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Labirinto - Revista Eletrônica do Centro de Estudos do Imaginário

  

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Auto da Barca do Inferno: O discurso da equidade e da desigualdade sociais em Gil Vicente
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Sônia Veiga
Marília Novais da Mata Machado


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Primeiras Notas






CONSELHO EDITORIAL
Arneide Cemin
Ednaldo Bezerra Freitas
Valdir Aparecido de Souza

  

1. Introdução: teoria e método

Dentro de um programa que pesquisa o discurso da equidade e da desigualdade sociais (Deds) em construções fictícias e imaginárias de sociedades, analisa-se o livro Auto da barca do inferno, de Gil Vicente (1). Parte-se do pressuposto de que os vínculos de equidade e desigualdade que congregam e separam indivíduos refletem o lugar e a época em que ocorrem.

Obras literárias trazem informações sobre esses vínculos. Estudando-as, tendo em conta o contexto social-histórico que as produziu, pois elas surgem em lugares definidos e são endereçadas a leitores/interlocutores que compartilham a mesma comunidade discursiva e participam da mesma história coletiva, e tomando-as como textos que permitem uma análise do discurso, é possível buscar, nesses textos, o discurso e, indiretamente, os vínculos sociais, reais e imaginários, relativos à equidade e à desigualdade sociais.

Uma construção discursiva sobre um agrupamento social, além de falar sobre a sociedade que a produziu é, ao mesmo tempo, capaz de criar, sugerir e impulsionar outros arranjos sociais. De especial importância são as obras literária que persistem ao longo do tempo, como é o caso do Auto da barca do inferno, publicada pela primeira vez em 1517.

A pesquisa do Deds utiliza como referencial teórico-metodológico a noção de domínio social-histórico de Castoriadis (1982; 1987; 1999; 2007) que propõe a busca de significações imaginárias relativas a um objeto e, ao mesmo tempo, a investigação das múltiplas determinações que atuam sobre ele.

A coleta e o tratamento das informações seguem fundamentação teórica da análise do discurso. Os procedimentos analíticos são inspirados em Pêcheux (1990) e na descrição arqueológica de Foucault (1987) que acentuam, respectivamente, a importância das condições de produção do discurso e a relevância da formação discursiva, isto é, das condições históricas, econômicas, sociais, geográficas e culturais particulares que possibilitaram a elaboração, funcionamento, aparecimento e difusão da obra em estudo.

Análise do discurso é aqui definida como uma disciplina:

"cujo principal objeto é a ideologia e cujos procedimentos permitem avaliar um escrito ou uma fala a partir de leitura ou escuta cuidadosa, considerando não apenas o funcionamento da língua e suas características gramaticais, sintáxicas, léxicas e semânticas, mas também as condições em que o texto foi escrito ou falado e, para isso, coloca questões como: quem foi seu autor, por que o escreveu ou falou, para quem, que razões levaram à formulação daquele texto, que pressupostos estão subjacentes a ele, qual é o sentido dele, como é possível interpretá-lo? (Machado, 2008: 352)."

A pesquisa do Deds, em cada obra analisada, é operacionalizada seguindo-se as seguintes etapas: (a) Construção do corpus: a partir do texto original é construído um resumo que conserva o enredo, o encadeamento, as principais passagens e as mesmas palavras do autor, além de menções a instâncias de equidade e desigualdade sociais, resultando num dispositivo prático que permite releituras imediatas. (b) Definição dos procedimentos de análise: buscam-se realidades lingüísticas observáveis como palavras-pivô, verbos performativos, interrogações, ordens, pressupostos, diálogos, repetições, etc. Com esses dispositivos percorre-se, numerosas vezes, o corpus. (c) Identificação das condições de produção do texto: onde, como, por quem, em que circunstâncias ele foi produzido. Dados sobre o autor e sua época são buscados em enciclopédias, obras de referência, internet, biografias. (d) Identificação do deds no cruzamento das condições de produção com as significações imaginárias sociais encontradas.

No caso aqui apresentado, tomou-se como corpus a obra na íntegra, uma vez que ela é pequena, permitindo múltiplas leituras. Os principais marcadores utilizados foram nomes próprios, profissões e pronomes, especialmente os de tratamento.

2. A obra

Auto da barca do inferno é uma alegoria do juízo final. O autor a apresenta como auto moralizador, voltado à instrução e diversão. Foi escrita em versos rimados, basicamente em português, mas com muitas palavras latinas e castelhanas.

Combinação de teatro e poesia, a peça apresenta um único ato subdividido em dez cenas que correspondem às entradas dos diversos personagens. Passa-se em um ancoradouro no qual estão aportadas duas barcas, a do inferno e a da glória. O protagonista é o diabo, comandante da barca do inferno. Ele é tipo irônico, frequentemente engraçado, além de onisciente. Nunca se deixa enganar. Tem um ajudante e é sempre o primeiro a dialogar com cada um dos mortos. A barca da glória, ou do céu, é comandada por um anjo, muito sério e seco. Diabo e anjo julgam, denunciam e condenam os mortos. Com exceção do parvo e de quatro cavaleiros que tombaram lutando contra os mouros nas cruzadas, todos os outros são embarcados para o inferno.

O primeiro a entrar em cena, quando a maré ainda está alta, é o fidalgo D. Anrique, alegoria de uma nobreza orgulhosa tirana, opressora, soberba e presunçosa. Ele veste um manto de calda longuíssima e vem acompanhado por um pajem trazendo uma cadeira de espaldar alto. Convidado a entrar na barca do inferno, defende-se alegando ter indulgências plenárias e orações encomendadas. O anjo não o aceita, declarando que a calda e a cadeira são grandes demais para sua barca, que é pequena. Ele embarca para o inferno e seu pajem é enviado de volta à vida.

O segundo a entrar é um agiota (onzeneiro), que representa avareza, apego ao dinheiro, ganância, usura, agiotagem, onzena. Traz como bem terreno um enorme bolsão do qual não se desgruda. Alega ter dinheiro apenas para o barqueiro. O diabo o chama de “parente” (Vicente, 2006: 31) e o anjo o recusa, exclamando: “Ó onzena, como és feia e filha de maldição!” (Vicente, 2006: 33).

O terceiro é Joane, o parvo, figura simples, humilde, modesta, sem maldade. Fala como um jovem do povo e é um contraponto cômico. Quando percebe que está sendo convidado pelo diabo, lança-lhe os maiores impropérios. O anjo o aceita pela simplicidade e falta de malícia, mas o deixa no cais à espera de outros merecedores de entrar na barca do céu.

Em seguida, vem o sapateiro Joanantão, carregando avental e moldes. É um mestre de ofício, mentiroso, explorador, ladrão e falso. É recebido alegremente pelo diabo: “Santo çapateiro honrado! Como vens tão carregado?” (Vicente, 2006: 39). Defende-se se dizendo confessado e comungado, além de ter feito oferendas e ouvido muitas missas. Mas o diabo lhe lembra que na verdade é um excomungado, com trinta anos de ladroagem. O anjo alega não aceitar ladrões descarados nem carga tão grande.

Entram então Frei Babriel e sua namorada Florença. Ele representa a dissolução dos costumes do clero, luxúria, devassidão e falsidade. É figura alegre, mundana, que canta e dança. Traz espada, escudo, capacete. Dá uma aula de esgrima ao diabo. A fim de não entrar na barca do inferno, lembra que é cortesão, viveu a serviço da fé, rezou salmos e veste um hábito. O anjo nem sequer fala com ele. É o parvo que o afasta da barca da glória, perguntando-lhe se havia roubado a espada.

A sexta personagem é Brísida Vaz, uma alcoviteira. Ela representa a prostituição, exploração de jovens mulheres, relações interesseiras com a igreja. Traz 600 hímens postiços, três arcas de feitiços, três armários com mentiras, cinco cofres com loucuras, roubos, jóias, cobertas, colchas, um estrado – uma verdadeira casa móvel e jovens prostitutas. Para entrar no céu, sedutoramente afirma para o anjo ser uma mártir, ter criado meninas para os cônegos da Sé e ter convertido muitas virgens.

Chega o judeu Semirafá, descrito como mau e avarento. Ele tenta comprar a sua entrada na barca do inferno: “Passai-me por meu dinheiro.” (Vicente, 2006: 53). O diabo não quer recebê-lo e muito menos ao bode que ele traz às costas (2) e o encaminha à barca da glória. Mas o parvo o recebe com xingamentos, acusando-o de não cumprir as regras da igreja:

E ele mijou nos finados

n'ergueja de São Gião!

E comia a carne da panela

no dia de Nosso Senhor!  (Vicente, 2006: 55)

O judeu e o bode acabam embarcando de graça para o inferno: “Vós, Judeu, irês à toa, que sois mui ruim pessoa. Levai o cabrão na trela! (Vicente, 2006: 55-56).

Na oitava cena aparecem, um após outro, corregedor e procurador, o primeiro carregado de processos e o segundo de livros. Representam uma magistratura corrupta, fraudulenta, omissa, que aceita subornos e usa o poder judiciário em benefício próprio. Para fugir ao inferno, os magistrados rezam a Deus, apelam ao direito canônico e à jus magestatis, que torna imunes os representantes do rei. Boa parte da fala é em latim. O diabo argumenta também em latim. O anjo lhes explica: “A justiça divinal vos manda vir carregados porque vades embarcados nesse batel infernal”. (Vicente, 2006: 63).

Chega a seguir o enforcado, ainda com a corda em torno do pescoço. Acredita que o julgamento e castigo terrenos o livraram das penas do inferno. Mas a maré está cada vez mais baixa e o diabo o apressa a entrar. Ele nem sequer procura o anjo.

Na cena final, entram cantando os cruzados. Vão prontamente para a barca da glória, pois, tendo morrido em combate, têm direito ao céu, por decisão do papa. O diabo os chama, mas eles respondem: “Quem morre por Jesu Cristo! / não vai em tal barca como essa!” (Vicente, 2006: 70). São recebidos pelo anjo e embarcam.

3. O autor e sua época 

Gil Vicente, considerado o maior representante da literatura renascentista portuguesa antes de Camões, nasce em Portugal, não se sabe se em Lisboa ou em Guimarães de Barcelos, em 1465 ou 1466, nos últimos anos da Idade Média, início do Renascimento, época de transição do feudalismo ao capitalismo. Não se conhece sua origem social nem os trabalhos que executou antes de se tornar dramaturgo conhecido. Não se sabe se um importante ourives de seu tempo era ele próprio ou um homônimo. Morre provavelmente em 1537, em lugar ignorado.

Outras informações, relacionadas à sua época e a seu respeito são mais seguras (3). Em 1502, durante o reinado de Manuel I, Gil Vicente está na corte portuguesa, trabalhando como dramaturgo. Organiza espetáculos para festejar nascimentos, casamentos, recepção real e comemoração de datas religiosas cristãs como Natal e Páscoa. Trabalha para D. Leonor, viúva D. João II (1455-1495), que reinara entre 1481 e 1495.

Essa proximidade do trono possivelmente favorece a realização e a sobrevivência da obra do dramaturgo, além de ditar os rumos que ela toma. A coroa portuguesa vive então anos de riqueza. Detém o monopólio do comércio de ouro, escravos e marfim no golfo da Guiné, costa oeste africana. Os lucros desse comércio impulsionam as explorações marítimas visando às Índias orientais. Em 1488, naves portuguesas chegam ao Oceano Índico.

D. João II apóia-se politicamente na burguesia mercantil e em seu braço popular, cuida de preservar os bens da coroa, centraliza o poder e luta contra o predomínio da aristocracia. Morre sem herdeiro, nomeando em testamento, para o trono, D. Manuel (1469-1521), seu cunhado, irmão de D. Leonor.

O novo reinado estende-se de 1495 a 1521. Para Portugal, esse é um período importante e de grande poderio. São abertas rotas marítimas para a Ásia, o que incrementa o comércio de cravo, pimenta-do-reino e outras especiarias. Navios portugueses chegam a Malagar (1498), ao Brasil (1500), a Málaca (1511), às ilhas Moluscas (1512). Arquipélagos no oceano Atlântico e no Golfo da Guiné tornam-se possessões de Portugal. São abertos postos comerciais nas costas leste e oeste da África e bases fortificadas a leste, nas praias do oceano Índico e no arquipélago da Malásia.

D. Manuel I continua a política de centralização de seu antecessor. Tem controle absoluto sobre o reino, faz reformas judiciárias, consolida vice-reis, delimita privilégios da nobreza. Em 1496, determina que judeus não convertidos ao catolicismo sejam exilados. Morre em 1521, ano em que estabelecera as Ordenações Manuelinas.

 O apogeu e início do declínio do império português se dão sob D. João III (1502-1557), que reina de 1521 a 1557. É o rei responsável pela criação do Tribunal do Santo Ofício, em Portugal, em 1547. Sob D. João III, Gil Vicente continua a serviço da realeza.

Era, pois, nesse contexto, que o dramaturgo criava suas peças, para a rainha e para o rei. Em 1502, tem-se notícia de sua primeira obra, Monologo del vaquero, escrita em castelhano e apresentada na câmara de D. Maria de Castela, esposa de D. Manuel, para comemorar o nascimento de D. João III. Do mesmo ano, há o Auto pastoril castelhano, que celebra o Natal. Segue-se em 1503 Auto dos reis magos e Auto da sibila Cassandra. Em 1504, Auto de São Martinho, em 1508 Auto de los cuatro tiempos e Auto da Alma, em 1510 Auto da fé, além de muitos outros, totalizando 46 peças. 

Escreve com igual facilidade em português e espanhol. Sua obra é influenciada pelo teatro primitivo, comédias e romances de cavalaria, sintetizando tradições medievais do teatro, o que é atestado pela “religiosidade, o uso de alegorias, o uso de redondilhas e a não-obediência às três unidades do teatro clássico” (TUTIKIAN, 2006: 8). Mas Gil Vicente abre-se, também, para os tempos modernos, mostrando a vida de Portugal, tanto de Lisboa quanto do meio camponês, seus costumes, folclore, linguagem. Muitos personagens são gentes do povo, da época.

A diversidade é grande: narrativas bíblicas, vidas de santos, alegorias religiosas, farsas episódicas, autos pastoris e narrativos, fantasias alegóricas, farsas, sátiras. Os críticos dividem as peças em três grupos: autos com enredo religioso; tragicomédias com enredo patriótico, mitológico ou de cavalaria; comédias e farsas de assunto popular.

A obra prima é a trilogia de sátiras, que inclui os autos da barca do inferno (1516), da barca do purgatório (1518) e da barca da glória (1519). O Auto da barca do inferno é criação imaginária que incorpora diversos traços e acontecimentos da época.

Em primeiro lugar, a peça deixa evidentes suas raízes medievais. Assim, embora a primeira cruzada tenha se iniciado em 1095 e a última tenha terminado em 1270, dois séculos e meio antes da peça, as almas salvas são de quatro cavaleiros que morrem lutando contra os infiéis. Eles espelham as numerosas tentativas de colonização cristã o Oriente Médio, ainda presente nas intenções da realeza e que só chegaria ao fim em 1523 (ARRUDA; PILETTI, 1994), quando as rotas comerciais estavam consolidadas. Além dos cruzados, duas outras figuras importantes do mundo feudal – nobreza e clero – fazem-se presentes. Gil Vicente satiriza seus costumes e hábitos. Os nobres são representados pelo fidalgo presunçoso, acomodado, alienado da vida do povo e o clero pelo frade mundano e moralmente degradado. O dramaturgo nada tem a perder com essa sátira, escrita para governantes reais partidários do absolutismo que tentavam, com relação à nobreza, reduzir seu poder e influência ao mínimo e, com relação ao clero, subordiná-lo aos interesses da coroa.

Em segundo lugar, o período de transição para a idade moderna também se evidencia na presença de artefatos do cenário e dos diversos outros personagens que abrangem a sociedade portuguesa da época. Assim, as barcas e seus comandantes, embora inspirados no barqueiro Caronte que, na Divina Comédia de Dante Alighieri, do séc. XIV, conduz as almas até o reino dos mortos, têm tudo a ver, também, com as navegações que ocorriam. As figuras do corregedor e do procurador corruptos e fisiológicos, voltados para seus próprios interesses, espelham e criticam os magistrados atuantes em Lisboa. Os primeiros sinais do capitalismo e do surgimento de uma hoje denominada burguesia comercial, então em seu nascedouro, aparecem na figura do sapateiro ladrão, caricatura do mestre de ofício que tinha sob suas ordens oficiais diaristas, antecessores dos assalariados modernos, e aprendizes sobre os quais tinha poder quase ilimitado. Acrescem-se os tipos populares, como as figuras citadinas de homens e mulheres do povo que mantêm trocas com os extratos sociais mais ricos da sociedade, explorando as camadas mais pobres, como o onzeneiro e a alcoviteira. Outra figura conterrânea é o parvo, espécie de alter ego confesso do autor, que o apresenta em outras peças como seu porta-voz, isto é, como porta-voz de um homem simples, do povo, talvez um camponês. Finalmente, a figura do judeu rico e avaro expressa o anti-semitismo permeando a sociedade e seus governantes que exigiam dos judeus a conversão, em nome da prevalência da religião católica, tida como superior e única verdadeira, e, no limite, depois de instalado o Tribunal do Santo Ofício, perseguiam e condenavam o judeu não convertido.(4).

Interessante observar que cada personagem tem uma fala própria, sua linguagem refletindo e apontando seu extrato social, o que facilita sobremaneira a análise do discurso da equidade e da desigualdade sociais presente no Auto da barca do inferno.

4. A análise do texto

A análise foi feita sobre um corpus de 15 páginas, 4723 palavras, 22758 caracteres sem espaços, construído a partir da edição L&PM (Vicente, 2006). Ele inclui o texto integral de Auto da barca do inferno.

A breve apresentação da peça revela não apenas a religiosidade que a fundamenta, mas também seu caráter maniqueísta, como se comprova na seqüência discursiva:

Primeiramente, no presente auto, se fegura que, no ponto que acabamos de espirar, chegamos subitamente a um rio, o qual per força havemos de passar em um de dous batéis que naquele porto estão, scilicet, um deles passa pera o paraíso e o outro pera o inferno; os quais batéis tem cada um seu arraiz na proa: o do paraíso um Anjo, e o do inferno um Arraiz do inferno e um Companheiro. (Vicente, 2006: 21)

Essas duas características – religiosidade e maniqueísmo – estruturam a obra e o discurso da desigualdade social nela presente (não foi possível detectar um discurso da equidade). De um lado está o bem, o céu, o anjo; de outro lado o mal, o inferno, o diabo. O bem coincide com o cumprimento das obrigações e ritos da igreja católica e o mal com os vícios, os pecados contra a igreja, o apego aos bens terrenos e a adoção de outro credo que não o cristão. Os diferentes personagens estão maniqueistamente encaixados de um lado ou do outro e escalonados segundo hierarquias rigorosas. A fala de cada um aponta claramente sua religião, seu ganha-pão e sua origem social, o que será demonstrado a seguir, por meio da análise da linguagem atribuída a cada um deles pelo autor que é, na terminologia de Bakhtin (2003: 279), o único “sujeito do discurso”. Os marcadores usados são os pronomes pessoais e de tratamento e os nomes e/ou profissões dos personagens, que deixam explícito, na obra, o lugar social ocupado por cada um, não havendo necessidade de uso de outros dispositivos para revelar o discurso da desigualdade social.

4.1. Hierarquia dos merecedores do céu

Do lado do bem, no alto da pirâmide, estão os quatro cavaleiros. São certamente de origem nobre, embora não primogênitos. Convém lembrar que as cruzadas surgiram com a crise do regime feudal, quando a terra se tornou escassa para ser dividida por todos os descendentes da nobreza, passando a ser herdada apenas pelos filhos mais velhos, os outros se tornando cavaleiros andantes, eventualmente saltimbancos. Chefiando cruzadas, em nome da fé, esses cavaleiros expandiam territórios e se enriqueciam (e às respectivas coroas) com saques e comércio (ARRUDA; PILETTI 1994). Paralelamente, tinham todas as benesses papais para a vida depois da morte. Veja-se o final da peça, com a fala dos cavaleiros, do diabo e do anjo:

Vêm Quatro Cavaleiros cantando, os quais trazem cada um a Cruz de Cristo, pelo qual Senhor e acrescentamento de Sua santa fé católica morreram em poder dos mouros. Absoltos a culpa e pena per privilégio que os que assi morrem têm dos mistérios da Paixão d'Aquele por Quem padecem, outorgados por todos os Presidentes Sumos Pontífices da Madre Santa Igreja. E a cantiga que assim cantavam, quanto a palavra dela, é a siguinte:

À barca, à barca segura,

barca bem guarnecida,

à barca, à barca da vida!

Senhores que trabalhais

pola vida transitória,

memória , por Deus, memória

deste temeroso cais!

À barca, à barca, mortais,

Barca bem guarnecida,

à barca, à barca da vida!

Vigiai-vos, pecadores,

que, depois da sepultura,

neste rio está a ventura

de prazeres ou dolores!

À barca, à barca, senhores,

barca mui nobrecida,

à barca, à barca da vida!

E passando per diante da proa do batel dos danados assim cantando, com

suas espadas e escudos, disse o Arraiz da perdição desta maneira:

Dia. — Cavaleiros, vós passais

e nom perguntais onde is?

Cav. — Vós, Satanás, presumis?

Atentai com quem falais!

Cav. — Vós que nos demandais?

Siquer conhecermos bem.

Morremos nas Partes d'Além,

e não queirais saber mais.

Dia. — Entrai cá! Que cousa é essa?

Eu nom posso entender isto!

Cav. — Quem morre por Jesu Cristo!

não vai em tal barca como essa!

Tornaram a prosseguir, cantando, seu caminho direito à barca da Glória, e,

tanto que chegam, diz o Anjo: 

Anjo — Ó cavaleiros de Deos,

a vós estou esperando,

que morrestes pelejando

por Cristo, Senhor dos Céos!

Sois livres de todo mal,

mártires da Santa Igreja,

que quem morre em tal peleja

merece paz eternal.

E assim embarcam. (Vicente, 2006: 68-70)

A palavra cavaleiro, escrita e repetida no texto como um pronome de tratamento, ainda hoje guarda o sentido de homem nobre, paladino, cavaleiro andante (5). Na sua polissemia, conserva a história das cruzadas. Os personagens são, portanto, nobres que entram numa barca enobrecida. A superioridade com que se dirigem ao diabo (“Vós, Satanás, presumis? Atentai com quem falais!” (Vicente, 2006: 69)) demonstra que falam (ou melhor, são colocados a falar) de um lugar superior, do lado do “Senhor dos Céos”. A segunda pessoa do plural é empregada por eles e pelos comandantes das duas barcas para tratá-los.

Outro personagem do bem é o parvo. Mas esse se encontra no sopé da pirâmide hierárquica. Não vai para o inferno, é certo. Mas também não há a menção de sua entrada na Barca do Céu. Talvez continue no purgatório do cais. Sua fala estampa sua inferioridade, mas também a sua filiação à igreja católica:

Dia. — De que morreste?

Joa. — De quê?

Samicas de caganeira.

Dia. — De quê?

Joa. — De cagamerdeira!

Má rabugem que te dê! (Vicente, 2006: 35)

Quando percebe que está sendo convidado pelo diabo a embarcar, destempera:

Çapateiro da Candosa!

Antrecosto de carrapato!

Hiu! Hiu! Caga no çapato,

filho da grande aleivosa!

Tua mulher é tinhosa

e há-de parir um çapo

chentado no guardanapo!

Neto de cagarrinhosa!

Furta cebolas! Hiu! Hiu!

Escomungado nas erguejas!

Burrela, cornudo sejas!

Toma o pão que te caiu!

A mulher que te fugiu

per'a Ilha da Madeira!

Cornudo atá mangueira,

toma o pão que te caío!

Hiu! Hiu! Lanço-te üa pulha!

Dê-dê! Pica nàquela!

Hump! Hump! Caga na vela!

Hio, cabeça de grulha!

Perna de cigarra velha,

caganita de coelha,

pelourinho da Pampulha!

Mija n'agulha, mija n'agulha!  (Vicente, 2006: 36-37)

O parvo procura a barca do céu e se apresenta como “Samica alguém” (Vicente, 2006: 37), isto é, como alguém, talvez (6). Sua fala é a de um joão-ninguém, que convence o anjo, mas não garante seu embarque imediato para o céu.

Joa. — Hou do barco!

Anjo — Que me queres?

Joa. — Queres-me passar além?

Anjo — Quem és tu?

Joa. — Samica alguém.

Anjo — Tu passarás, se quiseres; porque em todos teus fazeres

per malícia nom erraste.

Tua simpleza t'abaste

para gozar dos prazeres.

Espera entanto per i:

veremos se vem alguém,

merecedor de tal bem

que deva de entrar aqui. (Vicente, 2006: 37-38)

Quando o frade procura a barca do céu, o parvo o afasta com uma única frase: “Andar, muitieramá! Furtaste esse trinchão, frade?”  (Vicente, 2006:49); ao judeu ele pergunta: “Furtaste a chiba, cabrão?” (Vicente, 2006: 55), depois de dizer:

Azará, pedra miúda,

lodo, chanto, fogo, lenha,

caganeira que te venha!

Má corrença que te acuda!

Com os magistrados, o parvo usa seu latim popular: “Hou, homens dos briviairos, rapinastis coelhorum et pernis perdigotorum e mijais nos campanairos!” (Vicente, 2006: 63). Suas falas sugerem que tenha vivido entre ladrões o que o leva a tratar os outros nesses termos. Sua fala é hilariante justamente porque a ladroagem se aplica aos diversos personagens vicentinos do mal, ricos e pobres. Observa-se o uso do pronome pessoal tu em todas as circunstâncias: no tratamento recebido e dado pelo parvo.

4.2. Hierarquia dos merecedores do inferno

Do lado do mal aparece também uma hierarquia marcada pela religião e pela linguagem dos personagens. No topo está a nobreza, o clero e a magistratura; no centro, homens do povo mancomunados com os poderosos e no sopé os não católicos e os criminosos. Para os primeiros, predominam pronomes pessoais na segunda pessoal do plural e pronomes de tratamento que demonstram cortesia; para os segundos uma mistura de singular e plural, sobretudo da parte do diabo que, à menor deixa de arrogância ou soberba, resvala para o singular; para os terceiros, predominam tu, ti, teu.

O fidalgo é recebido com mordacidade pelo diabo: “— Ó poderoso dom Anrique, cá vindes vós? Que cousa é esta?” (Vicente, 2006: 23). Tanto com o diabo quanto com o anjo, D. Anrique usa todas as prerrogativas de sua posição terrena para tentar escapar do inferno (orações encomendadas, posição social, etc.). Vale notar que os dois comandantes empregam com ele fórmulas de cortesia como senhor, vosso senhorio; o diabo deixa passar alguns “tu” e o anjo conjuga “senhoria” com “fumosa”, isto é, presunçosa. No final, o próprio fidalgo reconhece que não tem como escapar: “confiei em meu estado e não vi que me perdia.” (Vicente, 2006: 27). Vejam-se as seqüências discursivas:

Fid. — Porém, a que terra passais?

Dia. — Para o inferno, senhor.

Fid. — Terra é bem sem-sabor.

Dia. — Quê? E também cá zombais?

Fid. — E passageiros achais

pera tal habitação?

Dia. — Vejo-vos eu em feição

pera ir ao nosso cais...

Fid. — Parece-te a ti assi.

Dia. — Em que esperas ter guarida?

Fid. — Que leixo na outra vida

quem reze sempre por mim.

Dia. — Quem reze sempre por ti?!..

Hi, hi, hi, hi, hi, hi, hi!...

E tu viveste a teu prazer,

cuidando cá guarecer

por que rezam lá por ti? (Vicente, 2006:23-24)

Anjo — Esta é; que demandais?

Fid. — Que me leixeis embarcar.

Sou fidalgo de solar,

é bem que me recolhais.

Anjo — Não se embarca tirania

neste batel divinal.  (Vicente, 2006:25)

Fid. — Para senhor de tal marca

nom há aqui mais cortesia?

Venha a prancha e atavio!

Levai-me desta ribeira!

Anjo — Não vindes vós de maneira

pera entrar neste navio.

Essoutro vai mais vazio:

a cadeira entrará

e o rabo caberá

e todo vosso senhorio.

Vós ireis mais espaçoso

Com fumosa senhoria,

cuidando na tirania

do pobre povo queixoso;

e porque, de generoso,

desprezastes os pequenos,

achar-vos-eis tanto menos

quanto mais fostes fumoso. (Vicente, 2006: 26)

Também o frade recebe tratamento especial, embora irônico, por parte do diabo (“vosso/a”, “reverendo”, por exemplo) e adota uma linguagem com expressões marcando seu lugar de religioso na estrutura social:

Dia. — Que é isso, padre?! Que vai lá?

Fra. Deo gratias! Som cortesão.

(...)

Dia. — Pois entrai! (...)

Essa dama, é ela vossa?

Fra. — Por minha la tenho eu,

e sempre a tive de meu,

Dia. — Fezestes bem, que é formosa!

E não vos punham lá grosa

no vosso convento santo?

Fra. — E eles fazem outro tanto!

Dia. — Que cousa tão preciosa...

Entrai, padre reverendo!

Fra. — Para onde levais gente?

Dia. — Para aquele fogo ardente

que nom temestes vivendo.

Frade — Juro a Deos que nom t'entendo!

E este hábito não me vai?

Dia. — Gentil padre mundanal,

a Belzebu vos encomendo!

Frade — Corpo de Deus consagrado!

Pela fé de Jesu Cristo,

que eu nom posso entender isto!

Eu hei de ser condenado?!...

Um padre tão namorado

e tanto dado à virtude?  (Vicente, 2006: 43-44)

Corregedor e procurador recebem tratamento respeitoso entre eles próprios e do diabo (“bacharel”, “doutor”, “senhor”, por exemplo) e mais comumente falam e são tratados na segunda pessoal do plural; quando se exaltam, exprimem-se em latim. Termos do dia a dia da profissão surgem na fala deles. Para medir forças, o diabo também emprega o latim:

Dia. — Ora, pois, entrai. Veremos

que diz i nesse papel...

Cor. — E onde vai o batel?

Dia. — No inferno vos poeremos.

Cor. — Como? À terra dos demos

há-de ir um corregedor?

Dia. — Santo descorregedor,

embarcai, e remaremos!  (Vicente, 2006: 57)

Cor. — Oh! Renego da viagem

e de quem me há-de levar!

Há 'qui meirinho do mar?

Dia. — Não há tal costumagem.

Cor. — Nom entendo esta barcagem,

Nem hoc nom potest esse.

Dia. —Se ora vos parecesse

que nom sei mais que linguagem...

Entrai, entrai, corregedor!

Cor. —Hou! Videtis qui petatis!

Super jure magestatis

tem vosso mando vigor?

Dia. — Quando éreis ouvidor

nonne accepistis rapina?

Pois ireis pela bolina

onde nossa mercê for...  (Vicente, 2006: 58)

Cor. — Confessaste-vos, doutor?

Pro. — Bacharel som... Dou-me ò demo!

Não cuidei que era extremo,

nem de morte minha dor.

E vós, senhor corregedor?

Cor. — Eu mui bem me confessei,

mas tudo quanto roubei

encobri ao confessor...

Porque, se o nom tornais,

não vos querem absolver,

e é mui mao de volver

depois que o apanhais.  (Vicente, 2006: 61-62)

Sapateiro, onzeneiro e alcoviteira são gente do povo que está, na escala social, abaixo da nobreza, do clero e da magistratura, mas se relaciona de alguma forma com os poderosos. O sapateiro emprega uma linguagem correta, mas grosseira. Trata anjo e diabo por “vós”, mas é tratado, sobretudo, na primeira pessoa do singular. A temática religiosa persiste assinalada pelas menções que o sapateiro faz às suas trocas com o céu. Sua profissão – a confecção de calçados – aparece ao citar diferentes tipos de couro para sapato (cordovão, badana, traquitana) e as formas que carrega. Vejam-se as seqüências discursivas:

Çap. — E para onde é a viagem?

Dia. — Pera o lago dos danados.

Çap. — Os que morrem confessados

onde têm sua passagem?

Dia. — Nom cures de mais linguagem!

Esta é a tua barca, esta!

Çap. — Arrenegaria eu da festa

e da puta da barcagem!

Como poderá isso ser,

confessado e comungado?!...(Vicente, 2006: 39)

(...)

Çap. — Quantas missas eu ouvi,

nom me hão elas de prestar?

Dia. — Ouvir missa, então roubar –

é caminho per'aqui.

Çap. — E as ofertas que darão?

E as horas dos finados? 

Dia. — E os dinheiros mal levados,

que foi da satisfação?

Cap. — Ah! Nom praza ò cordovão,

nem à puta da badana,

se é esta boa traquitana

em que se vê Joanantão! (Vicente, 2006: 40)

Çap. — Hou da santa caravela,

poderês levar-me nela?

Anjo — A carrega t'embaraça.

Çap. — Nom há mercê que me Deus faça?

(...)

Ora eu me maravilho haverdes por grão pejilho

quatro forminhas cagadas

que podem bem ir chantadas

num cantinho desse leito!  (Vicente, 2006: 41)

Entre os personagens da peça, o onzeneiro é quem emprega linguagem mais laica. Sua fala é correta, mas comercial e de alguém acostumado a regatear avaramente. Tanto o diabo (com exceções irônicas e superiores) quanto o anjo o tratam por “tu” e ele os trata por “vós”. Seu aparte com o fidalgo, a quem se dirige como a um superior, sugere que seus negócios de agiota incluem a nobreza. A enorme bolsa que carrega simboliza o trabalho que faz.

Dia. — Ora mui muito m'espanto

nom vos livrar o dinheiro!...

Onz. — Solamente pera o barqueiro

nom me leixaram nem tanto...  (Vicente, 2006: 31)

Onz. — Pera onde é a viagem?

Dia. — Pera onde tu hás de ir.

Onz. — Havemos logo de partir?

Dia. — Não cures de mais linguagem.  (Vicente, 2006: 32)

Onz. — Hou da barca! Houlá! Hou!

Haveis logo de partir?

Anjo — E onde queres tu ir?

Onz. — Eu pera o Paraíso vou.

Anjo — Pois cant'eu mui fora estou

de te levar para lá.

(...)

Onz. — Porquê?

Anjo — Porque esse bolsão

tomará todo o navio. (Vicente, 2006: 32)

Onz. — Houlá! Hou! Demo barqueiro!

Sabês vós no que me fundo?

Quero lá tornar ao mundo

e trazer o meu dinheiro.

 (...)

Dia. — Que te pês, cá entrarás!

Irás servir Satanás

porque sempre te ajudou. (Vicente, 2006: 33)

Entrando o Onzeneiro no batel, onde achou o Fidalgo embarcado, diz, tirando

o barrete:

Onz. — (...) Cá é vossa senhoria?

Fid. — Dá ò demo a cortesia!

Dia. — Ouvis? Falai vós cortês!

Vós, Fidalgo, cuidareis

que estais na vossa pousada?

Dar-vos-ei tanta pancada

com um remo que reneguês! (Vicente, 2006: 34)

A alcoviteira Brísida Vaz é quem chega mais bem equipada para continuar a exercer sua profissão. Sua linguagem, vulgar, é a da sedução com muitos toques de religiosidade. Anjo e diabo a tratam na segunda pessoa do singular (exceto nas primeiras falas do diabo) e como indivíduo de segunda categoria:

Brí. — A mor cárrega que é:

essas moças que vendia.

Daquestra mercaderia

trago eu muita, bofé!

Dia. — Ora ponde aqui o pé...

Brí. — Hui! e eu vou pera o paraíso!

Dia. — E quem te dixe a ti isso?

Brí. — Lá hei de ir desta maré.  (Vicente, 2006: 50)

Brí. — Barqueiro mano, meus olhos,

prancha a Brísida Vaz!

Anjo:— Eu não sei quem te cá traz...

Brí. — Peço-vo-lo de giolhos!

Cuidais que trago piolhos,

anjo de Deos, minha rosa?

Eu sô aquela preciosa

que dava as moças a molhos,

a que criava as meninas

pera os cônegos da Sé...

Passai-me, por vossa fé,

meu amor, minhas boninas,

olho de perlinhas finas!

E eu som apostolada,

angelada e martelada,

e fiz cousas mui divinas. (Vicente, 2006: 51)

Anjo — Ora vai lá embarcar,

não estês importunando.

Brí. — Pois estou-vos eu contando

o porque me haveis de levar.

Anjo — Não cures de importunar,

que não podes vir aqui.  (Vicente, 2006: 52)

O judeu é ainda mais maltratado, sendo o único com quem o diabo fala empregando apenas a primeira pessoa do singular. Para ser transportado, oferece dinheiro e se compara à alcoviteira:

Jud. — Eis aqui quatro testões

e mais se vos pagará.

Por vida do Semifará

que me passeis o cabrão!

Querês mais outro tostão?

Dia. —Nenhum bode há-de vir cá.

Jud. — Porque nom irá o judeu

onde vai Brísida Vaz? (Vicente, 2006: 54)

Supondo reconhecer, como atesta o emprego da palavra “senhor”, no fidalgo, já embarcado, uma figura de autoridade superior à do diabo, o judeu recorre a ele: “Ao senhor meirinho apraz? / Senhor meirinho, irei eu?” (Vicente, 2006: 54), ao que o diabo prontamente intervém, pois ninguém pode lhe tomar o lugar de comando: “E ò fidalgo, quem lhe deu... / O mando, dizes, do batel?” (Vicente, 2006: 54).

O enforcado emprega a segunda pessoa do singular e é tratado nela, com alguém inferior. Não é fácil analisar esse personagem pois, no seu caso, há diversas alusões a contemporâneos. Sua linguagem é permeada de religiosidade:

Dia. — Entra cá, governarás

atá as portas do Inferno.

Enf. — Nom é’ssa a nau que eu governo.

Dia. — Mando-t’eu que aqui irás.

Enf. — Oh! nom praza a Barrabás!

Se Garcia Moniz diz

que os que morrem como eu fiz

são livres de Satanás...

E disse que a Deos prouvera

que fora ele o enforcado;

e que fosse Deos louvado

que em bo'hora eu cá nacera;

e que o Senhor m'escolhera;

e por bem vi beleguins.

E com isto mil latins,

mui lindos, feitos de cera.  (Vicente, 2006: 65-66)

Finalmente, há que se lembrar dos personagens sem voz, certamente os mais inferiores: o pajem do fidalgo, a namorada do padre, as moças vendidas pela alcoviteira. No caso de Florença, a namorada de Frei Babriel, a mulher é reduzida a nada na fala do frade:

Como? Por ser namorado

e folgar com uma mulher

Se há um frade de perder,

com tanto salmo rezado?  (Vicente, 2006: 44)

5. Considerações finais

É grande a coincidência entre o texto de 1516 de Gil Vicente – Auto da barca do inferno – e a época em que ele foi escrito. Os diferentes personagens imaginários que retratam a sociedade portuguesa retratam também a coexistência de formações medievais e pré-capitalistas, as tensões entre adeptos do cristianismo e de outras religiões e entre partidários do poder régio absoluto ou não. Formações e tensões existiam então na sociedade tal qual instituída (imaginariamente, segundo Castoriadis (1982), embora com incidências concretas sobre a realidade).

Na busca do discurso da equidade e da desigualdade sociais, foram privilegiadas as formações imaginárias, ou, mais especificamente, as S.I.S.:

“Cada sociedade cria um magma de significações imaginárias sociais (escrevo, a partir daqui, S.I.S.) irredutíveis à funcionalidade, ou à “racionalidade”, encarnadas nas e pelas instituições e que constituem, a cada vez, seu mundo próprio (“natural” ou “social”). (Castoriadis, 1999: 18)”.

Mostrou-se que as mesmas S.I.S. estão presentes na sociedade retratada e na obra. A metáfora de um magma vulcânico, uma lava espessa e ígnea, é adequada para falar do amálgama de instituições como céu, inferno, deus, diabo, igreja, nobreza, clero, justiça terrena e divina, magistratura, ofício, prostíbulo, agiotagem, cavalaria andante, tudo isso formando um todo mais ou menos consistente e muito hierarquizado, como se viu na análise do texto.

Observa-se, entretanto, que o topo da hierarquia terrena – o rei – é astuciosamente deixado de fora. No que diz respeito ao reino do céu, Deus também está fora, substituído por um anjo. Gil Vicente escrevia para o rei e seu entorno e a esses procurava agradar.

Não se detectou um discurso da equidade social no texto. Ele é usualmente buscado, na pesquisa do discurso da equidade e da desigualdade sociais, com o uso da palavra-pivô igual e suas derivadas que, no corpus, aparece uma única vez.

Mas há um discurso da desigualdade, marcado na língua pelo uso de pronomes pessoais e de tratamento que, seguramente, refletem as relações existentes na sociedade portuguesa de então.

Esse discurso refere-se, em última instância, à superioridade imaginária, terrena e celeste, do cristão sobre o muçulmano e o judeu, do nobre sobre a plebe, do homem sobre a mulher. Os reflexos desse discurso estão vivos, no ocidente capitalista, cinco séculos depois de Gil Vicente.

Bibliografia

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CASTORIADIS, Cornelius. A instituição imaginária da sociedade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982. 418p.

_____. As encruzilhadas do labirinto / 2: Os domínios do homem. Tradução José Oscar de Almeida Marques; revisão técnica Renato Janine. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. 466 p.

_____. Feito e a ser feito: As encruzilhadas do labirinto V. Tradução Lílian do Valle. Rio de Janeiro: DP&A Editora, 1999. 302 p.

_____. Sujeito e verdade no mundo social-histórico. Tradução Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. 557 p.

FOUCAULT, Michel. A Arqueologia do Saber. 3a ed. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1987. 239p.

MACHADO, Marília N. M. Análise do discurso nas ciências da administração. In HELAL, Diogo H.; GARCIA, Fernando C.; HONÓRIO, Luiz C. Gestão de Pessoas e competência: teoria e pesquisa. Curitiba: Juruá Editora, 2008: 335-362.

PÊCHEUX, Michel. Análise automática do discurso (AAD-1969). In: GADET, F; HAK, T. Por uma análise automática do discurso. Campinas: Editora da Unicamp, 1990: 61-161.

TUTIKIAN,  Jane. Introdução: A criação dramática em Gil Vicente. In Vicente, Gil. Auto da Barca do Inferno. Porto Alegre: L&PM, 2006: 5-17.

VICENTE, Gil. Auto da Barca do Inferno. Porto Alegre: L&PM, 2006. 72p.

 Notas

(1) Nesta introdução, com adaptações, são usadas aproximadamente as mesmas palavras de outros artigos do projeto de pesquisa do discurso da equidade e da desigualdade sociais que adotam referencial teórico-metodológico igual.

(2) Nesta introdução, com adaptações, são usadas aproximadamente as mesmas palavras de outros artigos do projeto de pesquisa do discurso da equidade e da desigualdade sociais que adotam referencial teórico-metodológico igual.

(3) Foram consultadas: Enciclopédia Mirador Internacional, Grande Enciclopédia Larousse Cultural, Atlas da História do Mundo (Folha de São Paulo), Tutikian (2006), Arruda e Piletti (1994).

(4) Nas obras de referência consultadas, busca-se mostrar que Gil Vicente não era anti-semita (por exemplo, em Tutikian (2006: 56), encontra-se: “Apesar de ser contra a perseguição dos judeus, uma vez que queria que a conversão fosse pacífica, Gil Vicente traz para o auto o perfil popular do judeu, o do homem mal por ser avarento e negocista.”). Por causa de sua “defesa” do judeu, ele próprio foi alvo de perseguições, o que talvez explique seu desaparecimento nos anos que antecederam sua morte.

(5) Dicionário Aurélio.

(6) Nota 51 (Tutikian, 2006: 37).

Sobre as autoras:

Sônia Veiga é graduada em Letras e Pedagogia pela FAFI-BH e Psicologia pela PUCMG. É pós-graduada em Gestão de Recursos Humanos pela FGV e mestranda da FNH. É professora da Faculdade Novos Horizontes do curso de graduação em Administração. Ministra palestras diversas e promove minicursos em empresas e faculdades de BH. Ainda, atua com desenvolvimento gerencial.

Marília Novais da Mata Machado é Doutora em Psicologia pela Universidade de Paris Norte, Paris XIII e Mestre em Psicologia Teórico-Experimental pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Foi professora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Departamento de Psicologia, por onde se aposentou; pesquisadora do Projeto Horizonte, Faculdade de Medicina, UFMG; pesquisadora visitante na Universidade Federal de São João del-Rei, onde trabalhou na implantação do Lapip (Laboratório de Pesquisa e Intervenção Psicossocial), como bolsista da Fapemig (Fundação de Amparo à Pesquisa de Minas Gerais); consultora do Programa Pólos de Cidadania da Faculdade de Direito, UFMG. Atualmente é professora titular da Faculdade Novos Horizontes, Mestrado em Administração, onde pesquisa, orienta dissertações e leciona.
marilianmm@terra.com.br.

                                                        


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