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“Ouçamos com atenção os deles e delas...” ou, a Música e o Popular, para pensar Imaginários da Nação Brasileira. __________________________________________________________________________
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Resenhas Biblioteca Entrevistas Primeiras Notas CONSELHO EDITORIAL Arneide Cemin Ednaldo Bezerra Freitas Valdir Aparecido de Souza |
Não quero aqui também lembrar da qualidade e
da importância da chamada “Musica Popular Brasileira”, fenômeno, aliás,
que em momento algum pode ser de fato identificado como de apelo e mesmo
de consumo popular. Nesse caso, trata-se de uma produção musical que sem
sombras de dúvidas capitaneia uma excelente qualidade de expressão artística,
mas com limites de acesso por
apenas certa camada de classe média, e por gente mais letrada, chegada
aos “arroubos” artísticos mais refinados e às letras de conotação
mais eruditas e críticas. Como nas composições de um Chico Buarque de
Holanda, um tão festejado Tom Jobim, um Milton Nascimento e outros. Vale
notar que são esses os nomes presentes em uma relação bibliografia
sobre a música no Brasil, onde livros e capítulos os apresentam e
decantam em torno de movimentos musicais, cite-se, Bossa Nova, Tropicália,
ou simplesmente MPB. Nas discografias e nas coleções de gravações lançadas,
são esses os nomes recorrentes, podendo-se apontar para as citações
sobre eles, até bastante comuns em livros didáticos, que os pontuam como
lições de arte e poesia, e por uma contribuição
com à crítica política e a crítica de costumes. A
minha interrogação: Mas, o que de fato, em décadas passadas e na
presente, mais se ouve, se canta, se dança nesse país? Qual a energia
musical que move a maior parte da população, especialmente aquela
composta das classes de trabalhadores, dos semi-empregados e excluídos, a
gente analfabeta ou semiletrada que certamente representa a maior parcela
da população de brasileiros? Que ritmo, que poemas, que instrumentos,
que coreografias mobilizam, constituem ação, impõem gostos, forjam
consumo, editam modas, organizam movimentos, cristalizam imaginários?
Como de se esperar, com este tema, encontro-me
em uma encruzilhada de percursos, cheia de possibilidades e limites.
Do universo teórico otimista de um Valter Benjamim, quando cria
perspectiva de análise sobre “a obra de arte moderna na era de sua
reprodutividade técnica” (BENJAMIN 1993), ao quadro pessimista e amargo
de Theodor Adorno em seus artigos sobre o “fetichismo” da música e a
“regressão da audição” (ADORNO,1996). Passando ainda pela leitura
histórica de um Robert Darnton que, ao analisar o papel mobilizador e
formador de opinião de uma certa “boemia literária” do Século XVIII
na França, lhes imputam papel importante na própria configuração
revolucionária do momento (DARNTON,1987), ou mesmo propor uma certa
dosagem de apelo dialético, vendo esse campo, como um dos espaços
privilegiados de realizar “a invenção do cotidiano”, no endereço e
no olhar generoso e democrático de Michel de Certeau (CERTEAU, 1994) .
Quando se não, apenas constatar as potencialidades do “poder simbólico”
(BORDIEU, 1994), ou de “discursos com dispositivos reguladores”
(FOUCAULT, 1996). Neste
campo, onde as distinções entre o popular e a erudição se entrevêem,
se entrecruzam , certamente que terei que enfrentar os preconceitos. Falar
do chamado “brega”, do já denominado “cafona”. E mesmo que de
imediato tenhamos de apontar para características da repetição, da
falta de criatividade e de refinamento, consumismo, cultura de massas.
Proponho o questionamento, não terá esse universo musical tantas e
quantas lições a oferecer?
“Eu não sou cachorro não” é título de
canção e título de uma tese e livro recentemente editado, de autoria de
PAULO CESAR DE ARAÚJO, no qual me espelho para levantar algumas das
proposições aqui defendidas (ARAUJO, 2002). A tese pode ser assim
resumida. Quantas lições de ideologia, de valores morais,
comportamentos, apelos, sejam de transformação e de continuidade de
costumes estão aí postos. Como diria a filósofa Marilena Chauí,
tratando do universo conhecido como “cultura popular”, onde se plasmam
os aspectos contraditórios de “conformismo e resistência” (CHAUI,
1985). Basta lembrar que também esses produtores de música e canções
foram perseguidos pelo governo da ditadura militar , muitos deles acusados
de agitadores, subversivos, depravados, imorais. Sem esquecer que também
daí saíram canções que polemizaram, desde a reforma agrária e
preconceito racial até o uso da pílula anticoncepcional, a exploração
da prostituição, as contraditórias e convenientes paixões pela
empregadas domésticas... Afinal, diz outra canção, “os brutos também
amam”. Advogo
a idéia que esse conjunto de manifestações musicais é excelente lugar
para conhecer e apreender sobre representações simbólicas, valores,
identidades que dão uma forma mais próxima à multiplicidade formadora
do Brasil. De um possível “imaginário nacional”. E aqui se incluem,
como já adido, desde os aspectos negativos do consumo tão simplesmente,
mas também a crítica social, as relações de gênero, o debate sobre
questões raciais, e sobre conflitos e correlações étnicas, onde os
aspectos sócio-culturais reportam inclusões e exclusões, os
preconceitos, projetos de mundo. Desde o apelo à cidadania, até as
prementes necessidades dos corpos, a conquista do carinho, do afeto, da
sexualidade.
No Brasil, o exemplo da complexa
relação entre a população e seus “ídolos” da canção, têm
se manifestado digno de estudos de psicologia social. Da eleição de
“graus de monarquia” , reis e rainhas da canção, do rádio, do baião,
do “iê iê iê”... : Roberto Carlos, Luis Gonzaga, Emilinha e
Marlene, até a mobilização de passeatas do “vem, vamos embora...”
do Vandré , até o simples dado comercial de venda de produtos ligados a
esses nomes, revistas de
“fofoca”, programas de televisão... Um
balaio onde tudo se encontra, uma “geléia geral”. Do “liberar
total” do “desbunde”, ao
questionamento político do “só quero entender”, do cotidiano
“farofa-fá”, até a problematização do caráter corrupto dos
poderosos, afinal “se gritar pega ladrão...”. E do como sobreviver às
mazelas da nação. Do temor de ser “traído covardemente”, à
constatação que “é o amor que meche com minha cabeça”. Do estar
“rindo à toa”, da decantada e perseguida felicidade, até o aviso prévio
de um apaixonado traído, para o garçom no bar, de que em caso de um
“coma alcoólico”, que “me deixe no chão”. Muito humor e muitas lágrimas.
Como se tivéssemos em mãos um mapa dos “baratos” e das quão
“baratas” e “tantas emoções”, dos sobreviventes da fome, do
desemprego, das carências. E tudo isso tão apropriado para compor em um
conjunto mais amplo, uma boa definição de Brasil.
E um Brasil cheio de ambigüidades. De primeiras
, segundas e outras intenções.
Da hoje já tão antiga ingenuidade do “procurando tu” (certamente uma
demanda existencialista), ou da simples constatação de se estar apenas
“de olho na butique dela” (tudo indica em um valor de
legítimo interesse mercantil); até o atual, irreverente e
explicito apelo de conotações aos amplexos sexuais, o “to dentro”,
“to fora”, e de enquadramentos e eleições de retalhos dos corpos, em
requebrados, em “bundas” e “boquinhas”.
E ainda de uma nação cheia de tipos e de situações. De
nordestinos que querem “morangos”, de migrantes e de
imigrantes, de índias dos “cabelos no ombro caindo”, de negrões
sempre prontos pra “ te catar”. E “negas malucas”, e “novas
loiras”, e tantos territórios e ritmos, cantos de bois no Maranhão e
no Amazonas, axé afro-baiano, de
ser “mineirinho” ou ser “caipira” da tão urbana Goiânia em Goiás,
ou em São Paulo, Paraná... Entre
complexidades e simplicidades. “Dores” e “delicias”, entre
“tapas e beijos”, temos nesse entremeio um mundo a ser considerado.
Qual o sentido do romantismo tão presente nesses cancioneiros? Repetições
e inovações, dos caipiras aos sertanejos, dos sambistas aos pagodeiros,
do frevo para o axé, do forró “pé de serra” ao “forró universitário”.
Do “Boi bumba” cheio de “carrapichos” de Parintins, do neo-vanerão
gaúcho ao “caliente” brega do Pará. Um sem número de representações,
de ricos sinais de nossas contradições. Afinal em sua maioria, trata-se
de textos onde
os homens declaram em canções o estar apaixonados, e quase sempre
traídos por mulheres pelas quais juram profundo amor. Isso, em uma
sociedade toda eivada de machismos e sabidas tradições culturais, onde
prevalece a idéia de que são justamente as mulheres e não os homens,
que cultivam tradições de afetividades e de sentimentos românticos, e
onde se apontam como tão normais por um lado, à traição masculina, e
por outro, ao descarno, dos “cornos” e dos “chifres” masculinos.
No que podemos aventar estarmos diante de um apelo de consumo altamente
interessante, para pensar traços de um imaginário que lança mão de
acintes de mensagem truncada. Ou se não, poderíamos tratar de uma inversão
de papeis de gênero, em uma cultura onde aos homens estariam sendo
preestabelecidos os novos condutos do valor
romântico?
Penso que no mínimo, estou apontando para espaços
onde se podem realizar catarses, ou terapias do construir/desconstruir ,
ou apenas da descontração. Do cantar puramente por cantar, do necessário
“non sense”, e do “palavrão”, das obscenidades, numa sociedade
recém saída de uma ditadura onde, a tentativa de controle político e
moral da população somente lhe davam ocasião de gritar “no escurinho
do cinema”, ou pichar as paredes dos sanitários públicos. Do tão
repreensivo e seco recurso à censura, que se expressou tão claramente no
aviso oficial: “Brasil :
ame-o ou deixe-o”. E
sem deixar de por em relevo às novas definições de manifestações
sexualidades, de moralidades, e de crítica de costumes... Nesta época,
quando se convive com as indefectíveis loirinhas, ou certamente nem tão
loirinhas assim, do padrão de consumo de mulher e de um novo homem
objeto, indo-se bem além do “papai-mamãe”, temos o sucesso da canção
advinda de um antigo baião de teor machista, onde se declara o orgulho de
ser “homem com H”, em novo formato, tratando de leitura assumidamente
homossexual. E o aviso : “o sapatão está na moda”. E em entreatos de
“bestialidades” ou “zoofilia”, aparecem até o desejo por uma
pequena “égua” de codinome “Pocotó”, ou de “cachorras” e
“vacas” que “aonde vai, o boi vai atrás” e de outras faunas
similar. E como em um apelo
sado-masoquista, ainda se grita feliz que “um tapinha não dói”.
Não é sem razão que o chamado movimento
musical tropicalista, uma das mais interessantes e amplas manifestações
do grande caldeirão de gostos e ritmos que formam a música e a poesia no
Brasil, fez questão de aproximar os universos do popular e do erudito, do
externo com o interior, do bom gosto, ao duvidoso, lembrando-nos em forma
de cancioneiro que pode ser possível misturar “chiclete com banana”,
Jobim vizinho a Vicente Celestino, The Beatles com samba de roda da Bahia,
Reggae com Luís Gonzaga, Capiba com Melodia. Um apontar para tudo, por
que em todo lugar a música diz do seu canto, de seu ritmo, de seu
movimento, de sua religião, e em cada música há uma historia pra
contar. Para
ir chegando ao fim, uma outra indagação. Afinal para que serve a música?
Em que instâncias do cotidiano ela se apresenta? Em que recanto do
comportamento ela se aloja? Em que forma de alimento vem ela se
transformar? E a quantas questões possíveis, se agregam o indagar de um
titânico grupo de pop rock: “você tem fome de que?”
Tento responder, sem as pretensões e a ousadia
de querer esgotar esse qual “tambor de todos os ritmos”, com algumas
hipóteses possíveis. Em uma primeira, a música como distração. O
cantar no banheiro, o tão simples acompanhar-se da canção. Certamente
do lazer, do passar o tempo, mesmo que seja para se aturar ao próprio ato
fatigante do labor. E todos sabem a importância das canções que embalam
os camponeses na lavoura, as lavadeiras...Sem esquecer um
componente tão “raiz” como o canto de ninar as criancinhas. Mas
a música também serve para formar grupos, organizar sociedades,
nacionalidades e Estados (citando a importância oficial dos hinos cívicos),
e portanto com endereço ideológico tão básico para instituir
identidades, redefinir padrões culturais e étnicos.
E mais, a música serve para aproximar pessoas,
corpos, nas festas, na dança, na sensualidade, na sedução. E tem
importante papel no desvelo
religioso, do mundo das sacralidades, nas igrejas e nas procissões. E
como se diz em um adágio é vista como forma de dupla oração. E
tem muito mais, o estímulo ao exercício físico, na caminhada, no ritmo
da academia de musculação, nos exercícios marciais , e nas passeatas de
protesto, com canções e com as palavras de ordem em ritmo mobilizador.
É ainda a música peça fundamental do comércio,
da propaganda, bastando remeter para os sucessos dos gingos. E da divulgação
das trilhas sonoras das novelas e filmes. Sem esquecer os sucessos do rádio,
a venda dos discos, os direitos autorais... Até a dimensão capitalista
das multimilionárias e
multinacionais redes de indústria da música. E,
sobretudo, a música que nos leva para os recantos mais profundos da
experiência humana enquanto arte, representação das qualidades do
sentimento, se traduzindo em metáforas do existir...
Para fazer esse balanço, a constatação de
quantas e tão necessárias pesquisas, para qualificar e para quantificar,
problematizar, reconhecer, colher desse sem fim de fios e redes, do eleger
representações suficientes para as múltiplas interpretações de
alegorias, de simbologias... Para
pensar o Brasil da unidade e de suas diferentes regionalidades, uma
música enciclopédia, uma “metamorfose ambulante”, de todos os
carnavais. Do Brasil com S ou com Z, do “samba do crioulo doido”, dos
movimentos e momentos políticos, literaturas, poesias,
historia, cultura, identidades, sociedade, subjetividades... A
onipresença da música parece querer dizer que devemos atentar para os
ritmos que queremos seguir, da lentidão
de certas estruturas impostas, que teimam em se eternizar, até das
correrias e das urgências de transformações, das mudanças, das permanências.
Da paz da música suave até a violência do
punk rock , da brisa do campo ao ruído da poluição sonora das metrópoles.
No entremeio, resta-nos escolher a música que nos faz bem viver. Para ir
“caminhando e cantando”, mesmo que seja
“sem lenço”, seja qual o “documento”. Do operário morto
na construção, do sem terra, do sem bandeira, do sem sentido. Para
tornar possível, como em certo hinário o “raiar da liberdade”, ou até
“ouvir um brado retumbante”. Para nos constituir pessoas, agentes de
uma melodia, do mel, do fel, e do “melô” de cada dia, procurando o
melhor do dia. O Bom dia! _______________________________________________________________ BIBLIOGRAFIA
ADORNO, Theodor. “O fetichismo da música e a
regressão da audição”. In: Os Pensadores. São Paulo, Abril Cultural,
1996. ARAUJO,
Paulo César de. Eu não sou cachorro, não. Música popular cafona
e ditadura militar. Rio de Janeiro, Record, 2002.
BENJAMIN, Walter. “A obra de arte na era
sua reprodutividade técnica”. In: Obras Escolhidas. Magia e Técnica,
Arte e Política. São Paulo, Brasiliense, 1993. BORDEAU,
Pierre. O Poder Simbólico. Rio de Janeiro, Difel, 1994.
CALDAS, Waldemir.Uma Utopia do Gosto. São
Paulo, Brasiliense, 1988 CERTEAU,
Michel de. A Invenção do Cotidiano. Petrópolis, Vozes, 1994.
CHAUI, Marilena. Conformismo e Resistência.
Aspectos da Cultura Popular
no Brasil. São Paulo, Brasiliense, 1985.
DARNTON, Robert. Boemia Literária e revolução.
São Paulo, Companhia das Letras, 1996. FOUCAULT,
Michel. A Ordem do Discurso. São Paulo, Loyola, 1996.
MORAES, J. Jota de. O Que é Música. São
Paulo, Brasiliense, 1983. NAPOLITANO,
Marcos. “Seguindo a Canção”. Engajamento político e Industria
Cultural na MPB. São Paulo, Annablume, 2001.
_______________________ História & Música.
Belo Horizonte, Autêntica, 2002. RODRIGUES,
Nelson Antônio Dutra. Os estilos literários e Letras de Música Popular
Brasileira. São Paulo, Arte & Ciência, 2003.
SODRE, Muniz. Teoria da literatura de Massa. Rio
de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1978. |
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