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Labirinto - Revista Eletrônica do Centro de Estudos do Imaginário

  

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Arqueologia do Imaginário: A Utopia de um Legado Jesuíta no Paraná Seiscentista
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Sérgio R. Ferreira dos Santos (1) 

 


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CONSELHO EDITORIAL
Arneide Cemin
Ednaldo Bezerra Freitas
Valdir Aparecido de Souza

  

ABSTRACT: This article has the purpose of providing a study focusing the imaginary created by the rural population of the interior of Cruz Machado's city, in the State of Paraná, front to the archaeological vestiges of prehistoric indigenous people. The imaginary servant before the lithic physical manifestations, ceramic and rupestres, this associated to the supposition gold Jesuit buried by the interiors paranaense, demarcated by the same ones on demoniac forms of local protection of the wealth.

RESUMO: Este artigo tem a finalidade de proporcionar um estudo enfocando o imaginário criado pela população rural do interior da cidade de Cruz Machado, no Estado do Paraná, frente aos vestígios arqueológicos de povos indígenas pré-históricos. O imaginário criado perante as manifestações físicas líticas, cerâmicas e rupestres, esta associada ao suposto ouro jesuíta enterrado pelos sertões paranaense, demarcado pelos mesmos sobre formas demoníacas de proteção local das riquezas.   

KEY WORDS: Imaginary, cartography, archaeology, myth. 

PALAVRAS-CHAVE: Imaginário, cartografia, arqueologia, mito.

    “Inseridos na paisagem ou preservados nas coleções, os traços do passado, monumentos ou objetos, são pretexto para um trabalho constante do imaginário. À explicação funcional – casa, túmulo, ferramenta – substitui-se numa interpretação simbólica”  (Alain Schnapp, Arqueologia, 1996).

A concepção de que existem tesouros incalculáveis da Companhia de Jesus escondidos em território brasileiro, tem sido motivo de fascínio e ambição à muitas dezenas de anos por parte da população urbana ou do meio rural brasileiro, e até mesmos para alguns exploradores e caçadores de tesouros europeus e norte americanos. Isto se deve principalmente porque os jesuítas mantinham constantes movimentos de imersões pelos sertões brasileiros que ainda se encontravam inexplorados pelo então “homem civilizado”. Através das sesmarias de terras doadas aos mesmos pelo governo espanhol, começaram então os jesuítas a formar seus impérios de terras, índios e rebanhos de gado, o que lhes fornecia uma prosperidade inaudita com subsídios para a exploração das novas terras em busca de metais e pedras preciosas.

O principal objetivo deste artigo é demonstrar como o imaginário criado pela população da cidade de Cruz Machado no Estado do Paraná, em torno de supostos legados jesuíticos, tem sido a principal causa da destruição do patrimônio arqueológico. Este trabalho tem sua importância frente à influência que o tema exerce sobre grande parte da população não só local, mas também regional ao nível de centro Sul Paranaense e centro Norte Catarinense, além da sua relação com a História da ciência do imaginário. A área em que se insere esta pesquisa, fora escolhida justamente por ser a que apresenta traços evidentes de um imaginário criado por uma população, e que provoca constantes danos ao patrimônio arqueológico Pré-histórico e Histórico local.

Referente ao imaginário citado anteriormente, verifica-se que este, para esta análise, está relacionado a mitos fantásticos e sobrenaturais criados sobre as inúmeras manifestações arqueológicas Pré-históricas e Históricas. Estas manifestações seriam, do ponto de vista dos moradores locais, indicações, sinais locais ou mapas de lugares portadores de grande ocorrência aurífera escondida pelos Padres da Companhia de Jesus entre os anos de 1600 a 1700. Mas o que foi a Companhia de Jesus, e qual a sua influência sobre a população da área em questão, a ponto de inferir sobre a destruição do patrimônio arqueológico frente a um imaginário?

A Companhia de Jesus foi fundada em 1534 por Ignácio de Loyola e ratificada seis anos mais tarde pelo Papa Paulo III (Atlas do Extraordinário, 1996:116-117).  Felipe II, então rei da Espanha, ao considerar que os jesuítas adquiriram rapidamente poder, prestígio político e econômico, restringiu o controle de riquezas na Espanha através de lei promulgada em 1592. Porém, os jesuítas missioneiros espalharam-se pelo mundo todo de forma muito rápida, tendo sua concentração voltada principalmente para o novo mundo, de Norte a Sul.

Em novas terras, fundaram missões e abriram minas de exploração, com a promessa de salvar as almas dos índios, que então pagavam com mão de obra na extração de ouro e prata. Como tal situação chegou ao conhecimento da coroa espanhola, decretou-se que deveria ser pago à coroa o valor de 20 por cento como forma de imposto (conhecido como Quinta Real), sobre os produtos explorados no novo mundo. Porém, os missionários reagiram e burlando a ordem imposta pela coroa, começaram a armazenar prata e ouro em lugares onde pudessem mais tarde recuperá-los, esperando que chegasse ao fim tal ordem. No Paraná os jesuítas chegam por volta de 1610 (Chmyz, 1984: 13), e, com a chegada dois anos mais tarde do Padre Montoya, criam-se as primeiras organizações espanholas compostas por índios menos arredios, o que se denominou de missões.

As missões jesuíticas em um prazo de 14 anos se estenderiam então ao longo dos afluentes do rio Paraná, com a finalidade de formar linhas estratégicas de defesa contra os paulistas. Mesmo assim, o governo espanhol permite aos paulistas que ataquem as missões em terras paranaenses com a finalidade de escravizar os índios civilizados pelos jesuítas. De nada adiantou as tentativas de defesa levantadas pelos padres jesuítas, sendo que esta série de acontecimentos provocou o êxodo de 12.000 índios para o que vem a ser hoje o atual estado do Rio Grande do Sul (Prous, 1992: 547). Em 1767 a coroa espanhola então expulsou, pelo menos oficialmente, a ordem da Companhia de Jesus da América do Sul, mas nem todos aceitaram a esta ordem.

Começara assim um empreendimento ardiloso por parte dos jesuítas em ocultar os tesouros em minas, covas e esconderijos, ou então os jogando em lagos ou rios. Desde então começaram a circular especulações sobre os possíveis esconderijos dos tesouros jesuíticos, tendo partido várias expedições em busca deste legado, mas todas sem nenhum sucesso. Fatos que reforçam ainda mais isto podem ser vistos na literatura de Charroux, (1962:145-146) quando este fala que os jesuítas na América do Sul haviam constituído um povo soberano, com todos os privilégios de uma nação organizada, com um comércio de armas, escolas, e seriam donos de um tesouro incalculável.

Assim, pode-se compreender que para este caso o imaginário elaborado pela população de Cruz Machado, tem suas bases criadas a partir do medo que as pessoas sentem daquilo que não conseguem entender ou explicar, ou seja, dos vestígios arqueológicos, principalmente as gravuras rupestres. Este fato reforça a persistência temporal e espacial deste imaginário, que é a principal fonte de destruição do patrimônio arqueológico e Histórico, na busca do “ouro jesuíta”. A memória coletiva de uma parte muito significante da população de Cruz Machado, ou seja, dos componentes ou grupos sociais urbanos ou rurais, por vezes associados nesta área selecionada, ordenaram em suas mentes diferentes concepções a respeito dos vestígios arqueológicos do local.

As inscrições rupestres ou coloniais do século XVI, cerâmicas e artefatos líticos, passam então a inferir sobre o senso comum um imaginário fantástico sobre lugares com concentrações de ouro, moedas e crucifixos escondidos pelos jesuítas em suas fugas precipitadas dos índios hostis ou dos bandeirantes. Na área, todas as grutas, cavernas e abrigos-sob-rocha, além dos sítios arqueológicos a céu aberto são constantemente escavados ou dinamitados, julgando-se que ali fora onde os jesuítas esconderam seus tesouros (Santos, 2001). Mais ainda, pessoas que habitam a área há muitos anos, ou descendentes dos primeiros moradores da região, isso por volta de 1670, juram ter visto homens vestidos de batina negra, montados em cavalos ou andando a pé empunhando um bastão, carregando sacolas com material que supostamente seriam moedas de ouro.

Na visão dos moradores, estes locais por onde estes homens andaram ou pernoitaram, mais o elemento “homem vestido de batina negra”, são hoje assombrados por aparições fantásticas. Estas aparições variam desde leões matadores de homens e cães, miragens de rochas que crescem ou desaparecem, objetos voadores não identificados (óvnis), luzes noturnas que giram em circulo sobre os pontos supostamente determinados pelos jesuítas onde estaria o ouro, e até fogo fátuo. Chama-se a atenção para o fato de que, mesmo estes lugares estando sendo determinados pela população como lugares demoníacos, a ganância pela riqueza se torna maior que o medo, permitindo sua aproximação e exploração.

Esta questão permite uma reflexão acerca das atuações da população na destruição parcial e, até mesmo muitas das vezes, total do patrimônio arqueológico. Pode-se verificar esta tendência de destruição – pelo menos em época recente isso está bem evidente – através das pesquisas arqueológicas realizadas na região de Cruz Machado, União da Vitória, Palmas e demais localidades circunvizinhas (Santos, 2001).

Estas modificações variam desde buracos com grande profundidade produzidas por cortadeiras e enxadas até blocos basálticos com inscrições rupestres com cerca de um metro de diâmetro quebradas a golpes de marreta ou dinamitados. Até mesmo alinhamentos megalíticos, ou séries de pedras de formas e alturas variáveis plantadas verticalmente no solo (menires), são amarradas a correntes e destruídas pela força de tratores de arado que as deslocam de seus lugares originais.

Na área rural da cidade de Cruz Machado, verifica-se a existência de grandes atrocidades a sítios arqueológicos, como no caso do sítio “Pedra Fincada” pesquisada pela equipe de Arqueologia do Médio Iguaçu (Langer & Santos, 2001). Neste sítio, grandes blocos de basalto foram totalmente reduzidos a fragmentos pela ação de marretas manipuladas por presbíteros da localidade, ou deslocados de seu contexto arqueológico original. Estes presbíteros, ordenavam aos moradores próximos que se trancassem dentro de suas propriedades, acendessem velas e orassem para os seus santos, a fim de espantar o mal que estava sendo exorcizado, onde neste ínterim desencadeavam uma busca frenética ao ouro imaginário.  

Analisando o modo como diferentes conjuntos de pessoas passaram a criar um imaginário sobre ouro e jesuítas em relação a sítios arqueológicos e em função de suas atuações em diferentes níveis de participação na destruição do patrimônio arqueológico, constata-se que:

  • É inexistente uma conscientização sobre a destruição do patrimônio arqueológico na área;

  • Não existem fontes escritas ou relatos orais sobre a existência de qualquer pessoa que ficasse repentinamente rica por ter encontrado ouro nestes sítios arqueológicos, e nem mesmo em outros locais por intermédio de ouro jesuíta;

  • A religião e a crença no bem e no mal (um maniqueísmo bem evidente), por parte da população, presente nos pregadores católicos da região, se confunde e se metamorfoseia no imaginário local.

Um aprofundamento acerca destas constatações permite a verificação de uma grande representação social de religiosidade nestes “lugares mitológicos” criados pela coletividade. Concebe-se assim a existência de determinadas práticas intelectuais inseridas na mentalidade da população com uma finalidade pressuposta: enriquecer as custas de um suposto ouro jesuíta. 

Nas relações entre os agentes criadores e os agentes elaboradores do imaginário, e aqueles que são coadjuvantes neste processo, ou seja, as diferentes classes econômicas de moradores rurais, pode-se questionar como estas pessoas participam do processo de criação destes imaginários. Participam baseadas em suas religiões, medos do desconhecido e ganância (interesses econômicos), elaborando uma série de fatores quanto a diferentes mitos por sobre um mesmo objeto, considerando-se as relações temporais e espaciais constantes na produção do imaginário local. 

Mediante uma reflexão acerca desta problemática pode-se questionar os seguintes pontos:

  • Até que ponto a criação deste imaginário interfere no cotidiano ou modo de vida da população rural da área abrangida pela pesquisa. 

  • Houve interferências quanto ao aproveitamento destas áreas “assombradas” na questão “espaço físico aproveitável”, tal como no aproveitamento da área para plantações, construções de residências, etc.

  • Até que ponto a preservação destes lugares – estes lugares servem de subsídio para a imaginação da população local – servem para reforçar o imaginário coletivo dominante desta população na criação de mitos.

Ao ponderar-se estas questões em termos de imaginário, tem-se como resultado a dissimulação do papel que as pessoas ocupam (os grupos sociais e os agentes externos de cunho religioso ) na transformação da mentalidade acerca do espaço físico. Da mesma forma que espaço e tempo se encontram ligados no que chamamos de continuum, espaço e poder se encontram imbricados na área.Langer descreve este processo ao analisar que em quase todo o Brasil, o imaginário criado sobre cidades fantásticas ou eldorados perdidos surgiu de imagens baseadas em mitos indígenas, mitologias européias anteriores a era pré-cristã ou ainda através de obras religiosas literárias que circulam em uma sociedade.

 “Percebemos com isso a enorme influência e autonomia da forma literária numa sociedade, aproximando duas situações distintas – a crise de valores da sociedade moderna e o modelo de antigas sociedades modernas” (1996: 80).

Isto permite uma reflexão acerca de que, para uma população formada na sua grande maioria de imigrantes europeus, tais como alemães, italianos, poloneses e ucranianos, e levando-se em conta que estes são muito ligados a religião, aventa-se a hipótese de que estes tenham herdado uma mentalidade induzida, através da palavra de padres católicos, e ou seguidores de certos conceitos da própria Companhia de Jesus. O que se pode verificar nas prospecções arqueológicas é que, até os dias atuais os padres das paróquias locais fomentam na mentalidade da população a presença dos jesuítas na região. Estes estiveram escondendo fortunas em lugares que eram marcados com algum sinal incomum, como uma pedra fincada, ao qual chamam de “marco”, ou pedras riscadas assinalando mapas da região. O mito por sua vez é levado oralmente ao meio rural e repassado para o restante da população que não participa de encontros religiosos, ocasionando-se assim um efeito bola de neve. Também não se pode deixar de questionar sobre como a religião passa de pai para filho, sendo que a fé por sua vez se torna simples e muito prática, onde estas pessoas não especulavam sobre o significado da doutrina religiosa, apenas a aceitavam sem discutir.

Desta forma, considerando a importância que a religião representa para estas sociedades, tem-se em Martelli uma compreensão de que a religião é como um ponto de identidade e afirmação para as populações, em qualquer âmbito:

“Antes de tudo, a religião passa a ser reconhecida como um fator relevante da mutação social que esta rapidamente mudando o rosto do mundo contemporâneo”. (1995. 97).

Isto pode ter um ponto de apoio na grande diversidade de histórias criadas a respeito dos sítios arqueológicos estarem associados a ouro, mas não se pode deixar de salientar aqui que todas estas histórias sempre estão vinculadas a padres, curandeiros e benzedeiros da localidade, em suma, a religião. Na linguagem local da população rural de Cruz Machado, curandeiros e benzedeiros são pessoas idosas, de uma religiosidade extrema, que vivem isoladas no mato, longe de qualquer contato da industrialização moderna, rezando pelas almas dos pecadores e preparando medicamentos com ervas naturais para doentes de diferentes enfermidades.

Ainda com referência ao imaginário, tem-se em Langer que isto tem sua origem sobre os sítios arqueológicos com os religiosos da época do período colonial: 

“E é evidente que durante a época de grande interesse pela arqueologia, os religiosos também manifestassem projeções baseadas neste referencial. Pois o familiar será, sempre, o ponto de partida para a representação do desconhecido”. (1997:103).

Dentro dessa relação, para parte dos componentes desta sociedade, tem-se que estes reflexos estão construídos sobre um objetivo de camuflar as contradições existentes.Isto faz com que a forma do discurso elaborado neste contexto imaginário se traduza naquilo que, de certo modo, os grupos sociais, gostariam que ocorressem nos lugares fantásticos, e com isso suas mentalidades somente reforçam tais contradições.

Salvador (1969: 197), ao verificar uma cédula de testamento de Martin Rodrigues Tenório, atesta que este ao morrer deixara aos padres da Companhia de Jesus uma quantia de dois mil réis. Fica claro neste testamento que, para uma mente ardilosa, nada impediria aos padres da Companhia de Jesus que “arrematassem” uma parte deste dinheiro para si, escondendo-o em lugares afastados de aglomerados humanos para que, em momento propício, usufruíssem deste bem.

Outras pesquisas efetuadas pela equipe de arqueólogos da Universidade Federal do Paraná resultaram no encontro de restos parciais de um caminho indígena denominado pelos índios de Peabiru, e pelos jesuítas de Caminho de São Tomé, e que também exerce influência nos moradores da região.

Também não se pode deixar de salientar que estes padres estavam sempre em constante migração pelo interior e em contato com os indígenas, o que pode ter suas raízes imaginárias neste processo.

Analisa-se assim a postura das classes populares em relação à construção de imagens fantásticas referentes aos jesuítas e ouro, baseado nas representações simbólicas ou atributos visíveis nos sítios arqueológicos, e a mudança da mentalidade de diferentes pessoas que se inserem no meio geográfico, bem como a sua persistência temporal.

As representações acima citadas são os artefatos líticos, urnas funerárias, alinhamentos megalíticos, menires, arte rupestre ou inscrições deixadas pelo homem em blocos de rocha, grutas, abrigos. Deve-se trabalhar juntamente com a história oral elaborada e propagada pelas populações rurais, para verificar a influência dos mecanismos ideológicos, pois a idéia que se tem é a de uma fortuna que acarretara na rápida mudança de nível econômico. Segundo Baczko o imaginário refere-se a aspectos da vida social, onde as particularidades se manifestam em todos os seus agentes, representando a si mesmo, fornecendo respostas aos problemas cotidianos e regularizando a vida coletiva, ou seja, denotando uma identidade. (1984: 309).

A persistência da influência deste imaginário deve-se a um meio de difusão do mesmo pela população da cidade de Cruz Machado, onde a criação deste mesmo sobre ouro jesuíta, escondido em locais místicos e assombrados, no caso, os sítios arqueológicos, provoca a destruição frente à desenfreada e constante procura pelo ouro. Se esta influência do imaginário provoca um simbolismo que reúne aspectos históricos e sociais na sociedade, modelando o comportamento individual e coletivo, tem-se que estas estão baseadas no que se compreende como experiências e aspirações.

Ainda sobre a concepção de imaginário pode-se verificar em Gilbert Durand que o imaginário aproxima-se do sentido das ações humanas, quer elas sejam individuais ou coletivas, pois o imaginário tem seus alicerces sobre um objeto variável que agencia as imagens simbólicas e a capacidade de criar circunstancias históricas que envolvem o ser humano. (Durand: 1997)

Porém é em Castoriadis que se torna evidente a relação entre imaginário e simbolismo, quando reflete sobre o fato de que o imaginário utiliza o simbólico para existir (função de representação de algo vago e secreto), e ainda evoca imagens frente a representações e relações de objetos não reais. (1982: 154). Comportamentos e sistemas de valores das classes e até mesmo narrativas de acontecimentos, são influenciados diretamente por uma difusão de diferentes imaginários. Isto garante o que chamamos de dominação simbólica, pois o imaginário criado sobre um legado jesuítico de ouro e prata está vinculado a sistemas que perduram no tempo e no espaço, que são os mitos(2) e as utopias.

Ansart descreve que toda a sociedade cria um conjunto coordenado de representações, um imaginário através do qual designa um grupo com identidades e papéis, onde se almeja alcançar um objetivo para sanar as necessidades coletivas, o que fixa simbolicamente normas e valores(3). Já para Pantaglean (1990), a história do imaginário é uma sucessora natural da história da mentalidade:

“o domínio do Imaginário é constituído pelo conjunto das representações que exorbitam do limite colocado pelas constatações da experiência e pelos encadeamentos dedutivos que estas autorizam (...) o limite entre o real e o imaginário revela-se variável, enquanto o território atravessado por esse limite permanece, ao contrario, sempre por toda parte idêntico, já que nada mais é senão o campo inteiro da experiência humana do mais coletivamente social ao mais intimamente pessoal”.

Buscar no imaginário destas populações que residem no meio rural, alguma forma de resistência que esta no sentido da “crença” no fantástico, implica que o comportamento está de certo modo, fora dos limites de dominação imposta por grupos restritos que exercem o controle espacial da área investigada. Este controle a que nos referimos, surge da imposição religiosa das igrejas locais e dos seus mais fiéis seguidores. Em Barbier (1994: 17) verifica-se que é a partir de uma fase de aliciamento das idéias que o imaginário torna-se real, enquadrando-se perfeitamente a mentalidade da população em questão, que não parece aceitar outra forma de visão por sobre o imaginário: “o imaginário torna-se o único real, e a imaginação, o caminho da realização. Para que o real exista, é preciso fazer um desvio pelo imaginário”.

Então, é a partir destas idéias, que o imaginário criado sobre tesouros na cidade de Cruz Machado está amparado na valorização dos sonhos, existindo uma ruptura entre o real existente, e o imaginário reinante nas coletividades. Com Baczko (1984) tem-se que todo um conjunto social, de certa forma, acaba seguindo as representações e símbolos ora criados, onde o imaginário vincula-se então a uma lógica de controle social, pois, a relação que se estabelece em um imaginário é entre os homens e as imagens produzidas por estes homens:

“... uma coletividade designa sua autoridade: elabora uma certa representação de si; estabelece a distribuição de papéis e das posições sociais; exprime e impõe crenças comuns; constrói uma espécie de código de “bom comportamento”, designamente através da instalação de modelos formadores tais como o do “chefe”, o “bom súdito”, o “guerreiro corajoso”, etc”.

Desse modo, verifica-se uma compreensão de que, os seres humanos são seres essencialmente simbólicos, como demonstra Cassirer (1977: 51), e com base na argumentação que se construiu, entende-se que as formas visíveis nos sítios arqueológicos são também desta maneira consideradas. Estas idéias não estão longe de comparar-se as de Mircea Eliade, que investiga a criação do mito ainda presente na construção de um imaginário em uma sociedade, onde ela irá fornecer elementos que incitam o comportamento humano:

 “A nossa investigação irá incidir, em primeiro lugar, sobre as sociedades em que o mito esta, ou estava, até a pouco tempo "vivo", no sentido de que ele fornece modelos para o comportamento humano, por isso mesmo, confere significado e valor a existência”. Mas é com Langer que se tem uma contribuição decisiva quando se trata deste tema, pois em seus trabalhos, este autor preocupou-se com o imaginário criado sobre os mitos arqueológicos brasileiros, criados pelo imaginário na valorização de uma identidade nacional/ cultural.

Entende-se que o nosso trabalho está associado concomitantemente à criação de imaginários que determinam interesses sobre uma ideologia, como forma de orientar o desconhecido: 

“Percebemos com isso que os valores, o discurso narrativo, as representações e as imagens vinculadas ao imaginário podem constituir verdades nem sempre fundamentadas no real físico e histórico, servindo como legitimadoras de determinados interesses ideológicos”. (1998: 177).

Muitos são os objetos que estão ligados a superstição dos moradores da região a que se dedica este trabalho, tais como ferraduras de sete furos pregadas nas molduras de portas e janelas das casas, cruzes de imbuia implantadas no suposto local da aparição demoníaca e inexplicável, alguns rituais de benzimentos e orações efetuadas antes de se visitar estes locais, etc. Chega-se assim a uma conclusão de que os sítios arqueológicos da região do Médio Rio Iguaçu, principalmente na cidade de Cruz Machado, não estão associados a atos conscientes de vandalismo. Estão sim, associados à existência de uma mentalidade ainda em formação por parte da população rural, acerca de ouro jesuíta, e que o mesmo ocorre em diferentes partes do Brasil. Esta a cada dia se fortalece pela falta de um desconhecimento da Pré-história local e pela ação das igrejas, inspira atos de degradação aos sítios arqueológicos, sem estes sejam reconhecidos como tal.

Para estes a Pré-História está longe de ser conhecida, pois os atributos religiosos, principalmente os jesuíticos exercem presença muito mais forte no cotidiano deste lugar, como nos exemplos citados ao longo deste artigo.

É conveniente lembrar, que a produção científica acerca da preservação destes locais arqueológicos está em construção, assim como em quase todo território brasileiro.Salvo exceções de alguns moradores rurais, em cujas propriedades estão localizados em sítios arqueológicos, os mesmos não permitem a entrada de pessoas estranhas, nem tampouco a destruição. Alunos universitários e professores instruídos sobre Arqueologia, Geografia, História e preservação patrimonial local, também começam a participar dos debates acerca da preservação arqueológica local e regional.

Em relação ao imaginário, concordamos com Cemin (2001),  pois “é sobre os limites e os transbordamentos de sentido que o imaginário investe e multiplica as suas astúcias”.

Longe de propor uma resposta definitiva para o que é o imaginário, ou  quais elementos podem e devem ser utilizados para compreendê-lo, deve-se propor tantas metodologias quanto diversas forem as perspectivas teóricas acerca da problemática na qual se insere.

Os motivos da arte rupestre do Médio Iguaçu são assemelhados por moradores das áreas rurais a objetos de superstição, tais como círculos e cruzes, que estes comparam a objetos utilizados em rituais de magia ou objetos ligados aos jesuítas. 

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VOVELLE, Michel. Ideologias e Mentalidades. São Paulo, Brasiliense, 1985.

Notas


(1) Mestrando em Geografia pela UFSC. Professor do Pós-Graduação em História e Geografia da FAFI de União da Vitória - PR. Coordenador do Projeto Arqueológico Médio Iguaçu. Bolsista da CAPES. E-mail para contato: arqueosantos@bol.com.br


(2)Valores são a qualidade da preferência atribuída a um objeto, em virtude de uma relação entre meios e fins, na ação social. Conf. FIRTH, Raymond. Elementos de organização social. Rio de Janeiro. Zahar, 1974. P. 59- 60.


(3) Os mitos são relatos e narrativas de acontecimentos primordiais, em sua maioria relacionados a realidades que só existem graças à intervenção de elementos imaginários, constituindo assim o paradigma e o modelo de todas as realizações humanas significativas. Conf. ELIADE, Mircea. Mito e Realidade (trad.) São Paulo: Perspectiva, 1972. P. 11- 12.



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