|
Revista Eletrônica do Centro de Estudos do Imaginário
|
|
|
_______________________________________________________ Estrada de Ferro Madeira- Mamoré: Patrimônio e
Identidade social |
|||
Artigos Resenhas Biblioteca Entrevistas Primeiras Notas CONSELHO EDITORIAL Arneide Cemin Ednaldo Bezerra Freitas Valdir Aparecido de Souza |
Luanna
Candeira Macêdo[1] O
presente artigo tem como proposta de análise a Identidade social do porto
velhence através de suas representações sociais, o recorte metodológico
indicado pretende desenvolver esse estudo a partir da escolha de um patrimônio
material, a Estrada de Ferro Madeira-Mamoré (E.F.M.M). Como categoria de
análise, entenderemos patrimônio enquanto relações de “pertencimento” entre a
sociedade e um dado legado cultural, e identidade social enquanto sinônimo
dessas relações de “pertencimento”, estabelecidas em analogia à construção de
um imaginário coletivo e social. Antes de estabelecer o grau
de pertencimento e as representações sociais na construção da identidade social
do porto velhence, através do legado cultural da E.F.M.M, acredita-se oportuno elencar
alguns pontos importantes no que se refere à sua história regional. A E.F.M.M esteve interligada
a economia extrativa da borracha que impulsionou a economia amazonense e das
Colônias de Territórios (hoje Departamentos do Beni e Pando), situadas na
Bolívia, nos últimos decênios do século XIX, motivadas pela crescente demanda
do mercado europeu e norte-americano pela goma elástica. Como parte do acordo
estabelecido entre Brasil e Bolívia (Tratado de Petrópolis), em troca do
território acreano, o Brasil comprometia-se na construção de uma estrada de
ferro que ligasse as áreas produtoras bolivianas de goma elástica, tal como as
brasileiras, do alto madeira, no escoamento dessa produção para a exportação. (TEIXEIRA
& FONSECA, 2001) Após
frustrantes tentativas na construção da estrada de ferro, somente em 1907, com
a firma inglesa Madeira-Mamoré Railway Co. deu-se início sua construção. Assim,
com a finalização da E.F.M.M, em 1912, passaram-se apenas dois anos para
criarem o município de Porto Velho, que foi se constituindo a partir do pátio
da ferrovia e com os bairros que se originaram ao redor dele, surgindo a cidade
em 1914. Décadas depois, no governo do presidente Vargas, a ferrovia passa a
fazer parte do patrimônio nacional, através do processo de nacionalização.
(TEIXEIRA & FONSECA, 2001) A
respeito de patrimônio e
na perspectiva deste enquanto “pertencimento”, Mariely
Santana diz que são bens
herdados e que se remete a um legado do passado que chegam até
nós como
heranças. Entretanto, isso não quer dizer que eles se
reduzem a legados
transmitidos de uma geração a outra como um bem
estático, mas, ao contrário,
estão em constante construção,
recriação e apropriação, pois sua
permanência no
tempo e espaço resulta de estratégias e diálogos
que são travados no presente em
direção ao passado. (SANTANA, 2001:170). A busca pela valorização dos patrimônios culturais pode ser percebida desde a década de 1930, mas somente cinqüenta anos depois, com os critérios adotados pelo Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), é que foram feitas reavaliações mais categóricas e sistemáticas do que estava convencionado pensar sobre bens culturais para uma nova perspectiva das estratégias de preservação. Segundo
Maria Londres Fonseca, essas reavaliações partiam de pessoas vinculadas a
atividades modernas, como o desing, a indústria e a informática. Complementando
as inovações para o estudo de patrimônio, instituiu-se a utilização de uma nova
terminologia para essas políticas culturais – a representação cultural - que
assume a proposta de inclusão de manifestações culturais composta por todos os
grupos que compunham a sociedade brasileira, não se restringindo apenas aos
monumentos históricos, representantes de uma cultura oficial. (FOSECA, 2001:110-111) A
valorização do patrimônio pelo resgate da cultura, associada a uma política de
valorização, deve ser compreendida num contexto histórico onde as práticas do
turismo, a partir de 1980, assumiriam um papel de destaque nas economias
mundiais (BARRETTO, 2000). No que tange
ao Brasil, a redescoberta aos seus bens culturais pode estar facilmente
relacionada a esse fenômeno, daí a preocupação na restauração de museus,
centros culturais, centros históricos entre outros tipos de bens culturais, por
acreditar que esse “resgate” ou revitalização esteja patrocinando a busca ou
mesmo a construção de uma identidade social muitas vezes esquecida pela
comunidade portadora daquele legado cultural. Deste modo, são por essas
referências culturais estarem intimamente interligadas à construção de uma
identidade é que acabam por operar ressemantizações desses elementos que compõe
a representação coletiva a que cada membro de um grupo se identifica. Nessa
perspectiva, a valorização desses bens pressupõe sua melhor utilização pela
população e, principalmente, pelo setor turístico, que como já mencionado, tem
sido um grande motivador dessas práticas de resgate, além de movimentar um
importante setor das economias locais, inserido-as no contexto mundial das
economias de turismo. (BARRETTO, 2000) Ao
pensarmos a Estrada de Ferro Madeira-Mamoré dentro dessa panorâmica, acreditamos
que seja possível pensar em estratégias que assegurem a restauração do pátio da
estrada de ferro, e de todo seu acervo, além de utilizar seu espaço físico como
um potencial econômico e turístico, sem, contudo, agredir ou mesmo
descaracterizar a história e a memória regional. O
governo local, pela representação municipal, o
órgão do IPHAN, sediado no Estado,
tal como a Associação “Amigos da Estrada de
Ferro”, tem pautado debates e
idealizado projetos que viabilizem a revitalização da
estrada de ferro, como de
todo o acervo que a compreende (móveis, louças, fotos,
registros escritos,
maquinário, etc) e do pátio onde está localizada.
Entretanto, no que se refere à
utilização da estrada de ferro como um espaço de
lazer e potencial econômico,
tem surgido alguns problemas de ordem legal, financeira,
política e, sobretudo,
ideológico. Basta ressaltarmos o embate travado pelas
instituições municipais,
federais e associações presentes na capital que
não conseguem entrar em acordo
no que se refere a melhor maneira de direcionar o trabalho de
restauração e
conservação, como também otimizá-lo como um
espaço público de sociabilização
dos visitantes locais e turistas. É
pertinente considerar que a E.F.M.M, tal como qualquer outro patrimônio
material, não desfigura-se ou perde seu valor histórico por estar envolvido em
processos de restauração e revitalização de seu patrimônio. Entretanto,
negligenciar essas melhorias por acreditar que um bem material precisa
manter-se puro, intocável é condenar esse patrimônio a descaracterização e a
uma imensurável perda histórica pelo seu legado cultural. Além disso, é preciso
também perceber que muitas vezes as restaurações servem como incentivadoras na
transformação de áreas até então tidas como marginalizadas, tendo seus espaços
reaproveitados para o lazer e atividades ligadas ao turismo, que de forma
consciente contribuem tanto para mudar àquela realidade posta, como para
incentivar a economia local e fazer como que a população se reconheça nesse
processo de gestão de uma nova consciência identitária e patrimonial. Sobre
essa idéia, Barretto afirma que manter algum tipo de identidade, seja ela
étnica ou regional, parece ser essencial para que as pessoas se sintam seguras,
unidas por laços extemporâneos a seus antepassados, a um local, uma terra, a
costumes e hábitos que lhes dão segurança, que lhe informam quem são e de onde
vêm. (BARRETO, 2000: 46-47) No campo da historiografia, assuntos como
patrimônio, memória e identidade social foram aos poucos sendo abordados pela
Escola dos Annales. Para Peter Burke uma característica intrínseca dessa escola
consistia no envolvimento maior dos historiadores com assuntos que não
estivessem voltados exclusivamente aos acontecimentos políticos ou econômicos e
tentando estabelecer a partir de então um diálogo com outras disciplinas
através de novos campos de pesquisa, com suas temáticas, métodos e objetos de
estudo. (BURKE,1997) Para
Roger Chartier, a busca por temas dessa natureza se faz, sobretudo, a partir de
1980, onde se percebe uma mudança no próprio fazer historiográfico dos annales
que nesse momento renunciará alguns de seus métodos de trabalho, como a
descrição da totalidade social e o modelo braudeliano, que consistiam em
entender os funcionamentos sociais numa estrutura rigidamente hierarquizada
pelas práticas e temporalidades econômicas, sociais, culturais e políticas, por
um novo método que pudesse compreender e decifrar as sociedades pelas suas
relações e tensões, seja ele um acontecimento importante ou obscuro, pelos
relatos de vida, pelos estudos de indivíduos e pelas representações sociais,
espelho das relações que os indivíduos ou grupos fazem pelo emprego de sentido
ao mundo que eles pertencem. (CHARTIER,1991)
Através
da História Nova, mais especificamente, a História do Imaginário, os
historiadores começaram a abordar assuntos que não haviam sido explorados pelas
Mentalidades. Com a delimitação do (s) seu (s) objeto (s) de pesquisa,
direcionaram-se para o estudo das imagens produzidas pela sociedade que
abrangiam tanto as visuais, verbais e mentais. Para José D’Assunção Barros,
essas imagens estão em constante interação e incorporam sistemas simbólicos
diversificados sendo os responsáveis pela construção de representações
diversas. (BARROS, 2005) Relacionar
imagens e símbolos a representações diversas, como aponta Barros, é analisar
como um “bem cultural” pode e deve ser pensado e constituído a partir e/ou pelas
tensões, eleições e amálgamas que definem a identidade social e sua relação com
a memória. A História do Imaginário, sem
dúvida, vem lançando um novo olhar sobre assuntos dessa natureza, entre tantos
outros, aumentando, gradativamente, o seu nível de entendimento. A
partir dessa linha teórica, procuramos entender a estrada de ferro enquanto símbolo
de uma identidade social. Partimos da premissa que há uma apropriação, um
sentimento de pertencimento, desse patrimônio para a comunidade local na
construção de sua identidade, e isso acontece como resultado de suas práticas e
memórias coletivas. Essa identidade social é uma construção tanto social como
simbólica. É
sensato dizer que possuir uma sensação de pertencimento com um objeto, no caso
bem cultural, não significa falar que por razão de percebê-lo enquanto
patrimônio este esteja em perfeito estado de conservação, muitas vezes a
sociedade demora a se mobilizar ou mesmo a despertar uma consciência mais crítica
acerca de políticas públicas que estimulem e legitimem a preservação de seus
bens e patrimônios culturais. Nesse contexto de construção
ou ao menos fortalecimento de uma consciência patrimonial, o significado de
Identidade, Analisando Norbert Elias,
Barros afirma que ele acaba por romper com uma tradição impulsionada pelo
pensamento kantiano e cartesiano, onde procura pensar o homem fora dos padrões
convencionais estipulado pelo pensamento filosófico, o homem isolado e dotado
de atributos, capacidades e aptidões inatas. Segundo Elias, era necessário
romper com essa teoria, e entender o homem como um ser social, onde essas
aptidões eram construções de suas relações individuais e coletivas, assim, as
concepções sobre moralidade, temporalidade e natureza são aprendidas e
apreendidas com outros indivíduos. (BARROS, 2005) No caso em questão, pensar a
E.F.M.M. enquanto um elemento que reúne essas características entre indivíduo e
exterioridade coletiva e social, nos faz perceber que ela se torna um elemento
de identidade para o porto velhence por ser considerado símbolo de um passado
comum, compartilhado, de busca e valorização de suas origens, numa atmosfera
marcada por intensivos processos migratórios. Dessa maneira, a identidade se
forma pela necessidade de se reconhecer e legitimar-se perante o outro, e ela
não se constrói sozinha, ao contrário, como Elias mesmo ressalta, ela se dá a
partir da confluência de sentimentos, temporalidades, concepções de mundo e
natureza, de vários indivíduos, de suas particularidades e experiências
conjuntas, coletivas, e, porquê não, social. Para Michael Pollak (1992),
as identidades são construções tanto individuais como coletivas. A sua essência
está vinculada a construção da memória, particularmente, a memória herdada, uma
vez que esta dá significado ao sentimento de continuidade e de coerência de uma
pessoa ou de um grupo em sua reconstrução de si. Deste modo, para se
compreender as formações da identidade social é necessário entender como elas
operam no universo da memória coletiva. Na E.F.M.M. a identidade
construída (a reconstrução de si) pela coletividade deve refletir um sentimento
de continuidade de seus valores -símbolo de sua tradição histórica, isso
acontece em decorrência da necessidade de pensá-la como um patrimônio que deve
ser aceito enquanto um “bem” a ser preservado. Desse momento em diante, esse
patrimônio começa a assumir a função de relembrar e preservar suas memórias,
sejam elas de seus antepassados envolvidos ou não na construção da estrada de
ferro e de seus trabalhadores e maquinistas, trazendo nessa valorização as
lembranças (re) construídas socialmente enquanto resultado das experiências
individuais, que formam, sobretudo, um todo coletivo. Essas relações de
continuidade e resgate da memória e a da construção de uma identidade permeada
de coletividade estão, assim, presentes no pensamento de Pollak e Elias, onde
ambos salientam que só se é possível pensar em identidade considerando as redes
de interdependência que os indivíduos estabelecem nas configurações as quais
pertencem. (POLLAK:1992 ; ELIAS: 1994) Barreto
(2000) afirma que a questão identitária, oriunda da memória coletiva, contribui
para que os próprios habitantes locais agreguem valores ao patrimônio e se
identifiquem com ele. Quando a estrada de ferro Madeira-Mamoré corresponde a
essa dinâmica e quando pensada pelo critério de “pertencimento”, que vem a
agregar valores, sentimentos, subjetividades, o grupo social, como já
ratificado, identifica-se e o elege enquanto símbolo de suas representações
sociais. “O tombamento da estrada de ferro
Madeira-Mamoré, construída entre 1908 e 1912, em Rondônia, aconteceu no último
dia 10 de novembro. O pedido foi encaminhado ao Iphan por uma associação de
ex-ferroviários preocupados em evitar a venda de peças da ferrovia. Essa
iniciativa coloca uma questão importante: a participação da população nos
processos de decisão envolvendo o reconhecimento de bens como patrimônio
cultural”. (IPHAN, 2007) Esses
valores agregados e aceitos em sua representação social e entendidos enquanto
identidade social amiúde passa por impasses que tem como pano de fundo o debate
acerca das conseqüências que o capitalismo traz ao paradigma da identidade,
seja ela individual ou social. Pois no imaginário capitalista, de acordo com
Boaventura Santos (2000), nem sempre a valorização e preservação de
determinados patrimônios são interessantes para sua dinâmica econômica,
tornando corriqueira na maioria das vezes a perda de identidades dessa natureza. Esse contexto político-econômico, descrito acima, tem se tornado uma realidade amarga principalmente nos países “periféricos”, aqueles conceituados “países em desenvolvimento”. Todavia, em contra partida, também se tem notado um movimento a favor de políticas de iniciativa pública ou mesmo privadas, postas em ação pelos projetos de valorização e conservação de patrimônios através das políticas de tombamentos. O interesse por parte de determinados setores da sociedade de Porto Velho em preservar sua memória e seu patrimônio cultural pode até ser considerada tímida por alguns, mas com certeza caminha para fortalecer uma consciência mais crítica, seja pelo presente marcado pelos sonhos de “progresso” ou mesmo na intenção de se construir uma história que, mesmo marcada pelas transformações geográficas, políticas e sociais, não comprometa sua dinâmica e o compromisso de resguardar suas tradições. “Entretanto, é
preciso considerar que tanto a educação como a preservação do patrimônio e da
memória está inscritas em territórios distintos como o político, o econômico e
o social. No que diz respeito ao território social e aos elementos que o
estruturam podemos dizer que uma das dimensões das ações educativas e de
preservação é aquela constituída por interesses afetivos e, eu diria até,
amorosos que são, por sua vez, transformadores (...)” Envolto
a todos esses apontamentos ressaltamos que,
embora vivamos em uma época globalizada na qual a tecnologia nos
possibilita estarmos sempre sendo transportados virtualmente para outros países
e a partir daí de forma superficial termos acesso a padrões culturais do mundo
inteiro, e que essa universalidade acarrete às vezes imitações ou mesmo a
ressignificação das tradições e identidades, é preciso estar atento aos nossos
valores e, principalmente, a essa identidade responsável por fazer nos
reconhecer enquanto indivíduo, povo, seja com traços e singularidades que
acreditamos, muitas vezes de forma mítica, nos fazer distintos do demais. Bibliografia BARRETO, Margarita. Turismo e legado Cultural: As possibilidades de Planejamento
-Campinas, SP: Papirus,2000. BARROS, José D’Assunção. Imaginário, Mentalidades e
Psico-História – uma discussão
historiográfica. Revista Eletrônica do Centro de Estudos do Imaginário. Ano V nº. 7, Janeiro - Junho 2005. BURKE, Peter. A
Revolução Francesa da historiografia: a Escola dos Annales 1929-1989 . Trad. Nilo Odália. – São Paulo: Editora
Universidade Estadual Paulista, 1991. CHARTIER, Roger. O
mundo como representação.
Revista das Revistas.
Estud. av. vol.5, no.11. São
Paulo, Jan./Apr. 1991. ELIAS, Norbert. A sociedade dos indivíduos. Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro,
1994. FONSECA, Maria Cecília
Londres. Referências Culturais:
Base para novas políticas de patrimônio. POLÍTICAS SOCIAIS: acompanhamento
e análise, p.p 111-119. POLLAK, Michael. MEMÓRIA
E IDENTIDADE SOCIAL. Estudos
Históricos, Rio de Janeiro, vol. 5, n. 10, 1992, p. 200-212. SANTANA, Mariely. Patrimônio, Turismo
e Identidade cultural. BAHIA ANÁLISE & DADOS. Salvador – BA, SEI, v.11,
n.2, p.169-173, Setembro, 2001. SANTOS, B. S.. Pela Mão de Alice: O social e o político na pós-modernidade.
Porto São Paulo: Cortez. 2000. TEIXEIRA, Marco D. & FONSECA, Dante R. Historia
Regional: Rondônia. Porto Velho: Rondoniana. 2001. www.revista.iphan.gov.br Notas
[1]Graduanda do curso de
História Licenciatura Plena pela Universidade Federal de Rondônia e Bacharel em
História pela Universidade Federal do Maranhão |
||
|
|||
CEI - UNIR Todos os Direitos Reservados. |
|||
|