Labirinto - Revista Eletrônica do Centro de Estudos do Imaginário

  

Imaginários, Mito, Religião: a manifestação do Sagrado.

 

Arneide Bandeira Cemin(1)


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CONSELHO EDITORIAL
Arneide Cemin
Ednaldo Bezerra Freitas
Valdir Aparecido de Souza

  

O mito é uma narrativa que diz como as coisas aconteceram pela primeira vez no mundo. Para Lévi-Strauss (1989), sempre que o homem pensa, ele produz mito. Essa também é a opinião de Bachelard (1994), para quem a ciência deve ser psicanalisada, desinvestida do pensamento primeiro, pois este é sempre repleto dos mitos do cientista, de sua cultura, de sua época.

O sagrado vem sendo considerado como uma realidade antropológica, na medida em que todas as sociedades parecem ter desenvolvido esse tipo de noção. O que entendemos por antropológico, é o que vislumbramos como tal, a partir daquilo que é definido pelas teorias antropológicas como sendo o “especificamente humano”.

Se entendêssemos o fenômeno humano como natural, do mesmo modo que supostamente houvesse uma predisposição para a vida afetiva, a teríamos também para a experiência religiosa, na medida em que as religiões nos remeteriam para a religação com esse sentimento primordial. Nesta perspectiva, o sagrado seria categoria a priori, porque inata, oriunda do espírito humano.

Contra a tese do inatismo apriorístico de Kant quanto às categorias do entendimento, a Escola Sociológica Francesa, com Durkheim (1989), apresenta a hipótese sociológica. Nessa perspectiva o sentimento do sagrado teria origem na própria vida social. O que o homem religioso adoraria através de sua religião seria a própria sociedade, seus valores, a sua visão de mundo. Assim, teríamos a tendência de remeter para o campo do sagrado, tudo aquilo que consideramos importante para a reprodução social. Desse modo, para Durkheim, o sentimento e as atitudes para com o sagrado não se aplicariam apenas aos objetos religiosos, mas também a qualquer outra esfera da vida social, a exemplo da esfera cívica, familiar, amorosa ou política.

Ao abordar o sagrado do ponto de vista fenomenológico, Rudolf Otto (1985), define-o como sendo o sentimento de “mistério terrível e fascinante”. Não podendo localizar a origem desse sentimento, define-o como a priori, mas, não inato. Distingue três modalidades cognitivas de apreensão do sagrado: os apreciadores (adeptos); os profetas (produtores de religião) e os personificadores, aqueles que chegam a condição de filhos da divindade.

O tremendum é o tremendo, o todo-poderoso, a energia; o misterium é o qualitativamente diferente (vivenciado como o totalmente outro), e o fascinans. A palavra sagrado já seria religiosa porque sugere o inefável e o belo - termos não conceituais - superando as conotações racionais e éticas, apresentando-se como algo objetivo e externo ao eu. Não podendo ser definido nem ensinado; deve ser evocado ou despertado no sentimento e descrito por analogia ou metáfora. As características do sagrado são sintetizadas na palavra numinoso. O objeto para o qual o numinoso se dirige é o mysterium tremendum, a vivência de terror diante do poder do diferente e do fascinante, o sentimento de criatura diante do criador.            

O numinoso (o sagrado), é, antes de tudo, interpretação e avaliação do que existe no domínio exclusivamente religioso. Trata-se de categoria complexa, pois passa por vários domínios, a exemplo da ética e da estética, mas guarda um diferencial irracional porque não acessível à compreensão conceitual, nesse sentido o sagrado é inefável. De acordo com Otto, a religião não se esgota em enunciados racionais ou no ato de evidenciar a relação de seus elementos para decifrá-la.

O elemento vivo em todas as religiões é a idéia de bem absoluto, que é o sagrado e o santo como resultado final da esquematização e da saturação ética de um sentimento original e específico, que Otto chama de numinoso dizendo: falo de uma categoria numinosa como uma categoria especial de interpretação e de avaliação, um estado de alma que se manifesta quando essa categoria é aplicada, isto é, cada vez que um objeto é concebido como numinoso. Não se pode compreender o que é esse estado de alma, a não ser chamando a atenção do ouvinte para a possibilidade desse sentimento, fazendo-o encontrar em sua vida íntima o ponto onde ele surge e se torna consciente.

Para Rudolf Otto (1985), o sagrado é categoria composta de elementos racionais e não racionais, em ambos os casos, é categoria a priori. As idéias racionais não vêm de nenhuma percepção sensível, existem na razão pura, são uma predisposição original do espírito. Os elementos não racionais são algo mais profundo do que a razão pura (são as profundezas da alma). Apóia-se em Kant, para quem todo o nosso conhecimento começa com a experiência, mas não procede apenas dela. No conhecimento empírico ele distingue o conhecimento recebido por meio de nossas impressões e o que nossa faculdade de conhecimento produz, solicitada por impressões sensíveis. O numinoso surge da fonte de conhecimento mais profunda que existe na alma e que aparece graças às experiências sensíveis, que são os objetos excitativos. Para Otto, a prova de que a fonte do numinoso é o conhecimento a priori é que encontramos nele o estado latente, as convicções e os sentimentos que permitem inferências. Estas convicções não são percepções sensíveis, mas interpretações e avaliações estranhas aos dados fornecidos pela percepção.

Os conceitos puros do entendimento e as idéias e avaliações morais e estéticas revelam que existe oculta na alma uma fonte de representações e de sentimentos independentes de toda experiência sensível. No mundo espiritual, o dado primeiro é um espírito pensante. O homem é o pressuposto para compreender a criação e a humanidade em si. O espírito que se desenvolve no mundo supõe o espírito absoluto como fundamento de sua possibilidade (potência e ato). Esta fonte é uma disposição latente do espírito humano. Para atualizar-se precisa de espíritos dispostos a religião, essa disposição se torna impulso e busca. A predisposição que a razão humana carrega em si torna-se impulso interno, sentimento religioso, e através de suas produções o homem toma consciência de si mesmo. A manifestação do sagrado seria a reafirmação de verdades eternas.

Qual seria a diferença entre mito e religião? Do ângulo da criação de realidades ontológicas, não há diferença, visto que o mito e o sentimento do sagrado são fontes de conhecimento capazes de provocar a manifestação do ser. Entretanto a religião é a institucionalização do sentimento de sagrado, o que implica em rotinas e dogmas, comemorados em ritual visando rememorar e fixar o acontecimento mítico primordial.

Para Mircea Eliade (1992), o sagrado e o profano designam duas modalidades de estar no mundo. Ao manifestar-se o sagrado revela as modalidades do ser e da divindade caracterizadas por classes de hierofanias (aparições do sagrado) uraniana (celeste), aquática, vegetal ou antropomórfica. Ao manifestar-se o sagrado historiciza-se, ou seja, expressa-se de acordo com as características sócio-culturais, históricas, da sociedade na qual se manifesta.

Victor Turner (1974), ao propor que a sociedade seja analisada enquanto processo ritual indica que a vida social é feita por processos de homogeneização e diferenciação, dinamizados por passagens de uma situação baixa para outra mais alta. Sendo que a qualidade diferenciadora que permite a passagem diz respeito aos atributos adquiridos em situações liminares, a exemplo dos “ritos de passagem”, pois eles são feitos de experiência iniciática, aprendizagens que levam o neófito ao reconhecimento de dependência em relação à fonte de poder sagrado, dando-lhe a experiência de humildade e de ausência de modelo de diferenciação social, naquele tipo de sentimento de integração com o todo, propiciado pela communitas. Vejamos essas idéias sintetizadas em um quadro:

COMMUNITAS

LIMINARIDADE

ESTRUTURA

Comunhão de indivíduos tornados iguais sob a autoridade dos anciãos rituais.

 

Ritos de passagem

A sociedade como sistema estruturado de acordo com as divisões estabelecidas socialmente.

HOMOGENEIZAÇAO

AQUISIÇÃO DE ATRIBUTOS

DIFERENCIAÇÃO 

O sagrado e o profano designam paisagens mentais sociais e afetivas; imaginários sociais designando duas situações existenciais, duas formas correlacionadas de relacionamento humano. Portanto, não é o caso de buscar o social visando reduzir o religioso as suas dimensões: a compreensão não vem do puro exercício de desqualificação da perspectiva religiosa, ou da defesa da revalorização da religião como projeto global, mas do entendimento quanto a sua forma de “ser no mundo” (Cemin, 2001).

Bibliografia:

BACHELARD, Gaston. A psicanálise do fogo. São Paulo, Martins Fontes, 1994.

DURKHEIM, Emile. As formas elementares de vida religiosa: o sistema totêmico na Austrália. S. Paulo, Paulinas, 1994.

CEMIN, Arneide Bandeira. O poder do Santo Daime: Ordem, Xamanismo e Dádiva.São Paulo, Terceira Margem, 2001.

ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano: a essência das religiões. São Paulo, Martins Fontes, 1992.

LÉVI-STRAUSS, Claude. O pensamento Selvagem.Campinas, SP, Papirus, 1989.

OTTO, Rudolf. São Bernardo do Campo, SP, Imprensa Metodista, 1985.

TURNER, Victor. O processo ritual: estrutura e anti-estrutura. Petrópolis, Vozes, 1974.                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                   

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