Revista Eletrônica do Centro de Estudos do Imaginário - Página Inicial
  
Universidade Federal de Rondônia
Revista Eletrônica do
Centro de Estudos do Imaginário

Labirinto - Revista Eletrônica do Centro de Estudos do Imaginário

  

____________________________________________________

Imaginário, Símbolos e Representações Militares na Fronteira Amazônica
____________________________________________________

Valdir Aparecido de Souza * 


Artigos

Resenhas

Biblioteca

Entrevistas

Primeiras Notas






CONSELHO EDITORIAL
Arneide Cemin
Ednaldo Bezerra Freitas
Valdir Aparecido de Souza

  


Este artigo tem por objetivo enfocar as práticas cotidianas da população que aqui denominaremos de urbana na região dos Vales do Madeira-Guaporé, ou Rondônia antiga - de economia extrativista da borracha e produtos da floresta - erigida em torno do eixo da ferrovia EFMM em contraposição à Rondônia moderna, situada no eixo da BR-364 principalmente a partir de 1960 - exclusivamente agrícola. Para isso, proponho aquilo que a partir de agora denomino de uma Antropologia do Cotidiano junto dessas populações. A partir da leitura minuciosa do Jornal Alto Madeira desde 1917 e da observação dos vestígios tanto na linguagem, no vestuário, nas relações sociais, na arquitetura, e na cultura em geral, pude constatar a influência das instituições militares sobre a sociedade aqui denominada Rondônia Antiga. Estas leituras foram direcionadas para a presença do Exército na região desde o período da abertura das linhas telegráficas em 1912 até a Nova República em 1985. Principalmente visíveis a partir dos "vestígios" e resquícios de suas marcas na cultura local.

A partir da temática desenvolvida em minha Dissertação intitulada (Des) Ordem na Fronteira: Ocupação Militar e Conflitos Socias na bacia do Madeira-Guaporé(30/40) senti a necessidade de pesquisar as representações culturais e simbólicas ligadas à presença militar na região. Os militares visivelmente imprimiram seus moldes organizacionais à sociedade local, principalmente em sua cultura. Dos campos mais profundos como a religião, aos mais sutis do cotidiano do lar, da rua, do lazer, enfim de inúmeros espaços marcados pelo simbolismo militar. Até dez anos atrás era comum presenciar crianças em idade pré-escolar de colégios particulares desfilando em parada militar sob o sol equatorial à pino. Bem como alunos dos colégios estaduais cantando o Hino Nacional e o Hino de Rondônia antes do início das aulas. 

Para tal empreitada me utilizo do diálogo que estabeleço com alguns autores de forma diversa. Tomo de empréstimo o conceito de conversão semiótica de Paes Loureiro in Elementos de Estética (2002). Segundo o autor a função prática travada no fazer-se cotidiano dos povos da floresta, acaba se transfigurando em função estética, engendrando uma visão de mundo peculiar a sua prática. No seu caso ele analisa as representações do caboclo amazônico tendo por substrato a sua relação pragmática com a natureza. Semelhante ao que compreendemos por performático da ação e prescritivo do discurso sobre a ação, formadores de um todo compreensível. Essa relação dinâmica propicia a transferência da lógica da sobrevivência e da busca de sentido, que se converte para o lendário como sua representação. Digo de empréstimo, mas é um pouco além disso, pois ao fazer esta operação proponho um redimensionamento do conceito de conversão semiótica aplicado por Paes Loureiro para as representações oníricas. O mesmo sendo ampliado para as manifestações lógicas e racionais destas populações influenciadas pela prática dos militares em várias instâncias cotidianas. Do cuidado com o corpo, à higiene pessoal, à educação física e cívica, a saúde animal, as formas de comércio, enfim uma gama de campos aparentemente desconexos, mas que se olharmos cuidadosamente nos fornecem "evidências" palpáveis da prática e do discurso militar sobre a cultura local. Utilizo o conceito de conversão semiótica, pois o simbolo apesar de transcender o aparente, manifesta-se pelas formas estéticas adquiridas, cristalizadas em alguns momentos e dinâmicas em outros, daí o conceito de conversão ou até mesmo reatualização semiótica permitem uma coerência na investigação ao interpretarmos as várias manifestações rituais e principalmente estéticas que remetem ao imaginário de caserna.

Segundo Geertz (1989) não há determinantes e contradição entre as práticas e as representações em uma cultura:  "De qualquer forma o conceito de cultura ao qual me atenho não possui referente múltiplos nem qualquer ambigüidade fora do comum, segundo me parece: ele denota um padrão de significados transmitido historicamente, incorporado em símbolos, um sistema de concepções herdadas expressas em formas simbólicas por meio das quais os homens comunicam, perpetuam e desenvolvem seu conhecimento e suas atividades em relação à vida".

No nosso caso as imagens populares sobre a presença dos militares na região, se confundem com a própria vida. Desde os hábitos mais sutis do cotidiano manifestados no campo linguístico, a exemplo do casal que denomina a compra mensal de estivas pelo termo de “rancho” ao uniforme escolar nomeado de “farda”, quer seja em escolas particulares ou públicas. Ainda manifestações arquitetônicas como o formato do rancho militar e a pintura verde-oliva em prédios públicos como escolas, secretarias, órgãos de estado, até igrejas em estilo de capelinha militar e árvores e postes pintados de branco à meia altura. A construção de PIaygrounds domésticos e privados pintados com as cores verde-oliva, amarelo-ouro e azul-anil, com predominância das cores da República. Também não quero dizer que sejam as expressões máximas da cultura de Rondônia Antiga, estas se encontram misturadas em feixes, nem sempre explícitos é óbvio, à vários outros estilos e manifestações. Como se fossem "camadas"' superpostas, ora predominando uns elementos, ora outros, como qualquer grupo que reconheça o dinamismo das práticas e representações e não cultue o idealismo da pureza cultural.

Também não buscamos ultrapassar aquilo que Geertz denomina de "primário", ou seja, uma interpretação confirmadora. Este artigo tem por objetivo chamar a atenção para este objeto que apresentamos, com claros limites para avançar no sentido de encontrar "problemas suficientemente obscuros" que repensem o conceptual da antropologia do início do século XX.  

Nas esferas mais profundas do sagrado as formas e manifestações, bem como a ritualística são bastante reveladoras. Um exemplo bem patente se encontra no culto ao Santo Daime pelos membros do CECLU (Centro Eclético das Correntes da Luz Universal), neste a bandeira nacional fica no altar evocando valores cívico/racionalizantes, mesclada às representações  de valores morais. Ainda neste ritual, o culto é encerrado pelo celebrante/comandante com a ordem: Podem sair de forma! Bem como a agenda de trabalhos rituais é organizada pela escala de serviço. Em entrevista relatada à Cemin (1998) "sempre mencionam a presença do exército em suas vidas: - Primeiro o cabra vai pro exército, lá ele aprende a ser homem. Depois ele pode vir tomar Daime!"  Numa tradução simples e pouco sofisticada, o sujeito é comparado à natureza (cabra) e só pode se tomar civilizado e superar o estado bruto, por meio do aprendizado da estrutura hierárquica e autoritária das instituições militares. Ao invés de organização - disciplina, no lugar de direitos - deveres, ao contrário da livre manifestação da opinião - ordem. Valores que imprimiram uma visão de mundo, pois foram os mesmos que contribuiram para a formação da cultura local.

Ainda nas religiões formalmente conceituadas por ayahuasqueiras, a indumentária usada é padronizada: calça, camisa, paletó e sapatos brancos é denominada entre os fiéis de  farda de gala, usada em cultos festivos. Em algumas dessas seitas o ritual de passagem para se tomar membro-conselheiro recebe o nome de fardamento.  Sendo que as mulheres não podem fazer parte do comando geral, porém tem um espaço reservado que é controlado pela "comandante" das mesmas, como uma espécie de batalhão feminino. O principio ativo da droga o cipó (mariri) quando surte o efeito de alteração da consciência desejado é chamado de forma venerada de “marechal” ou “general”. E os fiéis tratam-se entre si de "soldados da floresta ou da rainha", alguns inclusive são "ex-soldados da borracha". Já na seita ayahuasqueira União do Vegetal (UDV) a farda é camisa verde escura e calça branca. Ou seja, reforça os aspectos que Paes Loureiro denomina de conversão semiótica, quando a prática social imprime uma representação de mundo singular àquela experiência, mas que se manifesta no campo estético. Note-se que a ideologia e representação militar fez parte e ainda está latente no imaginário local. A busca de um sentido - dado o desenraizamento desses migrantes, que na maioria das vezes foram arrancados à força, seja de suas regiões de origem, seja de estruturas sociais diversas - pode ser a chave para o entendimento dessa identificação com o ideário militar, porém transmutado em reatualizadas formas e representações.

Nesse contexto, o imaginário das práticas culturais populares, se apresenta por meio de imagens que se materializaram a partir da ação efetiva dos militares na região. Estas são perceptíveis nas relações políticas, sociais, nos movimentos culturais e no simbolismo. Segundo Geertz (1989): "... o ethos de um povo ... De um lado, objetivam preferências morais e estéticas ... de outro ... [estes são vistos] como provas experimentais da sua verdade."  A valorização dos militares é o reflexo do deslocamento do imaginário, pois eles "corporificam" o Estado, a Ordem e o Progresso. Para a população regional eram estes, "heróis" que materializavam o papel do Estado provedor - por meio da abertura de estradas, colônias agrícolas, aeroportos, erradicação de endemias, novos hábitos de higiene e escolarização, essa influências  no plano racional e macro-social. Mas também ordenavam o "caos" de uma região considerada "bruta" e produziam para estas populações "desterritorializadas" um sentido em sua vida cotidiana. No imaginário popular o herói civilizador foi o militar e não as ordens religiosas como defendem alguns historiadores. 

Tomando essas pistas não somente como instâncias autônomas, mas reflexos de uma experiência mais profunda quanto à marca dos militares na região e tentando como sugere Miceli fugir de uma abordagem fenomenológica, porém com o cuidado de buscar a gênese das práticas sem resvalar num determinismo reducionista. “De outro tende-se a considerar a cultura e os sistemas simbólicos em geral como um instrumento de poder.”[1]  Neste ponto discordamos das abordagens que atribuem ao imaginário o status de super-estruturas cristalizadas e estáticas das relações sociais e econômicas, pois é fundamental perceber que o imaginário é parte instituinte e instituida dessa mesma. É importante frisar que as representações são referências carregadas de significados profundos que denotam a constituição de determinada sociedade. Na nossa compreensão, tanto a cultura num plano mais abrangente, bem como o símbolo num campo mais específico são realidades de estruturas estruturadas a partir das relações sociais, mas que por sua vez são dialeticamente estruturas estruturantes que fornecem sentido às realidades objetivas, em síntese não haveria determinações e sim faces de um mesmo todo.

A abordagem que se tem a respeito do símbolo seria analogamente a mesma para as estruturas simbólicas- o mundo é objetivo e real, existe - mas só pode ser apreendido a partir dos símbolos segundo Freud e Jung.[2] Da mesma forma as classes sociais, sua posição dentro da sociedade capitalista são objetivas e reais porém são apreendidas por práticas simbólicas e não estritamente sociais e econômicas. O mundo exterior ao existir para o sujeito sofre uma transformação, o símbolo é o abstrato como legitimidade do concreto na relação entre os homens. É no contato com o exterior que se constitui a figuração simbólica da realidade: a realidade não tem essência em si e sim contradição pura, historicamente constituída pelo homem. O sapiens é um animal symbolicum.

Como o papel dos militares na região é basicamente notado através de imagens e metáforas que lembram heróis mitológicos - não é raro encontrar fotos de soldados posando junto à jacarés, sucuris e onças, penso que uma análise mais detida dessas metáforas traria maior compreensão da cultura local. A exemplo de culturas que tiveram suas origens míticas, o estado de Rondônia possui três heróis militares centrais. O Mal. Rondon, foi o “herói desbravador” ligou a região, através do telégrafo, à Capital Federal e aos centros de poder do país. O Cel. Aluízio Ferreira, o “herói nacionalizador”, além de ser considerado o responsável pela retomada da região do poder estrangeiro, foi um dos principais atores na criação do território federal, tornando-se seu primeiro governador. O Cel. Jorge Teixeira, o “herói federalizador”, último no panteão militar, foi o que deu impulso ao território, modernizando-o e transformando-o na nova unidade federativa, sendo seu primeiro governador “biônico”.

Tomando como premissa “que o sujeito é quem estabelece a relação entre o objeto e o referente. Uma cultura exprimir-se-á, portanto, através de símbolos. Logo, o investigador poderá chegar a maior compreensão da cultura, estudando os sistemas simbólicos”.[3] Neste sentido apesar de não se ater diretamente aos símbolos, toma-se como caminho necessário manter um diálogo com a abordagem de Bourdieu, a qual se aprofunda nas práticas sociais das redes simbólicas. Uma vez que o autor diz que “a cultura só existe objetivamente sob a forma de símbolos, de significantes e significados”.[4] Nesta mesma obra, Miceli tenta identificar as relações de sentido, na qual se descortinam os interesses de dominação e as práticas simbólicas que perpetuam o modelo dominante.

O que procuramos aqui a exemplo dos diversos autores é a interdependência entre cultura e ordem social. Já que o vivido é incapturável, só podemos apreendê-lo através dos sistemas simbólicos que transfiguram o sentido das estruturas, estes são por excelência um meio de acesso ao sentido. Para Bourdieu o símbolo é a resultante das condições sociais, porém não podemos isentar e deixar passar desapercebido, em sua fala, um certo determinismo das infra-estruturas sobre as superestruturas. O debate sobre as práticas simbólicas ainda é bastante tendencioso, como o é o próprio conceito de ideologia, que tem avançado muito após a crise dos paradigmas cientificistas. Apesar de Bourdieu estar mais próximo, segundo Miceli, da “metáfora espacial” que orientou o pensamento francês e europeu neste século, indiretamente ele avança e aponta questões chaves para a compreensão das sociedades. São coerentes as afirmações de Bourdieu, se pensarmos que é o sujeito que confere sentido simbólico ao seu real provisório, não há padrões culturais, e sim sociedades historicamente diferentes -remetendo à Sahlins - que vão ordenar sua lógica cultural própria.

Bordieu ao dizer que o “discurso enquanto opus operatum encobre por meio de suas significações reificadas o momento constitutivo da prática”, explicita a gênese do processo de significação cultural. Esta percepção vem conferir a devida historicidade à cultura, pois é o homem quem elabora as estruturas das história e não o contrário. O autor oferece uma abordagem que não perde no horizonte a dinâmica das relações humanas, a cultura é estrutura estruturada/estruturante pelo e para o homem que a redefine no contínuo, nas disputas pelo monopólio da busca do sentido, como afirma Miceli.


CONSIDERAÇÕES

Não tenho respostas conclusivas para o problema ora criado, mas seguramente a leitura de Bourdieu e Geertz apesar de seus limites apontam saídas que auxiliam a contornar velhos "ranços” reducionistas que tratam as práticas culturais como aparelhos de estado ou dualismos que impedem a apreensão das práticas culturais como representações dinâmicas que conferem sentido ao mundo.

Nesta linha de raciocínio surgem varias questões: o que levaria as classes populares a imitar os comportamentos do grupo militar, incorporando desde termos até sua simbologia? Seria como sugere Bourdieu "em sociedades em que há um precário desenvolvimento da economia... é o sistema das relações entre a pequena burguesia que fornece os quadros administrativos do Estado, e a imensa massa de subproletários, que determina e domina toda a estrutura da sociedade"? Por não haver tradição burguesa, pela maioria de migrantes, essa sociedade imitaria os padrões da pequena burguesia militar cosmopolita? Por ser uma região sem códigos definidos, sem tradição religiosa, o modelo autoritário emprestou o seu sentido de civilização à sociedade que se constituía? Estas são algumas questões colocadas sob o ponto de vista de Bourdieu, se fossemos elencar um diálogo aprofundado de fato com outros autores, com certeza as questões se multiplicariam em escala geométrica. Não existem respostas acabadas, mas sim questões que se abrem indefinidamente.

BIBLIOGRAFIA

AUGGRAS, M. A dimensão simbólica. Petrópolis, Vozes, 1980.

BOURDIEU, P. A Economia das trocas simbólicas. S. Paulo, Perspectiva, 1976.

CASSIRER,E. Antropologia filosófica. S. Paulo, Mestre Jou, 1977.

CASTORIADIS,C. A Instituição imaginária da sociedade. R. Janeiro, Paz e Terra, 1983.

_____. As encruzilhadas do labirinto. R. Janeiro, Paz e Terra, 1987, vol. I   

CEMIN, Arneide B. Ordem, Xamanismo e Dádiva. Tese de Doutoramento, FFLCH/USP, 1998.

GEERTZ, Clifford.  A Interpretação das Culturas. R. Janeiro, LTC, 1989.

MICELI, S. A Força do Sentido in Bourdieu, P. A Economia das trocas simbólicas. S. Paulo, Perspectiva, 1976.

PAES LOUREIRO, João de J. Elementos de Estética. Belém, E. Universitária UFPA, 2002

SAHLINS, M. Ilhas de História. S. Paulo, Brasiliense, 1987.

SILVEIRA,N. Jung, vida e obra. R. Janeiro, Paz e Terra, 1982.

__________________________________________________________________________________

Notas

[1] MICELI, S. A Força do Sentido in Bourdieu,P. A Economia das trocas simbólicas. S. Paulo, Perspectiva, 1976.

[2] AUGGRAS, M. A dimensão simbólica. Petrópolis, Vozes, 1980.

[3] AUGGRAS, M. op. cit. p. 34

[4] MICELI, S. op. cit. p. xiii

*Valdir Aparecido de Souza é Mestre em História e Sociedade pela UNESP/Assis, Membro Pesquisador do Centro de Estudos do Imaginário Social/UNIR e Professor de História da Universidade Federal de Rondônia.Volta



Copyright© 2000
CEI - UNIR
Todos os Direitos Reservados.
    

Página Principal   |   Artigos