literatura brasileira nos diferentes rincões do país objetivando a unidade do pensamento nacional. Desse modo, a literatura se colocava a serviço do Império que motivado pela modernidade européia buscava transformar o Brasil em nação. Assim, , ele e muitos outros literatos como Castro Alves, Gonçalves Dias, Álvares de Azevedo  acreditaram na possibilidade de construção de  um “ projeto literário brasileiro”.  Sonho que não se concretizara seja pelo país estar cortado por profundas chagas sociais, cicatrizes da época colonial, seja por importar traços culturais das metrópoles  européias e desse modo, ser a literatura no Brasil, um braço da européia[15].

Na base do comportamento inventivo do escritor pode, sem dúvida, estar à reconstrução de dados enraizados no passado, como a construção de imagens calcadas na sua terra natal. Em  Iracema, por exemplo, o escritor escreve “ o livro é cearense. Foi imaginado aí, na limpidez desse céu de cristalino azul, e depois vazado no coração cheio das recordações vivazes de uma imaginação virgem” ou ainda “ Creio que, ao abrir o pequeno volume , sentirá a onda do mesmo aroma silvestre e bravio que lhe vem da várzea. Derrama-o , a brisa que perpassou nos espatos da carnaúba e na ramagem das aroeiras em flor” ( p.18) cristalizando o apego ao chão nacional.

Os sinais mais patentes do enraizamento revelam a familiaridade do escritor com o universo sobre o qual lança o seu olhar interessado. E, a organização da experiência através da memória possibilita o auto conhecimento pelo herói ou heroína do romance. Após a experiência  de árdua luta na guerra sangrenta entre as duas tribos, a personagem Iracema, heroína do  romance do mesmo nome vive relampejos de felicidade ao lado de Martin, seu grande amor. No entanto,  bloqueada no viver pleno,  ela se socorre pelo ato do perdão e pela existência de Moacir, sangue do seu sangue e por meio do qual esperava espargir a continuidade de sua vida, representação , talvez, da sua capacidade de resguardar o grato exercício da resistência. E, cedo  está fora do reino das ações , impedida pois de continuar nos embates com a vida.

A narrativa proposta pelo autor o sentimento nativista e a valorização do índio ganham tons de exagero, principalmente quanto às características físicas e morais do índio, o herói sem vacilações. O índio seria a conciliação perfeita entre o homem e a natureza. E o branco português, a representação da modernidade européia. Nesse sentido, a tradição e a modernidade são, portanto, variáveis de um mesmo problema que transparece na relação entre vida e literatura, entre realidade e linguagem.

Situada assim, em meio a pólos tensionados por contradições acentuadas, a narrativa é povoada ainda por outros pares indiciando desdobramentos da fragmentação que o ponto de vista não quer suavizar: o viver e o lembrar, o passado e o presente, a morte e a vida. No cruzamento dessas linhas, a despeito de algumas atenuantes, delineia-se a experiência  do narrador/autor solitário , condição básica para a criação do romance enquanto modalidade literária como ensina Benjamin [16] . Em meio a tantos conflitos, o homem assombrado pela realidade massacrante já não sabe dar ou receber conselhos, e lhe vai restar a alternativa de projetar na escrita o desejo de totalidade num tempo de desintegração, que é o móvel do percurso do romance segundo a lição de Lukács [17]Assim, o romance se caracteriza por se distanciar radicalmente da tradição oral. Isolado na especificidade de seu lugar,  o romancista vê-se destituído da autoridade garantida por um tipo especial de sabedoria.

Identificado com um projeto politicamente definido, o escritor não dispensa na formulação de sua obra a investigação de elementos sedimentados nas raízes do Brasil. O terreno do passado não é visitado como mero recurso a enfeitar artificialmente a ambivalência do texto, mas projeta-se em sua montagem intervindo na constituição de seu ponto de vista. Assim, ao lirismo dos índios idealizados, Alencar acoplou notas e referencias de pesquisa buscando tornar a sua narrativa crível e atribui ao passado as mais extravagantes aventuras, as mais grandiosas atitudes, impossíveis em todos os tempos. De certa maneira, Alencar, ao lançar mão da intensidade lírica , alia à matéria prosaica de um presente árido a substancia poética de um futuro mais animador.

Historicamente contextualizada , as obras analisadas anunciam que qualquer projeto de futuro tem de considerar o passado. Sem lugar para a nostalgia imobilista, esse passado é fonte de reflexão imprescindível como imagem à ordenação do que virá.  Nesse caso, o papel da memória se fortalece : será ela a via principal para a reconstrução de referencias que podem reinventar a unidade destruída pela cisão. Sua função ao remexer o inventário da tradição, quase arruinada pelo aparato colonial, é, portanto, restituir a esperança de recuperar o corpo da terra mutilado pelos danos da colonização.

Considerando a volta ao passado uma atitude lançada para o amanhã, o romancista evoca os índios, primeiros habitantes do país trazendo para os textos pormenores daqueles como indumentária, estatura, ambiente além do diálogo com o colonizador. Assumida integralmente no imaginário, a evocação permite apenas parcialmente a recuperação do outrora. Em Iracema e O Guarani, a força do presente atravessa a narrativa e, dessa maneira a figura do índio é matizada pela ficção romântica, o caráter do herói é modelado pelos valores do romantismo  e ganha espaço na busca do ideal para o país. Assim, o imaginário dominante à época – nacionalismo fundamentou as manifestações literárias no século XIX. Só desse modo, acreditavam muitos literatos, seria possível ultrapassar o dilema da identidade ligada  a Portugal, constante ameaça as produções locais. Em outras palavras, para afirmar uma identidade , os homens se apropriam de imagens do outrora que, no caso dos romances indianistas, foram as narrativas dos viajantes, missionários e cronistas, ao registrarem as condições primitivas da paisagem , do índio que aqui vivia.Assim, a identidade cultural do país jamais se faria sem o concurso do passado.

Referencia Bibliográfica

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Leite, Moreira, Dante. O caráter nacional da literatura brasileira, História de uma ideologia, São Paulo, Ática, !992.


Notas 

Cléria Botelho da Costa - Professora do Departamento de História/UnB*

[1] Refiro-me a obra – A necessidade da arte, Rio de Janeiro, Zahar, 1973.

[2] O caráter nacional da literatura brasileira. História de uma ideologia, São Paulo, Àtica, 1992.

[4] Guinsburg,Jacó. (Org) O romantismo, São Pauo, Perspectiva, 1978.

[5] Held, Jacqueline. O imaginário no poder, São Paulo, Editorial Summus, 1980.

[6] Glissant, Edouard . Poétique de la relation, Paris, Gallimard, 1981, p. 137.

[7] Anderson, Benedict. Nação e consciência nacional, São Paulo, Àtica, 1989.

[8] MacIver, Society. A texthbook of sociology, Londres, London University Press, 1937, p.238.

[9] J. A. Van Lier. Frontier society. A social analysis of the history of Surinam, Haia, Martinus, Nijhoff, 1971.

[10] Bakhtin, Mikhail. Cultura Popular na Idade Média. São Paulo, 1989.

[11] Proença, Manoel Cavalcanti. José de Alencar na Literatura Brasileira, Rio de Janeiro, civilização Brasileira, 1966, p. 59.

[12] Bachelard, Gaston. A Poética do Espaço, São Paulo, Martins Fontes, 1993.

[13] Costa, Botelho Costa. ( Org) Um passeio com Clio, Brasília, Paralelo 15, 2002.

[14] Cabrera, Olga. ‘ A literatura e a filosofia da contracultura caribenha em Alrjo Carpentier”. Em Cabrera , Olga et alii (Org)  Cenários Caribenhos,  Brasília, Paralelo 15, 2003.

[15] Candido, Antonio. A formação da literatura Brasileira.; momentos decisivos, Belo Horizonte , Itatiaia, 1981.

[16] Benjamin,Walter. Obras Escolhidas,v.1, São Paulo, Brasiliense, 1989.

[17] Lukás, Georg. Teoria do Romance, Lisboa, Presença, s/d.


 

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