Labirinto - Revista Eletrônica do Centro de Estudos do Imaginário

  

Reflexões sobre a Memória e o Imaginário.

Bethoven Soares Darcie (1)


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CONSELHO EDITORIAL
Arneide Cemin
Ednaldo Bezerra Freitas
Zairo Carlos da Silva Pinheiro

  


Como poderemos utilizar a memória e o imaginário para que fique clara a concepção desses conceitos, que perpassam um ao outro, encontram-se imbricados na intersubjetividade, na relação que temos com nossa sociedade, na maneira de vermos e compreender o mundo, que procuramos forjar para que dêem sentido às nossas ações, e mesmo assim são distintos um do outro?

Não há memória em que o imaginário não se faça presente, assim como não há imaginário sem que possamos encontrar nele a memória dos indivíduos, grupos ou sociedades. Sem memória, jamais poderíamos formar/forjar/construir nosso imaginário, do mesmo modo que o imaginário sobre algo ou alguém é essencial para formação de nossa memória.

Nossa percepção não identifica o mundo exterior como ele é na realidade, e sim como as transformações, efetuadas pelos nossos órgãos dos sentidos, nos permitem reconhecê-lo. Assim é que transformamos fótons em imagens, vibrações em sons e ruídos e reações químicas em cheiros e gostos específicos. Na verdade, o universo é incolor, inodoro, insípido e silencioso.(OLIVEIRA, 2003)

Ora, desse mesmo modo nossa memória é armazenada levando-se em conta tanto a importância dada a certos aspectos pela pessoa que a armazenará, quanto a idiossincrasia, seu modo de ver e se relacionar com o mundo a sua volta.

Assim podemos notar, que diversos assuntos sempre são repassados de maneiras diferentes e em alguns casos divergentes, dependendo do ponto de vista e da importância dada a certos detalhes pela pessoa que nos relata um determinado acontecimento – ponto de vista esse sempre em diálogo com os segmentos sociais aos quais pertence. Como exemplo podemos citar as bombas jogadas em Hiroshima e Nagasaki pelos estadunidenses no final d Segunda Guerra Mundial, alguns dão destaque à sua necessidade para terminar as sangrentas batalhas, outros ao fato de aquela Guerra já estar praticamente acabada, tendo sido esse ataque muito mais uma forma de terrorismo, afinal foi desferida contra alvos civis, com o objetivo de intimidar a União Soviética demonstrando o poder bélico de seus até então “companheiros” nas lutas e futuros adversários.

No sentido de tentar legitimar seu ponto de vista, bem como justificar determinadas ações de seus grupos/sociedades, as pessoas são levadas a representar suas memórias, como podemos notar mais claramente na atualidade nos estudos, discursos e manifestações em prol do reconhecimento de culturas diferentes, contra a discriminação, seja ela sexual, do gênero, racial, etc.

Em toda memória representada – encontradas em discursos, textos e imagens – perpassam idéias/ideais ligadas, por um lado pela subjetividade de quem a articulou e, por outro, dos grupos aos quais, quem a realizou, mantém contato. Nas miríades das concepções de determinada sociedade é onde se articulam as memórias, pois essas, sejam acerca de uma pessoa ou de um acontecimento, são concatenadas com outros fatos ocorridos, visando dar uma coerência a ela e à sua expressividade, assim como legitimar/justificar visões com as quais se identifica.

A memória representada, desse modo, não é apenas um relato inócuo sobre algo ou alguém, visto carregar em seu seio pontos de vista/visões de mundo que seu autor tenta dar visibilidade, inserindo-a nas relações, nos campos de força/luta sociais, ansioso pela aceitação de seus valores como reconhecidos e assimilados por outros.

As lembranças, recordações sobre acontecimentos, pessoas, odores, locais, imagens, tudo isso forma nossa memória a partir do momento em que são gravadas em nosso cérebro. Mas se fossem simplesmente talhadas na psiquê em seu estado bruto, ou seja, sem serem relacionadas e ordenadas, sem a influência de nossa idiossincrasia e nosso ethos, não teriam sentido, seriam milhares e milhares de imagens sem nexo, pois sem relação alguma para o que denominamos de realidade.

Para dar sentido a essas miríades de lembranças é que em nosso cérebro elas são relacionadas com nosso imaginário: nossos sonhos, utopias, nossa maneira de ver o mundo, sendo emoldurado, criado e recriado constante e incessantemente.

De acordo com estudos da neurociência, embora haja locais no cérebro destinados a diferentes sentidos/sentimentos/raciocínios, existe interconexões entre as distintas localidades, sendo que os neurônios aglutinam essas diferentes informações que irão formar nossos pensamentos por meio de descargas elétricas e químicas.

É interessante ser essa uma explicação para o motivo de às vezes termos receio de passar por um local onde tenha acontecido algo que nos tenha deixado com um certo trauma. Ou seja, muitas vezes nosso imaginário grava em nossa memória que tal local é perigoso, embora tenha sido mais o acaso que tenha propiciado a ocorrência desse.

Isso também ocorre nas relações intersubjetivas quando, não gostando das atitudes de determinadas pessoas ou grupos sociais, evitamos o contato, visando não termos uma situação de conflito. Ademais, tal fato nos leva a justificar nossas visões contrárias a desses indivíduos/grupos, tentando estigmatizá-los,  justificar nossa posição contrária a eles e assim sermos aceitos. Do mesmo modo, formamos nossa memória de uma tal maneira que dê sentido a nossa concepção de mundo e como nos relacionamos com ele.

O imaginário, a maneira como as pessoas percebem seu grupo, sua sociedade, seu modo de ver o mundo, influencia atos, atitudes e posicionamentos sócio-político-culturais. Sendo que as representações desse imaginário servem para justificar ou lutar pela alteração de um determinado projeto, seja ele político, social ou cultural. As representações têm tanta importância como as lutas econômicas para compreender os mecanismos pelos quais um grupo impõe, ou tenta impor, a sua concepção do mundo social, os valores que são os seus, e o seu domínio. (CHARTIER, 1990: 17)

Caso não fosse o imaginário, o ataque ao Word Trade Center (WCT) em 11 de setembro de 2001 seria apenas uma recordação de dois aviões batendo nas torres gêmeas (WCT) e um monte de ferro distorcido após o desabamento das mesmas. O que nos faz compreende-los como um ataque terrorista, como uma ação em resposta à política externa estadunidense, como afirmam alguns (inclusive eu – embora, deva ressaltar, ser um ato inaceitável); ou como um ataque à “Civilização Ocidental” como um todo, tentando destruir a democracia, como afirmam outros; é o imaginário.

Nesse sentido podemos notar nos pronunciamentos do Governo dos estados Unidos da América (EUA) a tentativa de legitimar um ataque a outros países como uma forma de combater o terrorismo (tão inaceitável quanto aquele ataque, em meu ponto de vista). Sendo esta uma forma de tentar inculcar no imaginário das pessoas a “necessidade” de tais investidas, justificando, assim, seus atos perante a opinião pública e desejoso de obter apoio de outras nações.

O que é valorizado ou não, o que é lícito ou ilícito, são posicionamentos que se alteram, sendo constituídos historicamente e, portanto, passíveis de serem interpretados (CASTORIADES, 1982:176). Tais concepções do que deve ser valorado, tornado ilícito ou mesmo temido, são forjadas e defendidas ou não, de acordo com interesses dos vários segmentos sociais que compõem uma determinada sociedade.

Por exemplo, quando vimos o “Risco Brasil” (nada mais que um símbolo interiorizado pelo mercado econômico como um índice válido para termos noção dos riscos corridos ao aplicar em certos países – embora, tenha de afirmar, esse símbolo possuir sempre algum aspecto ligado a acontecimentos ocorridos nos estados Nacionais) disparar na véspera das eleições presidenciais de 2002, o que aumenta, sensivelmente, a dívida brasileira e gera lucros para especuladores financeiros, podemos notar o interesse em estigmatizar (seja interna ou externamente) o, outrora, candidato Luís Inácio Lula da Silva, relacionando-o com uma possível ruptura radical com o modelo econômico (o que não ocorreu), tentando fixar no imaginário de outros o temor da possibilidade de Lula assumir a Presidência da República do Brasil.

Além de diminuir os investimentos no País (o que ocorreu naquele período), essa representação abriu espaços (já não seriam previsíveis?) para outros candidatos atacarem a imagem do candidato titular do Parido dos Trabalhadores, com vistas a desestabilizar sua campanha política – o que acabou não se efetivando, visto Lula ser o atual presidente.

Assim sendo, a memória representada deve ser compreendida como o modo pelo qual um indivíduo/grupo/sociedade relata – seja por meio de entrevistas, testemunhos, matérias em periódico, discursos proferidos ou mesmo obras literárias e arte plástica – sua maneira de ver algo ou alguém – podendo ser seu próprio grupo, um país, um acontecimento, ou mesmo o sentido de um termo como a revolução – sempre o remetendo (conscientemente ou não) às lutas para legitimação de idéias/ideais, ou seja, na luta pela (re)definição de nossas identidades, ou melhor, à processos de identificação. (MAFFESOLI, 1999:301)

As memórias representadas são, assim, os locais propícios para estudarmos a memória, o imaginário e a constante (re) formulação das identidades. Vale dizer que o processo pelo qual a identidade é redefinida altera-se constantemente, de acordo com as relações de força entre o “eu” e o “outro”, visto esses se encontrarem no eterno conflito de aceitar/rejeitar, ceder/enrijecer, unir/separar, lembrar/esquecer existente no bojo da sociedade. Nesses conflitos são forjadas/criadas/moldadas as identidades, sempre em contraposição a outras e em luta por sua aceitação. Afinal, não há como existir o “eu” sem o “outro”, assim como as identidades não podem se manter estáticas, dada à diversidade existente na sociedade e pelo fato de não existir uma origem pura e com total coerência. A verdade e seu reino originário tiveram sua história na história. (FOUCAULT, 2003)

Mister nos é afirmar não termos a ilusão de encontrar a história pronta e acabada nas visões do passado, bastando a nós captá-las e descrevê-las. Devemos criar condições para dar sentido à nossa narrativa histórica, enfrentando sendas ainda não abertas, escolhendo rumos nas diversas encruzilhadas, decifrando labirintos por nós mesmos criados – esse é o trabalho do historiador.

A História é uma narrativa, nós a construímos, embora se distancie da literatura por sua ânsia, ou melhor, seu compromisso, para com a veracidade, seu embasamento teórico e seu tratamento dispensado às fontes.

A História é uma narrativa, nós a construímos, embora se distancie da literatura por sua ânsia, ou melhor, seu compromisso, para com a veracidade, seu embasamento teórico e seu tratamento dispensado às fontes.

Assim, em nossas narrativas históricas damos sentido para relações sócio-político-culturais, que influenciam na formação, tanto de uma memória coletiva, quanto de imaginários sociais.  Estes, por sua vez auxiliam na formação de grupos que apóiam ou se lançam para modificar idéias/ideais/sistemas de governo/crenças ou mesmo o significado de certos termos, como o de revolução, independência e soberania.

Como pudemos notar, memória e imaginário são como o corpo e a sombra de um mesmo pensamento, embora não nos seja possível distinguir até onde se encontra a massa e seu reflexo, nem mesmo suas diferenças e características próprias, vistos se encontrarem entrelaçados em nossas representações. Nesse sentido, vale destacar resultados obtidos por pesquisadores do Royal Holloway College (Londres/Inglaterra) e da Universitá degli Studi di Trento, (Rovereto/Itália), que sugerem que a sombra e o corpo formam parte de um mapa desenvolvido por nosso cérebro, no qual não há a distinção entre um e outro, desse modo, nosso cérebro reconhece nossa sombra como parte integrante de nosso corpo.

Assim como nosso cérebro não distingue a diferença entre nossa massa corpórea e sua sombra, não há como diferenciarmos sistematicamente a memória do imaginário, visto esses serem partes integrantes da maneira como visualizamos nosso mundo, nossa realidade, dando sentido tanto para nossas percepções, quanto para nossos atos e ações.

Bibliografia

CHARTIER, Roger. A História Cultural – entre Práticas e representações, Lisboa: Difel, 1990.

CASTORIADES, Cornelius. A instituição imaginária da sociedade. Tradução de Guy Reynaud. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2ª edição, 1982.

Cérebro vê sombra como parte do corpo. In: http://www.ciencia-shop.com.br/shop/. Acesso em 16 de dezembro de 2003.

FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. In: http://www.sabotagem.cjb.net. Acesso em: 20 de março de 2003.

OLIVEIRA, Jorge Martins de. Percepção e Realidade. In: http://www.epub.org.br/cm/n04/opiniao/percepcao.htm Acesso em: 14 de setembro de 2003

MAFFESOLI, Michel. No fundo das aparências. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 1999.

NOTAS

1) Graduado em História pela Universidade Católica de Goiás, Especialista em História Local, Regional e Nacional, e mestrando em História pela Universidade Federal de Goiás.
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