Labirinto - Revista Eletrônica do Centro de Estudos do Imaginário

  
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“Ouçamos com atenção os deles e delas...”

ou, a Música e o Popular, para pensar Imaginários da Nação Brasileira.

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Edinaldo Bezerra de Freitas*[1]


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CONSELHO EDITORIAL
Arneide Cemin
Ednaldo Bezerra Freitas
Valdir Aparecido de Souza

  


No princípio era o om... Não ousarei aqui me remeter ao sublime enlevo da música como linguagem dos deuses. Humilde e humano, apenas tenho ouvido atento e sem “dó” de “mim”, compreendo a diferença da docilidade sacra do barroco Vivaldi e a dramaticidade romântica de um Beethoven... E tenho aprendido a interrogar ao silêncio, sobre o valor do som, e observa o dito das palavras nas canções...

Não quero aqui também lembrar da qualidade e da importância da chamada “Musica Popular Brasileira”, fenômeno, aliás, que em momento algum pode ser de fato identificado como de apelo e mesmo de consumo popular. Nesse caso, trata-se de uma produção musical que sem sombras de dúvidas capitaneia uma excelente qualidade de expressão artística, mas com limites de acesso  por apenas certa camada de classe média, e por gente mais letrada, chegada aos “arroubos” artísticos mais refinados e às letras de conotação mais eruditas e críticas. Como nas composições de um Chico Buarque de Holanda, um tão festejado Tom Jobim, um Milton Nascimento e outros. Vale notar que são esses os nomes presentes em uma relação bibliografia sobre a música no Brasil, onde livros e capítulos os apresentam e decantam em torno de movimentos musicais, cite-se, Bossa Nova, Tropicália, ou simplesmente MPB. Nas discografias e nas coleções de gravações lançadas,  são esses os nomes recorrentes, podendo-se apontar para as citações sobre eles, até bastante comuns em livros didáticos, que os pontuam como lições de arte e poesia, e por uma  contribuição com à crítica política e a crítica de costumes.

A minha interrogação: Mas, o que de fato, em décadas passadas e na presente, mais se ouve, se canta, se dança nesse país? Qual a energia musical que move a maior parte da população, especialmente aquela composta das classes de trabalhadores, dos semi-empregados e excluídos, a gente analfabeta ou semiletrada que certamente representa a maior parcela da população de brasileiros? Que ritmo, que poemas, que instrumentos, que coreografias mobilizam, constituem ação, impõem gostos, forjam consumo, editam modas, organizam movimentos, cristalizam imaginários?

Como de se esperar, com este tema, encontro-me em uma encruzilhada de percursos, cheia de possibilidades e limites.  Do universo teórico otimista de um Valter Benjamim, quando cria perspectiva de análise sobre “a obra de arte moderna na era de sua reprodutividade técnica” (BENJAMIN 1993), ao quadro pessimista e amargo de Theodor Adorno em seus artigos sobre o “fetichismo” da música e a “regressão da audição” (ADORNO,1996). Passando ainda pela leitura histórica de um Robert Darnton que, ao analisar o papel mobilizador e formador de opinião de uma certa “boemia literária” do Século XVIII na França, lhes imputam papel importante na própria configuração revolucionária do momento (DARNTON,1987), ou mesmo propor uma certa dosagem de apelo dialético, vendo esse campo, como um dos espaços privilegiados de realizar “a invenção do cotidiano”, no endereço e no olhar generoso e democrático de Michel de Certeau (CERTEAU, 1994) . Quando se não, apenas constatar as potencialidades do “poder simbólico” (BORDIEU, 1994), ou de “discursos com dispositivos reguladores” (FOUCAULT, 1996). 

Neste campo, onde as distinções entre o popular e a erudição se entrevêem, se entrecruzam , certamente que terei que enfrentar os preconceitos. Falar do chamado “brega”, do já denominado “cafona”. E mesmo que de imediato tenhamos de apontar para características da repetição, da falta de criatividade e de refinamento, consumismo, cultura de massas. Proponho o questionamento, não terá esse universo musical tantas e quantas lições a oferecer?

“Eu não sou cachorro não” é título de canção e título de uma tese e livro recentemente editado, de autoria de PAULO CESAR DE ARAÚJO, no qual me espelho para levantar algumas das proposições aqui defendidas (ARAUJO, 2002). A tese pode ser assim resumida. Quantas lições de ideologia, de valores morais, comportamentos, apelos, sejam de transformação e de continuidade de costumes estão aí postos. Como diria a filósofa Marilena Chauí, tratando do universo conhecido como “cultura popular”, onde se plasmam os aspectos contraditórios de “conformismo e resistência” (CHAUI, 1985). Basta lembrar que também esses produtores de música e canções foram perseguidos pelo governo da ditadura militar , muitos deles acusados de agitadores, subversivos, depravados, imorais. Sem esquecer que também daí saíram canções que polemizaram, desde a reforma agrária e preconceito racial até o uso da pílula anticoncepcional, a exploração da prostituição, as contraditórias e convenientes paixões pela empregadas domésticas... Afinal, diz outra canção, “os brutos também amam”.

Advogo a idéia que esse conjunto de manifestações musicais é excelente lugar para conhecer e apreender sobre representações simbólicas, valores, identidades que dão uma forma mais próxima à multiplicidade formadora do Brasil. De um possível “imaginário nacional”. E aqui se incluem, como já adido, desde os aspectos negativos do consumo tão simplesmente, mas também a crítica social, as relações de gênero, o debate sobre questões raciais, e sobre conflitos e correlações étnicas, onde os aspectos sócio-culturais reportam inclusões e exclusões, os preconceitos, projetos de mundo. Desde o apelo à cidadania, até as prementes necessidades dos corpos, a conquista do carinho, do afeto, da sexualidade.

No Brasil, o exemplo da complexa  relação entre a população e seus “ídolos” da canção, têm se manifestado digno de estudos de psicologia social. Da eleição de “graus de monarquia” , reis e rainhas da canção, do rádio, do baião, do “iê iê iê”... : Roberto Carlos, Luis Gonzaga, Emilinha e Marlene, até a mobilização de passeatas do “vem, vamos embora...” do Vandré , até o simples dado comercial de venda de produtos ligados a esses nomes,  revistas de “fofoca”, programas de televisão...   

Um balaio onde tudo se encontra, uma “geléia geral”. Do “liberar total”  do “desbunde”, ao questionamento político do “só quero entender”, do cotidiano “farofa-fá”, até a problematização do caráter corrupto dos poderosos, afinal “se gritar pega ladrão...”. E do como sobreviver às mazelas da nação. Do temor de ser “traído covardemente”, à constatação que “é o amor que meche com minha cabeça”. Do estar “rindo à toa”, da decantada e perseguida felicidade, até o aviso prévio de um apaixonado traído, para o garçom no bar, de que em caso de um “coma alcoólico”, que “me deixe no chão”. Muito humor e muitas lágrimas. Como se tivéssemos em mãos um mapa dos “baratos” e das quão “baratas” e “tantas emoções”, dos sobreviventes da fome, do desemprego, das carências. E tudo isso tão apropriado para compor em um conjunto mais amplo, uma boa definição de Brasil.

E um Brasil cheio de ambigüidades. De primeiras , segundas e outras  intenções. Da hoje já tão antiga ingenuidade do “procurando tu” (certamente uma demanda existencialista), ou da simples constatação de se estar apenas “de olho na butique dela” (tudo indica em um valor de  legítimo interesse mercantil); até o atual, irreverente e explicito apelo de conotações aos amplexos sexuais, o “to dentro”, “to fora”, e de enquadramentos e eleições de retalhos dos corpos, em requebrados, em “bundas” e  “boquinhas”. E ainda de uma nação cheia de tipos e de situações. De  nordestinos que querem “morangos”, de migrantes e de imigrantes, de índias dos “cabelos no ombro caindo”, de negrões sempre prontos pra “ te catar”. E “negas malucas”, e “novas loiras”, e tantos territórios e ritmos, cantos de bois no Maranhão e no Amazonas, axé afro-baiano,  de ser “mineirinho” ou ser “caipira” da tão urbana Goiânia em Goiás, ou em São Paulo, Paraná...

Entre complexidades e simplicidades. “Dores” e “delicias”, entre “tapas e beijos”, temos nesse entremeio um mundo a ser considerado. Qual o sentido do romantismo tão presente nesses cancioneiros? Repetições e inovações, dos caipiras aos sertanejos, dos sambistas aos pagodeiros, do frevo para o axé, do forró “pé de serra” ao “forró universitário”. Do “Boi bumba” cheio de “carrapichos” de Parintins, do neo-vanerão gaúcho ao “caliente” brega do Pará. Um sem número de representações, de ricos sinais de nossas contradições. Afinal em sua maioria, trata-se de textos  onde  os homens declaram em canções o estar apaixonados, e quase sempre traídos por mulheres pelas quais juram profundo amor. Isso, em uma sociedade toda eivada de machismos e sabidas tradições culturais, onde prevalece a idéia de que são justamente as mulheres e não os homens, que cultivam tradições de afetividades e de sentimentos românticos, e onde se apontam como tão normais por um lado, à traição masculina, e por outro, ao descarno, dos “cornos” e dos “chifres” masculinos. No que podemos aventar estarmos diante de um apelo de consumo altamente interessante, para pensar traços de um imaginário que lança mão de acintes de mensagem truncada. Ou se não, poderíamos tratar de uma inversão de papeis de gênero, em uma cultura onde aos homens estariam sendo preestabelecidos os novos condutos do valor  romântico? 

Penso que no mínimo, estou apontando para espaços onde se podem realizar catarses, ou terapias do construir/desconstruir , ou apenas da descontração. Do cantar puramente por cantar, do necessário “non sense”, e do “palavrão”, das obscenidades, numa sociedade recém saída de uma ditadura onde, a tentativa de controle político e moral da população somente lhe davam ocasião de gritar “no escurinho do cinema”, ou pichar as paredes dos sanitários públicos. Do tão repreensivo e seco recurso à censura, que se expressou tão claramente no aviso oficial:  “Brasil : ame-o ou deixe-o”.

E sem deixar de por em relevo às novas definições de manifestações sexualidades, de moralidades, e de crítica de costumes... Nesta época, quando se convive com as indefectíveis loirinhas, ou certamente nem tão loirinhas assim, do padrão de consumo de mulher e de um novo homem objeto, indo-se bem além do “papai-mamãe”, temos o sucesso da canção advinda de um antigo baião de teor machista, onde se declara o orgulho de ser “homem com H”, em novo formato, tratando de leitura assumidamente homossexual. E o aviso : “o sapatão está na moda”. E em entreatos de “bestialidades” ou “zoofilia”, aparecem até o desejo por uma pequena “égua” de codinome “Pocotó”, ou de “cachorras” e “vacas” que “aonde vai, o boi vai atrás” e de outras faunas similar. E  como em um apelo sado-masoquista, ainda se grita feliz que “um tapinha não dói”.

Não é sem razão que o chamado movimento musical tropicalista, uma das mais interessantes e amplas manifestações do grande caldeirão de gostos e ritmos que formam a música e a poesia no Brasil, fez questão de aproximar os universos do popular e do erudito, do externo com o interior, do bom gosto, ao duvidoso, lembrando-nos em forma de cancioneiro que pode ser possível misturar “chiclete com banana”, Jobim vizinho a Vicente Celestino, The Beatles com samba de roda da Bahia, Reggae com Luís Gonzaga, Capiba com Melodia. Um apontar para tudo, por que em todo lugar a música diz do seu canto, de seu ritmo, de seu movimento, de sua religião, e em cada música há uma historia pra contar.

Para ir chegando ao fim, uma outra indagação. Afinal para que serve a música? Em que instâncias do cotidiano ela se apresenta? Em que recanto do comportamento ela se aloja? Em que forma de alimento vem ela se transformar? E a quantas questões possíveis, se agregam o indagar de um titânico grupo de pop rock: “você tem fome de que?”

Tento responder, sem as pretensões e a ousadia de querer esgotar esse qual “tambor de todos os ritmos”, com algumas hipóteses possíveis. Em uma primeira, a música como distração. O cantar no banheiro, o tão simples acompanhar-se da canção. Certamente do lazer, do passar o tempo, mesmo que seja para se aturar ao próprio ato fatigante do labor. E todos sabem a importância das canções que embalam os camponeses na lavoura, as lavadeiras...Sem esquecer um  componente tão “raiz” como o canto de ninar as criancinhas.

Mas a música também serve para formar grupos, organizar sociedades, nacionalidades e Estados (citando a importância oficial dos hinos cívicos), e portanto com endereço ideológico tão básico para instituir identidades, redefinir padrões culturais e étnicos.

E mais, a música serve para aproximar pessoas, corpos, nas festas, na dança, na sensualidade, na sedução. E tem importante papel no  desvelo religioso, do mundo das sacralidades, nas igrejas e nas procissões. E como se diz em um adágio é vista como forma de dupla oração.

E tem muito mais, o estímulo ao exercício físico, na caminhada, no ritmo da academia de musculação, nos exercícios marciais , e nas passeatas de protesto, com canções e com as palavras de ordem em ritmo mobilizador.

É ainda a música peça fundamental do comércio, da propaganda, bastando remeter para os sucessos dos gingos. E da divulgação das trilhas sonoras das novelas e filmes. Sem esquecer os sucessos do rádio, a venda dos discos, os direitos autorais... Até a dimensão capitalista das  multimilionárias e multinacionais redes de indústria da música.

E, sobretudo, a música que nos leva para os recantos mais profundos da experiência humana enquanto arte, representação das qualidades do sentimento, se traduzindo em metáforas do existir...

Para fazer esse balanço, a constatação de quantas e tão necessárias pesquisas, para qualificar e para quantificar, problematizar, reconhecer, colher desse sem fim de fios e redes, do eleger representações suficientes para as múltiplas interpretações de alegorias, de simbologias... 

Para pensar o Brasil da unidade e de suas diferentes regionalidades, uma  música enciclopédia, uma “metamorfose ambulante”, de todos os carnavais. Do Brasil com S ou com Z, do “samba do crioulo doido”, dos movimentos e momentos políticos, literaturas, poesias,  historia, cultura, identidades, sociedade, subjetividades... A onipresença da música parece querer dizer que devemos atentar para os ritmos que queremos seguir, da  lentidão de certas estruturas impostas, que teimam em se eternizar, até das correrias e das urgências de transformações, das mudanças, das permanências. 

Da paz da música suave até a violência do punk rock , da brisa do campo ao ruído da poluição sonora das metrópoles. No entremeio, resta-nos escolher a música que nos faz bem viver. Para ir “caminhando e cantando”, mesmo que seja  “sem lenço”, seja qual o “documento”. Do operário morto na construção, do sem terra, do sem bandeira, do sem sentido. Para tornar possível, como em certo hinário o “raiar da liberdade”, ou até “ouvir um brado retumbante”. Para nos constituir pessoas, agentes de uma melodia, do mel, do fel, e do “melô” de cada dia, procurando o melhor do dia. O Bom dia!

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BIBLIOGRAFIA 

ADORNO, Theodor. “O fetichismo da música e a regressão da audição”. In: Os Pensadores. São Paulo, Abril Cultural, 1996.

ARAUJO,  Paulo César de. Eu não sou cachorro, não. Música popular cafona e ditadura militar. Rio de Janeiro, Record, 2002.

BENJAMIN, Walter. “A obra de arte na era  sua reprodutividade técnica”. In: Obras Escolhidas. Magia e Técnica, Arte e Política. São Paulo, Brasiliense, 1993.

BORDEAU, Pierre. O Poder Simbólico. Rio de Janeiro, Difel, 1994.

CALDAS, Waldemir.Uma Utopia do Gosto. São  Paulo, Brasiliense, 1988

CERTEAU, Michel de. A Invenção do Cotidiano. Petrópolis, Vozes, 1994.

CHAUI, Marilena. Conformismo e Resistência. Aspectos da Cultura 

 Popular no Brasil. São Paulo, Brasiliense, 1985.

DARNTON, Robert. Boemia Literária e revolução. São Paulo, Companhia das Letras, 1996.

FOUCAULT, Michel. A Ordem do Discurso. São Paulo, Loyola, 1996.

MORAES, J. Jota de. O Que é Música. São Paulo,  Brasiliense, 1983.

NAPOLITANO, Marcos. “Seguindo a Canção”. Engajamento político e Industria Cultural na MPB. São Paulo, Annablume, 2001.

_______________________ História & Música. Belo Horizonte, Autêntica, 2002.

RODRIGUES, Nelson Antônio Dutra. Os estilos literários e Letras de Música Popular Brasileira. São Paulo, Arte & Ciência, 2003.  

SODRE, Muniz. Teoria da literatura de Massa. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1978.

(1) Professor do Departamento de História da UNIR. Doutor em História Social pela USP, pesquisador do Centro de Estudos do Imaginário Social, CEI/UNIR.



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