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Universidade Federal de Rondônia
Revista Eletrônica do
Centro de Estudos do Imaginário

Labirinto - Revista Eletrônica do Centro de Estudos do Imaginário

  
O imaginário social e território no distrito de José Gonçalves - Bahia  

Givaldo Vieira de Sousa - Wagnervalter Dutra Júnior(1)


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CONSELHO EDITORIAL
Arneide Cemin
Ednaldo Bezerra Freitas
Valdir Aparecido de Souza

  

RESUMO

 O objetivo deste trabalho foi explicitar a relação entre o Imaginário social e a concepção do território no distrito de José Gonçalves, bem como entender os conflitos, tensões e as forças que governaram o processo de organização espacial no município de Vitória da Conquista e suas relações com os seus distritos, em especial José Gonçalves. Ficou estabelecida a contradição entre os habitantes do distrito e o poder político instituído da época; a qual girou em torno do plebiscito, realizado para decidir pela sua emancipação. A via de demonstração foi o “dizer”, expresso pelas aspirações do imaginário da sociedade local, o que configurou o eixo central do presente trabalho, ou seja, a relação de proximidade e cumplicidade entre o imaginário e o território. A grande questão foi desmistificar essa operação do poder com todo esse aparato simbólico, para usufruir uma situação social, historicamente construída, daí a importância do que as pessoas que constroem o cotidiano do distrito tinham a nos dizer. Contrariando o discurso oficial, José Gonçalves possuía uma infraestrutura urbana satisfatória (colégio, igrejas, praças, ruas pavimentadas etc.), bem como uma localização privilegiada próxima a BR-116, o que lhe conferia uma posição de destaque, reunindo assim todas as condições técnicas para que um distrito pudesse se tornar uma cidade. As conclusões alcançadas foram de que o imaginário dos habitantes do distrito estudado foi capaz de nos fornecer a dimensão contraditória do processo emancipatório (consulta plebiscitária), fazendo-se perceber o apego do habitante pelo lugar, o jogo de interesses por parte das autoridades políticas da época, a manipulação por parte do poder instituído. 

 

1. Introdução

A idéia de se estudar o Imaginário Social e território a partir do distrito de José Gonçalves partiu da necessidade de se conhecer melhor os distritos de Vitória da Conquista. E começar por este distrito, foi pelo fato dele ter sido pouco estudado, e também por ser um estudo inédito tanto na sua abordagem metodológica quanto em sua temática. 

Este trabalho tem por objetivo estabelecer uma relação entre o Imaginário Social e a concepção do território no distrito de José Gonçalves, buscando revelar as ações concretas dos atores sociais, tanto no tempo como no espaço. Para isto se fez necessário recorrer basicamente às instâncias formadoras do Imaginário, a memória coletiva e sua relação com o território. 

O distrito em questão, bem como toda a região Sudoeste da Bahia, foi colonizada pelos movimentos de entradas e bandeiras, ocorridos no século XVIII, região conhecida na época, como Sertão da Ressaca e que posteriormente foram ganhando outros nomes. José Gonçalves(2), distrito de Vitória da Conquista – Bahia, está localizado no Planalto dos Geraizinhos, entre o quadrante 40°40’00” - 40°46’02”W e 14°40’41” - 14°46’14”S. Distante aproximadamente 25 km da área urbana de Vitória da Conquista, estando a cinco quilômetros da BR-116 (no sentido Vitória da Conquista – Salvador). 

Em 1752, os Gonçalves da Costa, chegaram a esta região (Sertão da Ressaca)(3) e em 1840, a região que hoje é conhecida como Vitória da Conquista passou a ser chamada de Vila da Conquista e somente em 1891, recebe o nome de Vitória da Conquista. Por influência da família Gonçalves da Costa, o distrito de José Gonçalves, foi assim denominado, em homenagem aos seus precursores.

Desta forma investigamos o processo de emancipação política do distrito de José Gonçalves na perspectiva do Imaginário Social, trazendo a tona as discussões inseridas em tal contexto. Tornando possível, assim, entender quais as motivações das lideranças políticas e sociais que encabeçaram tal movimento. 

As nossas reflexões foram divididas em três momentos: o primeiro é destinado à análise do imaginário social em estudos que envolvam as questões territoriais, ressaltando a sua importância na ciência geográfica, sendo assim subdividido: O imaginário social e as questões territoriais; A importância cotidiana do espaço: as micro-territorialidades do dia-a-dia. O segundo momento faz um resgate, seguido de uma análise, do imaginário social e a questão territorial no Distrito de José Gonçalves, assim se configurando: Território e municípios no Brasil; O crescimento das emancipações políticas no Brasil na segunda metade do século XX; O crescimento das emancipações políticas na Bahia na segunda metade do século XX; e, Vitória da Conquista: a formação territorial. O último momento aborda o processo da emancipação de José Gonçalves no imaginário da população local.

2. Metodologia

Neste trabalho a abordagem se pauta basicamente na: memória, no imaginário e no território, entendidos como elementos socialmente construídos e que, portanto, não podem ser vistos fora de uma perspectiva de interpenetração recíproca, já que eles se entrecruzam, formando uma complexa rede de relações que se manifestam nas práticas cotidianas de diferentes sujeitos sociais.

É preciso clareza para se alcançar resultados em uma pesquisa, seja ela qual for, e essa clareza se dá pela definição objetiva do problema. Sabemos da força que o símbolo sempre exerceu em todas as sociedades que se sucederam na história, mas sentimos a necessidade de demonstrar a força que o mesmo exerce sobre o território potencializando-o enquanto agente constituinte do poder instituído na sociedade, ao passo que apontamos em contrapartida que esta força pode também servir aos que são explorados por esse poder. 

Para a construção deste trabalho a primeira necessidade por nós observada foi a de buscar através de uma revisão de literatura os autores que trabalham com as representações da memória, com o imaginário social e com o território. Em seguida para responder a questão central do nosso estudo – a relação entre o imaginário, a memória e o território, bem como a interpretação das questões relativas à possível emancipação (o plebiscito); sobre esta ótica da relação espaço-símbolo – e confirmar ou não a nossa hipótese, do peso simbólico na construção do território, buscamos nas contribuições de Mendes (2000), Teves (1992), Trindade & Laplantine (1997) e Tuan (1983), o referencial teórico norteador para a compreensão do símbolo, e do imaginário, relacionados ao espaço. No campo da memória nós recorremos a Bosi (1992), Halbwachs (1990) e Le Goff (1992).

Os trabalhos de Castro (1992 e 1997), Santos (1999) e Ivo (1998), foram essenciais para o estabelecimento das conexões pertinentes entre o território, o símbolo e o poder. Quando de início, ao escolhermos o trabalho com a memória impôs-se ao estudo a necessidade de delimitarmos a faixa etária das pessoas que seriam posteriormente entrevistadas. Como o período tratado (a consulta plebiscitária) se deu no ano de 1984, selecionamos pessoas que tinha m acima de 35 anos (na época com mais de 20 anos) podendo com isso absorver melhor o fato estudado, e contribuir assim de forma mais incisiva.

Foram realizadas 16 entrevistas, sendo 2 em Vitória da Conquista, 4 no povoado da Roseira, 1 em Lagoa d’água e 09 na sede do distrito de José Gonçalves. O período de realização das entrevistas se deu entre junho e novembro de 2001. Entre os atores sociais que compuseram o quadro dos entrevistados nós selecionamos: o povo do distrito, bem como lideranças comunitárias do mesmo; políticos da época que se envolveram no processo e lideranças do município vizinho (Anagé) que também se envolveram no plebiscito. Os entrevistados foram catalogados a princípio em três categorias: do povo, políticos e lideranças comunitárias; e posteriormente em oito categorias: governo x povo; contra e a favor; manipulação por parte do governo; discurso e pressão; relação com Anagé: perda de território; emancipação e plebiscito; sentimentos (pró e contra) e, motivações que levaram ao plebiscito (políticos x povo). 

As fontes documentais (manuscritas, impressas, iconográficas e orais etc.) utilizadas foram conseguidas através dos acervos do museu regional da Uesb, do arquivo municipal, da biblioteca da Uesb, do laboratório de cartografia da Uesb, bem como de acervo particular de moradores do distrito. As fontes orais foram adquiridas através de entrevistas semiestruturadas, como mencionado anteriormente. 

Desta forma, a pesquisa contou com a articulação de fontes diferenciadas, o que é extremamente significativo para um trabalho que teve na memória coletiva o seu eixo norteador.

3. Imaginário Social e Território

3.1. O imaginário social e as questões territoriais e sua importância na ciência geográfica

3.1.1 O imaginário social e as questões territoriais

A geografia, como todas as ciências sociais, esteve durante um longo tempo, prisioneira da razão iluminista, que com a então objetividade necessária ao fazer científico abandonou de seus embates tudo que não fosse explicado de acordo com a razão. E, foi neste período histórico, que ocorreu uma busca na disciplina por fatores causais que elucidasse o conteúdo explicativo dos acontecimentos geográficos em função da possibilidade de clarificar e objetivar relações de causa e efeito.

Qualquer referência à imagem, símbolo ou imaginário só recebia destaque se encabeçada à lógica objetiva da base material, sendo esses conceitos naturalmente decodificados como ideologia. A incorporação de tais conceitos, embora ainda objetos de polêmica, através da abordagem fenomenológica da Geografia Humanística contribuíram para ampliar a agenda temática e o campo empírico da disciplina.

No entanto, o momento presente é importante por estimular a busca de novos percursos intelectuais para a explicação geográfica, que deve m ir além tanto da rigidez de um esquema explicativo universal como da flexibilidade imaginativa e sensorial da corrente humanista. A necessidade de as ciências ampliarem os limites explicativos mais além da razão da matriz iluminista, sem perder de vista o rigor do método, revela-se nas críticas cada vez mais ressonantes ao paradigma científico vigente.

A sociedade pode ser entendida a partir das relações entre os seres humanos e entre estes e o meio; concordamos então com Trindade & Laplantine quando afirmam que: [...] a vida social é impossível, portanto, fora de uma rede, simbólica (1997, p.21). Dentro de toda essa rede é que surge [...] o imaginário, como mobilizador e evocador de imagens, que utiliza o simbólico para exprimir-se e existir, por sua vez o simbólico pressupõe a capacidade imaginária (1997:23-24).

O imaginário social como instrumento metodológico comumente explorado em outras áreas das ciências sociais como: a antropologia, a história, a filosofia e a psicologia, e que ora buscamos introduzir a serviço da Geografia, pôde muito bem ser identificado nas palavras de Astúrias apud Trindade & Laplantine: Meu realismo é mágico porque ele se assemelha um pouco ao sonho tal como concebiam os surrealistas. Tal como o concebiam também os Maias em seus textos sagrados. Lendo-os, me dei conta que existe uma realidade criada pela imaginação e que se reveste de tantos detalhes que se torna ela também tão ‘real’ quanto a outra (1997, p. 66).

O imaginário social, porém, se constituiria numa série de imagens carregadas de sentimentos e emoções, e elas são fornecidas também através do território, crivado por sua vez de uma racionalidade pelo qual o poder introduz e reproduz suas ideologias, de acordo com suas pretensões. O imaginário social e os sistemas simbólicos são indispensáveis para manter a coesão social. Para melhor apreender essas relações, vale ressaltar a afirmação de Teves, [...] as modificações ocorridas no homem não são frutos somente das formas de produção e subsistência, mas também das articulações do seu imaginário (1992, p.11). A realidade é sempre uma realidade para um indivíduo ou grupo, que compartilham o sentido dessa realidade. Contextualizando os sentidos e realidades, podemos afirmar juntamente com Teves que: [...] é o olhar e não o olho que informa a existência mundana das coisas (1992,p.14).

O nosso objetivo se constituiria na possibilidade de através dos vários olhares dispostos sobre o distrito de José Gonçalves, por seus habitantes, buscar o imaginário do local (ou parte do mesmo), e com esses elementos, interpretar a relação dos mesmos com o seu território, tendo em vista que a realidade (e todo o conjunto simbólico) se constrói a partir de relações historicamente engendradas. Pois, afirma Teves que: Investigar [...] uma realidade social, pressupõe contar com um conjunto coordenado de representações, uma estrutura de sentidos, de significados que circulam entre seus membros, mediante diferentes formas de linguagem: esse conjunto é o imaginário social (1992, p.8).

Na tarefa de estabelecer uma relação entre o Imaginário Social e a concepção (vivenciada) do Território no distrito de José Gonçalves, algumas idéias que estabelecem uma relação entre o racional e o simbólico na construção da Geografia, serão imprescindíveis, conforme explicita Moreira: [...] a imagem não dissolve o racional, mas desnecessita da razão para legitimar-se como estatuto da realidade. Seja como for, a imagem deixa de ser o puro reflexo das formas do mundo objetivo no espelho da nossa sensibilidade, ou o puro afloramento do ser ou de uma razão recôndita que vem à tona para ordenar nossa percepção. Ao contrário, a imagem é a subjetividade histórica que culturalmente se explica e se basta (1993, p.48).

La Blache, dizia ser a região a efígie cunhada de um povo, tornando-a como um espaço territorialmente demarcado pelos aspectos culturais da paisagem. Na paisagem encontramos os marcos da evolução histórica de um povo, tal propriedade da mesma já foi descrita por Santos, que diz ser o espaço uma soma de tempos desiguais 5. Para compreender com clareza essa acumulação desigual de tempos, na perspectiva do território como espaço vivido, é preciso elucidar alguns pontos: a) tal processo só se realiza com o auxílio da memória, e b) sendo a memória a base formadora do imaginário, ressaltamos que este possui potencialidade para oferecer ao pesquisador a visão do movimento de tempos desiguais (que expressam diferentes formações sócio-espaciais); ressaltamos, porém que existem outras formas, ou percursos, para compreender essa dialética do território.

Na concepção de Castro, as abordagens geográficas do imaginário, indicam um despertar da geografia a este percurso nas ciências sociais, ampliando as possibilidades de utilizar o conceito, polêmico, e que estava restrito a filosofia, antropologia e sócio- lingüística. A epistemologia deixa a responsabilidade para a geografia sobre o debate envolvendo o espaço e as formas imaginativas, e que representa um avanço tanto para o tema em geral quanto para a disciplina em particular. O conceito de território aqui, não deve ser confundido com o de espaço ou de lugar, estando muito ligado à idéia de domínio ou de gestão de determinada área. Assim, a idéia de território estaria intrinsecamente atrelada à idéia de poder, quer se faça referência ao poder público (em qualquer esfera), quer ao poder das grandes empresas que estendem os seus tentáculos por grandes áreas territoriais, ignorando as fronteiras políticas. Com isso podemos: Considerar [que] o imaginário político e território [...] decorre da acepção mínima da política como controle das paixões humanas e do território como o suporte material para a convivência necessária à liberação da energia inerente àquela pulsão. O imaginário social, por sua vez, é o cimento dessa coerência por tornar visível e interpretável os simbolismos presentes nas relações dos homens entre si e com o seu meio, os quais materializa-se nos diferentes modos de organização sócio-espacial (CASTRO, 1997, p.155).

O território revela a reprodução de uma ordem já estabelecida; não importando se essa ordem trará benefício ou não aos diretamente interessados, sua população, que na maioria das vezes, não é consultada, e quando é, não sabe os verdadeiros motivos e intenções que estão escondidos por trás de um rótulo. As imagens criadas e distribuídas ao longo dos anos, em um determinado lugar no espaço, desempenham um papel importante na formação da memória coletiva. Pois, 

Onde há povo, quer dizer, onde há vida popular razoavelmente articulada e estável [...], haverá sempre uma cultura tradicional, tanto material quanto simbólica, com o mínimo de espontaneidade, coerência e sentimento, se não consciência, da sua identidade. Essa cultura, basicamente oral, absorve, a seu modo e nos seus limites, noções e valores de outras faixas da sociedade, quer por meio da Igreja e do Estado (desde os tempos coloniais), quer por meio da escola, da propaganda, das múltiplas agências da indústria cultural; mas, assim fazendo, não se destrói definitivamente, como temem os saudosistas e almejam os modernizadores: apenas deixa que algumas das coisas e alguns símbolos mudem de aparência (BOSI, 1992, p.51).

 É relevante considerarmos a propriedade humana (dinâmica por Natureza), de reter e dar sentido às imagens que nos circundam. Le Goff concluiu que: [...] a memória coletiva faz parte das grandes questões das sociedades desenvolvidas e das sociedades em vias de desenvolvimento [...] lutando todas pelo poder ou pela vida, pela sobrevivência e pela promoção (1992:475). E continua: 

Nas sociedades desenvolvidas, os novos arquivos (arquivos orais e audiovisuais) não escapam à vigilância dos governantes, mesmo se podem controlar esta memória tão estreitamente como os novos utensílios de produção desta memória, nomeadamente a do rádio e a da televisão (1992, p.477).

A interpretação das paisagens contidas na memória coletiva dos moradores de um determinado lugar e em uma determinada escala temporal, permitirá melhor compreender os processos que ali foram articulados no tempo e no espaço. Portanto, o espaço (campo de estudo) e o tempo serão delimitados cronologicamente em função da memória dos habitantes, seja apenas na lembrança ou até mesmo na literatura. Pois, tudo o que se refere à cultura popular enquanto fenômeno: 

[...] se marca historicamente, mas cuja data de instauração só pode ser estabelecida, sociológica e antropologicamente, mediante a constatação de situações em que novos e velhos modelos de vida sócio-culturais entram em conflito. [...] a cultura popular [...] perpetua, no entanto, por herança ou por descoberta, inúmeros de seus traços e padrões: a tradição, a analogia, a consideração dos fatos da natureza, a disposição mágica perante o mundo, ou sentimento da repetição (XIDIEH apud BOSI: 1992, p.387-388).

O geógrafo hoje pode lançar mão dos conhecimentos apreendidos a partir de análises feitas no território, levando-se em conta, o imaginário social. Desta forma, está praticando ciência de forma mais humana e mais justa e não só atendendo aos interesses da classe dominante, como tem sido o destino de todas as ciências.

3.1.2. A importância cotidiana do espaço: as micro-territorialidades do dia-a-dia

Os estudiosos da nossa sociedade negligenciaram um dado central para a própria organização social humana (o espaço social), entretanto o Estado sempre considerou essas questões espaciais. Um questionamento se impõe, até que ponto o Estado mascarou e/ou se aproveitou da espacialidade social? Se considerarmos no bojo dessas dúvidas levantadas todas as escalas (do local ao mundial), os estudos da geografia política sempre terão um lugar entre as ciências sociais, contudo reforçando nosso pensamento nós concordamos com Foucault quando se referindo ao espaço ele se posiciona da seguinte forma: 

É surpreendente ver como o problema dos espaços levou tanto tempo para aparecer como problema histórico político: ou o espaço era remetido à ‘natureza’, à geografia física, ou era concebido como local de residência ou de expansão de um povo [...] o que importava era o substrato ou as fronteiras. Seria preciso fazer uma história dos espaços – que seria ao mesmo tempo uma história de poderes – que estudasse desde as grandes estratégias da geopolítica até as pequenas táticas do habitat” (apud VESENTINI, 2000, p.7).

Diante da colocação de Foucault, inferimos acerca da importância cotidiana do espaço, e das micro-territorialidades do dia-a-dia, ou seja, as táticas do habitat, todas essas escalas se inscrevem num determinado modo de produção, que por sua vez ao ditar os ritmos da reprodução social também o fará no nível da reprodução espaço-territorial, daí que uma melhor análise das ‘artes de fazer’6, conseqüentemente levará à compreensão de como o capital e o poder (associados) agem no dia-a-dia, com intuito de impor ao homem uma disciplina, para em seguida se reproduzir sem maiores problemas, ou seja, como estratégia para reduzir a intensidade dos conflitos de classe.

3.2 O imaginário social e as questões territoriais no distrito de José Gonçalves

3.2.1 Território e municípios no Brasil

Precisamos fazer falar o território7. É nessa perspectiva que damos continuidade ao trabalho, esperando com isso contribuir para o entendimento da nossa realidade. A renovação atual das disciplinas de Geografia Política e Geopolítica permitiu uma retomada nos estudos que envolvam questões territoriais, e, que por sua vez não devem ser confundidas com espaço e região. De acordo com Andrade: O conceito de território está ligado à idéia de gestão e domínio de determinada área. Assim, deve-se ligar sempre a idéia de território à idéia de poder, quer se faça referência ao poder público, estatal, quer ao poder das grandes empresas que estendem os seus tentáculos por grandes áreas territoriais; ignorando as fronteiras políticas (1995, p.19).

A territorialidade é uma característica marcante do ser humano, bem como das várias instituições políticas, econômicas e sociais; com isso juntamente com Andrade: Admitimos que a expressão territorialidade possa vir a ser encarada tanto com o que se encontra no território, estando sujeita à sua gestão, como, ao mesmo tempo, o processo subjetivo de conscientização da população de fazer parte de um território, de integrar-se a um Estado (1995, p.20). As relações de poder estão intrinsecamente ligadas a construção de territorialidades, e, ao estudarmos o território estas relações não podem ser negligenciadas, correndo o risco de comprometer o entendimento de uma determinada realidade.

É importante esclarecer a relação entre o Imaginário Social e o território, na qual consiste a idéia central da nossa proposta, porque é a partir dela que iremos proceder as nossas análises; e nesse sentido Halbwachs apud Mendes, nos dá uma dimensão dessa relação ao afirmar que: 

O espaço é uma realidade que dura: nossas impressões se sucedem, uma a outra, nada permanece em nosso espírito e não seria possível compreender que pudéssemos recuperar o passado se ele não se conservasse, com efeito, no meio natural que nos cerca. É sobre o espaço, sobre o nosso espaço – aquele que ocupamos, por onde sempre passamos, ao qual sempre temos acesso, e que em todo caso, nossa imaginação ou nosso pensamento é a cada momento capaz de reconstruir – que devemos voltar nossa atenção; é sobre ele que nosso pensamento deve se fixar, para que reapareça essa ou aquela categoria de lembranças (1950, p.143).

Com isso temos uma idéia da íntima relação entre o simbólico e o espaço (uma dialética da construção simultânea de um e outro). As imagens dispostas no espaço fornecem uma fundamentação vital para a memória coletiva e o imaginário enquanto representação simbólica, e como essas três categorias estão num determinado quadro onde existe o exercício do poder, podemos afirmar que existe uma relação delas com o território onde estão imersas. Dentro destas considerações é interessante compreender que: O exercício do poder se faz sobre o conteúdo do espaço, transformado em território, não só pelas forças econômicas, mas também pelas raízes culturais, onde as imagens e os mitos não podem ser negligenciados. A força do imaginário é (energia das massas) a única soldadura dos fragmentos dos territórios (NEVES, 1998, p.272). 

É evidente, contudo que o conhecimento do território, em dias de intensa desterritorialização e perda conseqüente de identidade, fruto do intenso processo capitalista de globalização, que a tudo interessa no formato mercadoria, se impõe com um interessante fato, pois: [...] conhecer o território é, inicialmente conhecer a si mesmo, nas partes e no todo. Em segundo lugar, conhecer o território é conhecer o outro (SILVA,1998, p.259). Não existe nada na sociedade que não seja produzido, adquirido e apropriado; originalmente a natureza se apresenta como um vasto terreno de nascimentos; as coisas nascem, crescem e morem... Um infinito se esconde sob esses termos; cabe reter isso: quem diz natureza, diz espontaneidade.

3.2.2 O crescimento das emancipações políticas no Brasil na segunda metade do século XX

Nas últimas décadas, temos assistido um nascimento substancial de novos municípios no Brasil, como assinalou Carvalho (1997), ao analisar a viabilidade dos governos locais. Em seu estudo, ele nos apresenta a evolução temporal da criação de novos municípios brasileiros, no período compreendido entre 1950 e 1990. Este aumento foi de 237,2% entre 1950 e 1990, assinalando um crescimento de 2,37 vezes. Frente a estas circunstâncias, fica fácil deduzir que uma boa parte dos municípios foi emancipada precocemente, sem reunir as efetivas condições de viabilidade econômica, política e administrativa, comparando com as regras para criação de novos municípios apresentada por Carvalho (1997):

De acordo com a Lei Complementar 19/91 de 17/10/91, eram necessários os seguintes requisitos para que um município fosse criado: 1) população superior a 7 000 habitantes; 2) número mínimo de 3 000 eleitores; 3) número de moradias superior a 400; 4) núcleo urbano constituído, com edificações com capacidade para instalar o governo municipal, com seus órgãos administrativos; 5) serviços públicos de comunicação, energia, água, posto de saúde, escolas públicas e cemitério; 6) arrecadação tributária mínima a ser estipulada anualmente.

Com isso estamos afirmando que na realidade, pouca coisa se modificou, em termos de possibilitar aos governos locais, e as pequenas comunidades, condições efetivas de decidir sobre as suas necessidades e de promove r um desenvolvimento local auto-sustentado. Apesar dos discursos oficiais, a interferência do governo federal é ainda muito forte.

3.2.3 O crescimento das emancipações políticas na Bahia na segunda metade do século XX

A criação de novos municípios na Bahia não foi diferente da do restante do país, segundo o Anuário Estatístico de 1999 pelo SEI. A Bahia, bem como o restante do país, teve um grau considerado de crescimento devido aos mesmos fatores já explicitados anteriormente, o modelo de desenvolvimento vinculado ao capital externo e a Constituição de 1988 que incentivou o processo emancipatório em todo território nacional. Na região de Vitória da Conquista (Sudoeste da Bahia) muitos municípios foram criados, como: Caetanos, Mirante, Bom Jesus da Serra, Caraíbas e outros, que também foram citados nas entrevistas.

3.2.4 Vitória da Conquista: a formação territorial

A conformação atual do território desse distrito, sob a administração da sede, se deu em função da disputa do poder por dois grupos, um a favor da emancipação e outro contra. O possível desmembramento acarretaria perda de eleitorado para um dos lados. Segundo fontes documentais, João da Silva Guimarães (bandeirante destacado para explorar o sertão da ressaca) recebeu em 1750 a patente de Capitão da Companhia e Infantaria da Ordenança dos homens pardos do Arrebaldo8; a sua tarefa como bandeirante foi iniciada em 1730 ou 1731, e segundo as descrições de Torres9 e Medeiros10, a penetração do Sertão da Ressaca por João da Silva Guimarães partiu da bacia do rio Paraguaçu para a bacia do rio de Contas seguindo pelo rio Gavião (afluente do rio de Contas).

Do rio Gavião, seguiram para as terras do atual município de Bom Jesus da Serra, de onde se dirigiu da barra do Riachão do Gado Bravo (afluente do rio Gavião) até alcançar o lugar conhecido como batalha (terras do atual município de Vitória da Conquista). Por volta de 1753, João Gonçalves da Costa (que em 1744 recebe a patente de Capitão-mor do terço de Henrique Dias), deu continuidade à conquista da região (Sertão da Ressaca) iniciada por João da Silva Guimarães11. Em 1744, João Gonçalves da Costa integrado a bandeira do mestre-de-campo João da Silva Guimarães, como capitão do terço de Henrique Das, como fora anteriormente exposto, e a patente por ele recebida, assinada por André de Melo e Castro (conde das Galveas, na época), que indica algumas funções que ele deveria exercer junto à bandeira da qual pertencia, dentre as quais, servir nas conquistas e descobrimentos do mestre-de-campo João da Silva Guimarães12.

A tarefa a partir de então, nas décadas de 40-50 do século XVIII, de estabelecer bases territoriais no Sertão da Ressaca, ficou a cabo de João Gonçalves da Costa, que tinha a disposição 70 armas de fogo, alguns barris de pólvora para 50 índios civilizados e sob seu comando. As autoridades da época (governador Conde da Ponte) ficaram satisfeitas com a eficiência do bandeirante João Gonçalves da Costa, sentimento que ficou registrado em carta ao Visconde de Anadia em 180713.

Depois de instalados no Planalto da Conquista, os Gonçalves da Costa procederam as divisões dos territórios conquistados tendo por critério o parentesco com o conquistador; e do casamento com Josefa Gonçalves da Costa, João Gonçalves da Costa teve oito (8) filhos, entre eles, José Gonçalves da Costa, que se instalou em terras do atual distrito (tendo na época posses na região) que carrega seu nome. A Imperial Vila da Vitória foi criada por lei provincial nº 124 de 19 de maio de 184014, recebe o nome de Conquista em 1891; a denominação Vitória da Conquista foi oficializada em 1943; e em 1960 o município foi desmembrado, perdendo cinco distritos15. Assim se originou o município de Vitória da Conquista, bem como os seus distritos, se configurando territorialmente na atual forma.

Pierre George 16 propõe que o tempo comum é o objeto dos estudos sobre a vida cotidiana, os ritmos sazonais, os comportamentos das diferentes idades da vida. A tarefa da geografia consiste em registrar as diferentes utilizações do tempo vivido, conforme as parcelas do espaço em questão. 

3.3 O processo de emancipação de José Gonçalves

3.3.1 A emancipação de José Gonçalves no imaginário da população local

Nessa etapa, mais do que nas anteriores, o território poderá expor diretamente suas contradições, reproduzidas nas expressões dos seus atores sociais (os habitantes do distrito). Buscaremos então, mostrar a relação contraditória estabelecida entre os habitantes do distrito, e o poder político instituído da época; contradição que girou em torno do plebiscito, realizado para decidir pela emancipação (ou não) do local. Chegamos então à grande questão, desmitificar essa operação do poder com todo esse aparato simbólico, para usufruir uma situação social, historicamente construída (aqui nos referimos ao plebiscito, e a questões políticas daí decorrentes). Segundo Lefèbvre17, a análise da vida cotidiana envolve concepções e apreciações na escala da experiência social em geral, daí a importância do que tem a nos dizer as pessoas que constroem o cotidiano do distrito.

O trabalho com o imaginário é dependente das impressões dos habitantes do território em questão (independente da dimensão do mesmo), trazido à tona através de entrevistas com a população, podendo aparentemente “omitir” algum fato importante no bojo do trabalho, entretanto devemos considerar que as impressões decorrentes do contato com a população são um incessante devir, e levar em conta [...] o fato de que o dizer é aberto. É só pro ilusão que se pensa poder dar ‘a palavra final’. O dizer também não tem um começo verificável; o sentido está (sempre) em curso (ORLANDI, 1998, p.11). Com isso, ao contrário, a análise pode ser mais interessante e abrangente do que se pensa.

3.3.2.A emancipação na perspectiva do imaginário

Aos vinte e cinco de novembro de mil novecentos e oitenta e quatro, foi realizado uma consulta plebiscitária no distrito de José Gonçalves, com vistas à emancipação política conforme Resolução do Egrégio Tribunal Regional Eleitoral, sendo presidida pelo então juiz eleitoral da 40ª zona, o Sr. Gildásio Pereira Castro. 

Antes da realização desta consulta, houve movimentação das classes políticas, lideranças comunitárias do local, pessoas influentes da comunidade, políticos de cidades vizinhas, bem como da população da sede e dos povoados que a compõe. Passaremos a analisar no contexto histórico do imaginário, esses atores sociais envolvidos no processo; procurando evidenciar as razões e o significado que uma possível emancipação deste distrito assumiria para os seus habitantes e como esta se configurou no imaginário dos mesmos. Percebe-se na fala do senhor Juracy Gralha 18 que foi: Fernando Spínola, o deputado, o autor desse projeto da emancipação [...] É que em 1946, foi eleito deputado estadual pelo distrito de José Gonçalves, ajudado por José Gonçalves, o deputado Orlando Ferreira Spínola, então ele, quando estava despedindo da política, o qual ele aposentou-se, ele decidiu deixar uma lembrança lá no distrito de José Gonçalves, a emancipação, a independência do distrito de José Gonçalves, mas por infelicidade nossa, não foi possível. (junho de 2001).

Podemos observar, na fala do senhor Hélio Ribeiro, transcrita a seguir, que neste processo se delinearam duas correntes: Olha! Aquele movimento de emancipação contou com duas correntes. Uma corrente liderada pelo deputado Sebastião Castro, pró-emancipação e outra corrente que foi liderada pelo prefeito Pedral Sampaio contra a emancipação (junho de 2001). São, portanto, dois diferentes pontos de vista lançados sobre o espaço, o que não se dá sem conflito. Essa contradição pode ser mais bem compreendida se concebemos que o espaço e o tempo coexistem, se entremesclam e cada um deles são definidos de acordo com a experiência pessoal19. O que fica ainda mais claro na fala que se segue: Lembro, a movimentação do dia foi grande, teve eleição, colocaram urna aí em todos os lugares, em todas as localidades próximas. Eu principalmente fui fazer um trabalho no povoado de Roseira, o pessoal lá quase me bate, não me bateu lá porque tinha muito amigo da gente lá, e disse não, não pode mexer nele não, é um direito que cabe, não é? Ele podia deixar a vontade do povo dizer isso [...] (Florisvaldo Leite, novembro de 2001). 

Ficou claro nas entrevistas que parte da população se colocou contra a emancipação política de José Gonçalves, sendo estes em sua maioria moradores dos povoados; e que na sede um número expressivo ficou a favor. Faremos um contra-ponto entre essas duas forças que permearam este momento histórico, social e político dos habitantes deste distrito, utilizando-se de fragmentos de discursos presentes na memória coletiva do seu povo, levando-se em conta que todo esse processo foi alimentado por motivações advindas de um conjunto de interesses oriundos ora das lideranças políticas20, ora da população que almejava ver o seu distrito se elevar à categoria de cidade. A emancipação do distrito para uns significava o progresso e o desenvolvimento, como podem ser observados nos fragmentos a seguir:... é o sonho da gente aqui que volte a emancipar, porque é o único meio da gente ver desenvolver José Gonçalves e região, é com a emancipação como explicitou o Sr. Graciano, novembro de 2001.

Mesmo para os políticos [...] José Gonçalves tinha todas as condições para se tornar um município através da sua emancipação política. [...] é uma região produtora de lavoura de subsistência e de pecuária de pequeno porte, salientou o Sr. Hélio Ribeiro, junho de 2001, secretário para assuntos distritais da PMVC. Já para o Sr. Florisvaldo Leite, [...] parte da vontade de emancipar veio do povo e outra parte veio dos políticos. [...] a maior parte dos políticos hoje só visa a parte dos políticos. O lado do povo é esquecido, então é bom que a gente pense um pouco nisso (julho de 2001).

Boa parte da população tem um sentimento com relação a emancipação, pois acreditam que o futuro de José Gonçalves só ocorrerá com a sua independência política administrativa, é o que expressou o Sr. Graciano: [...] tenho 43 anos, eu não olho por mim não, eu olho pelos meus filhos, que a gente quer o futuro para os filhos da gente, para os filhos da gente não sofrer o quanto à gente vem sofrendo (novembro de 2001).

Nas palavras da Sra. Valdeídes, comerciante do local: Existe muita frustração, porque as pessoas de Caetanos, de Bom Jesus da Lapa e outros não estão arrependidas por estar sendo independentes de outra cidade (junho de 2001). Já para a Sra. Venina, o povo de José Gonçalves hoje tem um anseio de ver o seu distrito emancipado: Pra ver se vinha alguma coisa a mais pra aqui, não é? Muitas pessoas falam que se arrependeu, né, aqui teve o sim e o não, então falou que aqui iria arruinar, a gente votou tudo no não (novembro de 2001).

Para outros tal emancipação significaria um atraso, dado às dificuldades que um município recém-emancipado teria que enfrentar, como a implementação de uma prefeitura, quadro de pessoal, maquinário e toda a sorte de aparelhamento necessário para sua autonomia, como fica explicitado nos fragmentos também a seguir: [...] eu fui contra, votei contra porque [...] O povo dizia que era Pedral que não queria, mas não era Pedral que não queria, quem não queria foi o povo, quem não quis foi o povo, nos contou Eudalgisa (julho de 2001).

Dona Flordinice, também deixou a sua impressão, ao dizer que também: [...] era contra a emancipação de José Gonçalves. Porque [achava que] eles deveriam tomar mais um cuidado com o pessoal aqui da roça, aqui estava esquecido, deveria cuidar primeiramente daqui [...] Se emancipasse José Gonçalves, o novo município não teria condições de ser uma cidade (agosto de 2001).

Dona Valdeídes nos relatou que: [...] a favor mesmo só foram os moradores da sede. Os contra foram à maioria da zona rural, os povoados mais distantes aqui da sede, que tinha mais influência sobre Pedral [...] os contra foi muitos, principalmente a prefeitura todinha (junho de 2001).

A dona Elzenita, do povoado da Roseira, nos contou que quando chegou de São Paulo: [...] o pessoal aqui falava que se emancipasse ficaria pior. [...] Na época eu votei no não, mas não sei nem o motivo para explicar (agosto de 2001).

O Sr. Nenzinho, também morador do povoado da Roseira, afirmou categoricamente: [...] nessa eleição aí eu era contra a emancipação, porque o prefeito Pedral era bom e ninguém queria a emancipação, sair de Conquista (agosto de 2001). 

Nota-se claramente nos discursos que as razões se diferem um pouco, mas no fundo, os que votaram contra foram manipulados pela administração da época, comandada pelo prefeito Pedral Sampaio. Vistos alguns fragmentos dos discursos contidos no imaginário dos habitantes, passaremos a mostrar a forma como o poder manipulou o imaginário21 dessa população, pois como bem ressaltou Halbwachs: [...] em nosso pensamento, na realidade, cruzam-se a cada momento ou em cada período de seu desenvolvimento, muitas correntes que vão de uma consciência a outra, e das quais ele é o lugar de encontro (1990, p.100).

Esta manipulação se deu através de coação, chantagem e outros artifícios, comumente utilizados pela maioria dos governantes. Muitos moradores foram coagidos a votar a favor do então prefeito, com medo de algum tipo de represália por parte da administração de Conquista, como se vê a seguir nas palavras do Sr. Florisvaldo Leite: A prefeitura de Conquista jogou o maquinário de Conquista todo aqui dentro e colocou na cabeça do povo que aquele maquinário era de Conquista, que se José Gonçalves se emancipasse, aquele maquinário iria voltar para Conquista e que José Gonçalves iria ficar esquecida enquanto não tivesse condição de comprar um maquinário daquele para trabalhar [...] que até as escolas poderiam fechar (julho de 2001).

Dona Venina confirma ao dizer que: Pedral naquela época fez uma campanha grande junto com os cabos eleitorais [...] e aí foi aonde que convenceu muitas pessoas que não tinha consciência [...] Ah! Manipulou! A gente que morou aqui que viu, ele fez até giranda de fogos para comemorar o não (junho de 2001). Assim, fica demonstrado que o exercício do poder público pode inibir ou estimular identidades regionais, assim como forjá- las22, essa foi à idéia que norteou toda a atuação do poder instituído na época (em todas as esferas – estadual e municipal).

O processo de ocupação e construção do espaço pelos grupos sociais nos diversos municípios (e distritos) tem engendrado importantes diferenciações internas nos seus territórios, sejam estas de cunho sócio-econômico, político-social ou cultural. Estas diferenças, quando conscientizadas, tendem a gerar conflitos que não mais podem ser descartados das articulações política práticas ou das reflexões teóricas23. As mobilizações locais, que almejam qualquer modificação política, incitam aos lados que se confrontam a fazer prevalecer o seu interesse imediato, e esse processo tem claras implicações para o sistema político. Daí que a nossa análise considera o espaço, como um produto histórico, não estando alheio à memória coletiva, nem tampouco às representações simbólicas. Nesse processo as sociedades criam o espaço e se tornam, muitas vezes, presas dele 24.

Contrariando o discurso oficial, José Gonçalves possuía uma infra-estrutura urbana satisfatória (colégio, igrejas, praças, ruas pavimentadas, chafariz público, pontos comerciais, energia elétrica, telefone, posto de saúde, etc.), bem como uma localização privilegiada, próxima a BR-11625, um dos maiores corredores de escoamento da produção no Brasil, o que lhe confere uma posição de destaque, reunindo assim todas as condições técnicas expressa no texto de Lei26 referindo-se àquilo que se fazia necessário para que um distrito pudesse se tornar uma cidade. 

Para os habitantes de José Gonçalves, que já vivem há muito tempo adaptados ao cotidiano do distrito; não somente os seus movimentos, mas também seus pensamentos se regulam pela sucessão das imagens que lhes representam os objetos exteriores. Isso nos dá uma idéia da dimensão e significado da relação entre o lugar e os seus moradores. Não foi nossa intenção, em nenhum momento, privilegiar uma das partes envolvidas neste processo de emancipação política; procuramos apenas mostrar as contradições encontradas nos discursos oficiais e nas impressões colhidas no imaginário dos seus habitantes. Ficando claro o potencial que a informação joga na construção do espaço geográfico, bem como o poder simbólico, manipulado pela autoridade constituída, mas a nossa perspectiva teórica leva em conta que: 

[...] a memória coletiva foi posta em jogo de forma importante na luta das forças sociais pelo poder. Tornarem-se senhores da memória e do esquecimento é uma das grandes preocupações das classes, dos grupos, dos indivíduos que dominaram e dominam as sociedades históricas. Os esquecimentos e os silêncios da história são reveladores desses mecanismos de manipulação da memória coletiva (LE GOFF, 1992, p.426).

Em contrapartida, a riqueza revelada pela memória e pelo imaginário, em sua ligação com o território, se revelou para nós de forma surpreendente, tendo em vista que não tínhamos a dimensão do quanto a realidade é também dada a conhecer por esta ótica. 

Confirmaram-se as nossas hipóteses, de que a memória social e o imaginário dos habitantes do distrito estudado foram capazes de nos fornecer a dimensão contraditória do processo emancipatório (consulta plebiscitária), fazendo-se perceber o apego do habitante pelo lugar, o jogo de interesses por parte das autoridades políticas da época, a manipulação por parte do poder instituído. Na questão do território e sua constante construção, jamais poderíamos dizer que o mesmo terá uma configuração definitiva, haja vista que até mesmo os próprios moradores, como no caso do povoado de Roseira se confundem em relação a esta questão espaço-territorial (uns acreditam pertencerem a Anagé, enquanto outros sabem se tratar de José Gonçalves, não tendo ao certo a percepção da fronteira).

Acreditamos que este estudo servirá de base para melhor compreender a região de Vitória da Conquista, e que foi além de nossas expectativas, revelando-nos fatos curiosos, surpreendentes, e inimagináveis, confirmando o potencial do imaginário social. 

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NOTAS

1 Geógrafo, pós-graduando em Gestão de Recursos Hídricos - UESB

2 Geógrafo, pós-graduando em Ciências Ambientais - UESB

3 Localização da sede do distrito (área urbana).

4 Adaptado de M.A.S. SOUSA, 1998.

5 Adaptado de Moreira, 1993.

6 Expressão cunhada por Certeau, 1999.

7 Adaptado de O Brasil: Território e sociedade no início do século XXI, p. 27.

8 Adaptado de Ivo, 1998.

9 Torres, T. op cit, 1996: 43-44 (apud Ivo).

10 Medeiros, R. op cit. In: Torres op. Cit. 1996:98 (apud Ivo).

11 Adaptado de Ivo, 1998.

12 Adaptado de Ivo, 1998.

13 Adaptado de Ivo, 1998.

14 Adaptado de Ivo, 1998.

15 Enciclopédia Barsa. nº 15, 1992: 457.

16 apud Silva, (1991:40).

17 apud Santos, (1999: 254),

18 Vereador à época do plebiscito.

19 Segundo YI -FU TUAN, 1983.

20 Do município de Vitória da Conquista, da sede do distrito e de cidades vizinhas (lideranças de Anagé).

21 Em relação às potencialidades do imaginário, e sua apropriação pelo Estado (poder).

22 Adaptado de Castro, 1992.

23 Adaptado de Castro, 1992.

24 Adaptado de Castro, 1992. 

25 O distrito de José Gonçalves é ligado a BR por uma rodovia estadual asfaltada, em bom estado de conservação.

26 Lei Complementar 19/91 de 17/10/91 (Carvalho, 1997): note que esta lei é posterior ao plebiscito, o que nos leva a inferir que José Gonçalves à época, e ainda hoje, apresenta todas as condições necessárias. Volta



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