Labirinto - Revista Eletrônica do Centro de Estudos do Imaginário

  

Livros, leitores, imaginários e preservação da cultura

Maria Cristina Gioseffi - Psicologia Social - UERJ(1)


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CONSELHO EDITORIAL
Arneide Cemin
Ednaldo Bezerra Freitas
Zairo Carlos da Silva Pinheiro

  


A escritura de qualquer texto estimula a imaginação, remetendo tanto o leitor quanto o escritor para momentos diversos do tempo e do espaço. Desejamos, neste texto, que tal imaginação seja reportada para alguns momentos da história da cultura escrita, esta história da qual se faz parte. Trata-se de um “passeio” narrativo por alguns pontos que a memória da pesquisadora faz reviver diante de um dos maiores acervos bibliográficos do mundo. Acervo que pertence a Biblioteca Nacional, localizada na cidade do Rio de Janeiro. 

 

Esta pequena viagem temporal se inicia a partir dos “objetos” que se constituem, socialmente e não “naturalmente”, como razão das bibliotecas e, ainda, como símbolos da cultura escrita: estamos falando dos livros. 

 

O ato de transportar o pensamento para uma das facetas de construção desta cultura, não poderia exaurir o leque de possibilidades do trajeto a ser percorrido. Como é sabido, para qualquer viagem privilegiam-se, com antecedência, certos caminhos e paradas, obrigando-se a abandonar outros. Este é um texto-guia para um pequeno vaguear e, em sendo assim, por falta de “tempo”, “espaço” ou oportunidade, não se poderá alongar em demasia o tema. Também, pelas mesmas razões, não se pretende realizar um estudo para abarcar a história da escrita ou a história do livro. Sugerimos, que esta pequena narrativa seja feita em flashes, em flagrantes de cenas ou de certos momentos que esclareçam, pela sua peculiaridade, um pouco dessa longa trajetória da cultura escrita. 

 

Essa deambulação da memória começa no tempo presente, perante um “monumento” que estimula o pensamento a recuar ao passado: o prédio da Biblioteca Nacional, localizado na avenida Rio Branco, centro da cidade. O edifício é imponente; escadarias e arcos guardam a entrada que dá acesso ao hall principal, nele se encontram esculturas em mármores, luminárias, tapetes vermelhos, objetos que indicam requinte e que condizem com uma certa aliança feita entre as idéias de culture(2), de saber e de “poder”. Contudo, mais do que isto, a suntuosidade deste ambiente demonstra a importância do tesaurus que ali se guardam. E que tesouros se preservam neste lugar? Uma resposta displicente confirmaria que ali se conservam livros, periódicos, manuscritos, obras raras... Porém, estes objetos guardam preciosidades que estão além da matéria em que foram confeccionados: do papel e da tinta, da impressão ou formato. Para além de sua materialidade, as riquezas que guardam são da ordem do espírito, dizem respeito à cultura, ao conhecimento dos homens, ao tempo-espaço onde foram criados, enfim, são representações do viver humano. Por esta razão, estes são objetos que ocupam dimensões além-eras, além-fronteiras, além-mares, além-mundos. Eles representam um certo ideal humano de eternidade ou de imortalidade.  

 

Leitura e Etnografia

 

Encontro-me na Divisão de Obras Raras e aguardo um livro que desejo consultar, que me será trazido por um dos responsáveis por esta tarefa. Esta bela sala está localizada na parte central do prédio, o piso é em tábuas corridas, as mesas redondas em madeira encerada. Enquanto espero, observo o belíssimo vitral que ocupa a abóbada mais alta e central do teto. A luz do dia ressalta a beleza dos vidros trabalhados e coloridos que ajudam a iluminar a sala para a leitura. Outrora, quando não havia luz elétrica, e as chamas das velas representavam perigo para os livros, os copistas trabalhavam junto às janelas aproveitando a claridade do dia para executar sua função.

 

Treliças de madeira, de inspiração oriental, separam o local onde ficam os leitores daquele onde se guardam as obras antigas, às vezes, antiqüíssimas. É deste espaço no presente que me reporto no tempo observando esta sala de leitura. O livro que desejo consultar foi impresso no século XVI. Mesmo antes desse tempo, muitos foram os esforços para a preservação e divulgação do conhecimento.   

 

Em outras épocas era grande o sacrifício para aqueles que escreviam e para os que liam. Os manuscritos eram copiados com disciplina, primeiramente pelos monges e depois, pelos copistas das universidades, profissionais que se empenhavam na árdua tarefa de reproduzir escritos. Cada obra significava um saber que não se poderia correr o risco de perder e esta foi uma das primeiras razões para se copiarem manuscritos de autores clássicos. Outras razões surgiram com o tempo, por exemplo, o comércio dos livros e o prestígio, vinculado a posição social daqueles que podiam pagar para deter (e em alguns casos reter) conhecimento, informação e, conseqüentemente, poder. 

 

É importante ressaltar que uma das marcas da cultura ocidental moderna é a de divulgar conhecimento, preservá-lo, mas também, comercializá-lo. Os esforços de gerações em gerações, com o intuito de propagar e cuidar do saber permitiu, de certa forma, a difusão e supremacia dessa cultura. Outra maneira notória de obter superioridade foi através das guerras, mas não é sobre este tipo de domínio que desejamos tratar no texto em questão, esta é uma outra história. Paul Chalus(3), disse que “em cinco séculos a face do mundo foi transformada pela ‘civilização do livro’”, disse ainda, que “os homens fizeram os livros e os livros por sua vez fizeram os homens” (Febvre & Martin, 1992:10). O que se deseja, principalmente, destacar diz respeito ao fato de que a difusão de idéias, de costumes e de hábitos pela escrita e pela leitura, constituiu os alicerces da razoável preponderância da civilização moderna ocidental sobre outras culturas. Além disso, se quer demonstrar como esse predomínio se construiu, e se constrói, através de um longo processo de práticas de divulgação culturais.        

 

Na Idade Média o scriptorium, ou escritório, eram ateliês onde trabalhavam os copistas. Os copistas monásticos exerciam sua função como tarefa ascética, trabalhando muitas horas com disciplina e atenção; deve-se a estes homens a maior parte do que resta da herança literária clássica. 

 

Pela ordem e funcionamento do scriptorium era responsável o armarius, também conhecido como notarius, ou ainda, como bibliothecarius ou precantor. Este funcionário estava incumbido por zelar e coordenar todas as tarefas do processo de execução das cópias e iluminuras. Ex authentico libro. Dele exigia-se dedicação, paciência e grande sabedoria. Ele é quem confrontava, palavra por palavra, linha por linha o modelo (exemplar) e sua cópia; era também o responsável pela correção das falhas e do preenchimento do texto caso percebesse faltas por parte daqueles que copiavam. 

 

Mais tarde, as universidades contrataram escribas ou copistas para que alunos e professores tivessem às mãos obras clássicas, obras de referências e de comentários. As universidades precisavam dispor de uma biblioteca e dos copistas para que se tornassem acessíveis os livros. O ensino oral, o exercício da memória, e as notas de sala de aula, eram de extrema importância para os estudantes; contudo, estes necessitavam de um número mínimo de “obras de base” para seus estudos. 

 

Existiam também oficinas onde artesãos copiavam as obras por menor preço e de forma mais “rápida”, isto se remetermos o leitor aos padrões de tempo e de circulação da época.

 

O aparecimento e o desenvolvimento das universidades, em fins dos séculos XII e início dos XIII, fizeram surgir um outro tipo de público leitor que não se restringia aos clérigos estritamente vinculados às ordens monásticas. Formaram-se pouco a pouco profissionais dos livros: livreiros, copistas, escritores; que poderiam ser clérigos ou leigos. Estes profissionais gozavam de certo prestígio, estavam isentos de alguns impostos, mas sujeitos à regulamentação de seus ofícios. Eles dependiam das autoridades universitárias e não trabalhavam em seu proveito próprio, executavam uma forma de “serviço público” sujeito à taxação das cópias e controle da circulação dos exemplares ou do que se instituiu chamar, da pecia

 

A pecia era feita com uma pele inteira de carneiro ou de bezerro que se dobrava duas vezes resultando em um caderno de oito páginas e que servia, também, como unidade de trabalho e de preço.

 

As universidades exerciam um rígido controle intelectual e econômico sobre a circulação dos livros. Na figura dos stationarii, isto é, dos profissionais responsáveis pela revisão e inspeção das cópias, esses centros de divulgação do conhecimento atuavam sobre a qualidade da reprodução feita para que não se desvirtuasse ou se perdesse o sentido da obra. Este profissional era também responsável pelo empréstimo do exemplar a ser reproduzido, além disso, tinham a “obrigação de alugá-lo a todos aqueles que o desejassem” (Febvre & Martin,1992:29). 

 

Para se escrever um livro como o conhecemos, surgido no final do século XV início do século XVI, foi preciso desenvolver e ampliar a indústria do papel. Antes se escrevia em argila, em papiro, em cascas de árvores, em pergaminhos feito de pele de carneiro, de velino(4), de cabritos etc. Desde o século XII que as peles preparadas tornavam-se tão finas como o papel que, então, se iniciava a utilizar. O papel substituiu o pergaminho porque era mais barato e mais leve, facilitando o manuseio e o transporte dos livros embora o pergaminho fosse ainda de melhor qualidade e mais durável. 

 

As fabricas de papel surgem na Itália e o uso deste produto se espalha por cidades da França, da Alemanha, da Espanha, dos Países-Baixos, da Suíça; elas instalam-se, freqüentemente, junto às Universidades e com o incentivo do Estado. A princípio, o papel era feito de trapos e o comércio destes panos velhos mobilizava muitas pessoas, este ofício de procurar e reunir a maior quantidade possível de panos era desempenhado pelos trapeiros

 

Logo a procura e o uso demasiado dos panos tornou-o escasso; faltava matéria prima para a confecção do papel. Nestes momentos significativos, a cultura, através do desenvolvimento das técnicas, substitui certos tipos de materiais e usos por outros. Além disso, aprimoram-se constantemente as condições de fabricação do produto. A substituição das técnicas e das matérias primas impõe, muitas vezes, um longo processo de atividades e de descobertas a serem testadas, provadas e aceitas pelas práticas dos homens. Este movimento de ampliação e busca de novos meios, novas maneiras de se fazer, requer que se busquem, sempre, alternativas. Foi desta forma, que o uso do papel feito de trapos, ao mesmo tempo, que seu longo processo técnico de transformação, foi substituído pelo uso do papel fabricado a partir da madeira. 

 

Aproximadamente do século XIV ao século XIX as pessoas trabalharam para mudar tanto a matéria prima como as técnicas de fabricação do papel. Fizeram-se experiências com variadas espécies vegetais, tais como palmeiras, aloés, urtigas, amoreiras, entre outras e, como se disse, os processos de fabricação estavam sendo aperfeiçoados. Por toda a Europa espalharam-se batedores, ou fábricas de papel, este era um grande e lucrativo negócio. Por exemplo, para se ter idéia da honra de se fazer parte da corporação de paupeleurs em Paris, basta dizer que esse título de papeleiro juramentado da Universidade (de Paris) era cobiçado por muitos negociantes, porque representava uma espécie de título de nobreza; além das vantagens de isenção de impostos e outros que as universidades lutavam por preservar.          

 

O que está sendo dito sobre a indústria do papel faz sentido para realçar que ele é a matéria prima com que se escrevem os livros. Durante muito tempo foi, exclusivamente, no papel e através da escrita, em sua forma manuscrita e impressa, que se divulgaram grandes descobertas, acontecimentos marcantes, éditos, textos oficiais etc. Assim, por meio dele se divulgavam ações e conhecimentos. Desta forma, não se pode deixar de lembrar do papel na cultura do impresso, ou seja, na cultura da leitura e do escrito. Além disso, o que deseja, principalmente, destacar é que todo este processo desde o aperfeiçoamento do papel, da “criação” de formas diferenciadas de livros, das mudanças nos hábitos de ler e de escrever, da utilização de outros meios tecnológicos, como hoje se vê, tudo isto, são conquistas de uma civilização, são esforços das culturas.  

 

A cultura do impresso movimenta um mundo. A confecção de um livro e a rede de divulgação do saber envolvia/envolve o trabalho de muitos: escritores, copistas, bibliotecários, revisores, livreiros, papeleiros, iluminadores, encadernadores, impressores, editores, divulgadores ou comerciantes. Atualmente, o impresso eletrônico dispõe de digitadores, programadores visuais e outros profissionais da informática. 

 

Com o intuito de pontuar algumas questões, cabe não esquecer que a cultura nem sempre foi escrita. Também a leitura e a escrita não são práticas que se manifestaram da mesma maneira em outros tempos ou que se manifestam, sempre, como práticas concomitantes. Em alguns momentos desse processo de “invenção” da leitura e da escrita, poucas pessoas liam; em outros, uns liam e não escreviam. Este, por exemplo, era o caso de algumas mulheres que podiam ler, mas não podiam ter a capacidade de saber escrever, em virtude de uma certa tradição de costumes e de comportamentos que realçavam a predominância masculina. 

 

Leitura e escrita determinam práticas de poder diferenciadas. A leitura de um texto é uma prática que impõe autoridade. O leitor obedece, de certa forma, a uma ordenação que lhe impõe previamente o autor a partir de sua escrita. Neste sentido, há uma ordem, uma disciplina a ser obedecida. A escrita, pelo contrário, possibilita a busca por uma liberdade — patriarcal, matrimonial ou familiar — da qual não se desfrutava naquela ordem social. A escrita comunica e permite questionar a ordem vigente para escapar das opressões a que estão sujeitos certos indivíduos em diferentes contextos culturais. 

 

Lia-se em voz alta e difundia-se o saber para aqueles que não sabiam ler. Hoje, a prática da leitura silenciosa, que surgiu nos monastérios na Idade Média, é norma cultural para se ler em público e tornou-se um hábito que faz parte do cotidiano dos leitores. Desta forma, uma prática minoritária em outros tempos se transforma em ação comum. A capacidade de ler silenciosamente aponta para a transformação de uma prática cultural e, além disso, demonstra a importância da leitura como símbolo de inserção social e de valorização na cultura do impresso. 

 

Leitores silenciosos são indivíduos que aprimoraram sua prática de ler e que são capazes do entendimento de um texto para si. Ao contrário, muitos, mesmo que participantes da cultura escrita, não conseguem “desvendar” um texto “silenciosamente”. É por isto que necessitam ler em voz alta, ou a meia voz, para compreender o que estão lendo.

 

Como já se adiantou, as transformações nas práticas de leitura e de escrita demonstram a importância do ato de ler e de escrever para a constituição, difusão e supremacia da cultura ocidental sobre outras culturas. Esta importância é de tal ordem que desde o século XVI se organizam espaços que permitam conservar seu patrimônio escrito: esses lugares são as bibliotecas. Contudo, nem sempre as “bibliotecas” foram edifícios “mas coleções de autores, de títulos, de textos”. Por exemplo, nos dias atuais se consolida uma outra prática de preservar o patrimônio escrito, por meio das infovias e digitado em textos eletrônicos resguardando esse patrimônio nas bibliotecas virtuais. Como se sabe, esses projetos disponibilizam conhecimento através das novas tecnologias independentemente do lugar onde o usuário esteja. Entretanto, não se deve concluir que estes novos meios de divulgação da cultura estejam disponíveis para a grande maioria das pessoas. Desta forma, as novas tecnologias não são capazes de abarcar o “todo”. O “mundo” do patrimônio escrito encontra-se, ainda, heterogêneo em suas formas de produção, de divulgação e, principalmente, de acesso dos homens ao saber.   

 

História, Memórias e Mudança Cultural

História “é o que fazem as pessoas” e, de acordo com o historiador Paul Veyne (1982), o que elas fazem é simplesmente partilhar “da quase-totalidade de nossos comportamentos e da história universal”. História é movimento de homens criando, difundindo e preservando saberes. 

 

A ciência, a que damos o nome de história, diz respeito às práticas que as culturas compartilham ao longo do tempo. Daí a importância dos livros, das bibliotecas e daqueles que preservam o saber, porque, em verdade, a maneira como cada um de nós sente, percebe e sabe nos dias atuais faz parte do arsenal de conhecimento e de experiências acumuladas pela cultura. O que sabemos hoje faz parte da memória coletiva e, na sociedade ocidental, ela se guarda e se transmite, principalmente, pelas práticas da escritura.  

 

É preciso atentar para dois fatos: em primeiro lugar, que a preservação da nossa cultura é marcada pela divulgação das idéias em escritos, depois, que esta prática não é universalmente válida ou comum a outras culturas e, ainda, que mesmo esta divulgação não se deu da mesma maneira em outros períodos do tempo. 

 

As culturas orais preservam suas tradições, por exemplo, através dos cantos, dos mitos narrados de geração a geração, ou através de rituais sagrados, sendo estas, também, formas de divulgação e de representação sociais.  

Práticas culturais de um tempo podem permanecer em outro, ou podem ser modificadas, ou mesmo remodeladas, isto é, atualizadas no tempo. Neste sentido, as práticas culturais tradicionais podem coexistir com as novas; assim, modernas tecnologias coexistem com “antigas”. 

 

Acredito ser este o caso do tempo em que vivemos, tempo de transição, onde a tecnologia surge modificando hábitos, maneiras de viver, de aprender e de representar o mundo. Mas se hoje nos deparamos com este sentimento de mudança, podemos afirmar que outros homens em outras épocas também compartilharam de sentimentos de transição que foram despertados por novas experiências, por novos saberes e/ou novas tecnologias.  Através do conhecimento guardado nos livros e na forma de preservação da memória coletiva que as bibliotecas representam, podemos descobrir, por exemplo, o que sentiam os homens do passado diante das grandes mudanças ocorridas em suas épocas.  

 

Como afirmamos anteriormente, em qualquer tempo, tecnologias causam transformações: umas mais, outras menos. Nos dias atuais observam-se significativas mudanças que ocorrem na sociedade a partir das tecnologias digitais; isto porque estas (tecnologias) impõem mudanças decisivas no que diz respeito à ordem de significação e re-significação de hábitos na civilização ocidental. Entre estes hábitos podem-se destacar, por exemplo, as práticas de leitura, de difusão do conhecimento e de comunicação. Neste sentido, o debate sobre o lugar do livro no mundo das técnicas virtuais se apresenta e sobre este tema faremos alguns breves comentários. 

 

Vamos então, reconsiderar rapidamente algumas questões destacadas anteriormente. Dissemos que a cultura ocidental é marcada predominantemente pela troca, difusão e preservação do conhecimento e das experiências humanas, através das práticas do escrito. Paul Chalus diria que através do escrito “o pensamento pode ser transmitido através do tempo e do espaço” (Febvre & Martin, 1992:10). Assim, os livros são os maiores representantes dessa cultura das letras que se desenvolve na Europa, a partir do século XVI. Ressaltando que objetos, saberes e tecnologias, são legados herdados pelas culturas e redimensionados através dos tempos.  

 

Na Antigüidade, os livros eram em formato de grandes rolos que se liam em pé e que se manejavam com as duas mãos e, como era preciso manejá-los com as duas mãos, era impossível ler e fazer anotações ao mesmo tempo, uma prática muito comum em nossos dias. O livro, da maneira que conhecemos começa a ser “gerado” desde a metade do século XIII e, como se disse, sua apresentação no formato de hoje surge no final do século XV início do século XVI. 

 

O aparecimento do livro representou um grande acontecimento que mudou definitivamente a face do mundo; transformando-se em um dos mais poderosos instrumentos de penetração, irradiação e domínio da cultura ocidental. O livro quando passa a ter um formato que pode ser manuseado, trocado, transportado torna-se um eficaz meio de comunicação e de difusão de idéias. Neste sentido, a escrita representa, e a história facilmente o confirma, uma das formas mais ativas de domínio sobre o mundo. 

 

O domínio de que se fala é o da divulgação das idéias, da cultura textual que hoje se fortalece através das novas tecnologias. Por exemplo, nas telas dos computadores há muitos textos, e existe uma possibilidade certa de uma nova forma de comunicação que se articula, agrega e vincula textos, imagens e sons.  

 

Como já se destacou, inovações tecnológicas trazem mudanças de hábitos culturais, que modificam tanto as maneiras de viver quanto as formas de representar o mundo. Assim, as tecnologias virtuais, criam práticas diferenciadas de leitura, de escrita e de comunicação; são os homens em busca de conhecimento, de comunicação e de preservação que movimentam a história. 

 

Na tela ou no papel a civilização textual prima por resguardar e divulgar idéias. Contudo, tanto na tela como no papel, existem os perigos dos excessos e do descontrole; por isso, a cultura dos livros, eletrônicos ou impressos, exige esforço para classificar, organizar, escolher e estabelecer meios de preservação do patrimônio cultural. Os tempos onde coexistem práticas e tecnologias diferenciadas causam certa agitação. Por isto, a citação de Roger Chartier (2001) responde, de certa forma, aos debates inquietos estabelecidos pela presença e preservação dos livros impressos diante das tecnologias virtuais. Desta forma, 

“ao mesmo tempo, que devem-se explorar e se controlar as novas possibilidades procuradas pela reprodução eletrônica dos textos, devem-se manter lugares em que a inteligibilidade da cultura do códice, do manuscrito ou do impresso seja sempre acessível, compreensível, como um mundo textual que ainda é nosso majoritariamente” (p. 147).

 

Bibliografia:

CHARTIER, Roger. Cultura Escrita, Literatura e História. Ernani Rosa. Porto Alegre: Artmed, 2001.

FEBVRE, Lucien & MARTIN, Henry-Jean. O Aparecimento do Livro. Fulvia M. L.Moretto e Guacira Marcondes Machado. São Paulo: Hucitec, 1992.

OLIVEIRA, José Teixeira. A Fascinante História do Livro. V. III, Rio de Janeiro: Kosmos, 1987. 

VEYNE, Paul. Como se escreve a história: Foucault revoluciona a história. Alda Baltar e Maria Auxiliadora Kneipp. Brasília: UnB, 1982.

NOTAS

1)Maria Cristina Gioseffi é doutoranda do PPG em Psicologia Social e Institucional no Departamento de Psicologia da UERJ, onde desenvolve estudos sobre Imaginário Cultural. Pesquisadora na Biblioteca Nacional de 1997 à 2001, nas Linhas de Pesquisa: Padre Antônio Vieira, Projeto Rio-Viajeiro e Projeto Biblioteca Virtual/Biblioteca Nacional. Atua nas áreas de Comunicação e Sociedade, História do Brasil, Tecnologia Educacional e Consultorias Iconográficas.  É autora do artigo: “Michel Maffesoli, estilística, imagem, comunicação e sociedade”. Logos, Rio de Janeiro, n. 6, 1997 e co-autora do capítulo A Companhia de Jesus. In: PEREIRA, Paulo. (Org.). Quinhentos anos de Brasil na Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro, 2000. GIOSEFFI, Maria Cristina da Silva; FLORES, Luiz Felipe Baeta Neves.

2) Como se sabe, uma certa visão de mundo vincula a idéia de cultura à de refinamento contrariando o pensamento antropológico de que cultura são manifestações dos costumes, hábitos e comportamentos de um povo.

 

3) Autor do prefácio à edição francesa do livro de Lucien Febvre e Henri-Jean Martin, O Aparecimento do Livro, São Paulo, Hucitec, 1992. Na época de escrita do prefácio era secretário-geral do Centre International de Synthése Historique.  

 

4) Bezerro natimorto.Volta

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