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As Múltiplas Faces de Mnemósina: Memória como Espaço de Representação do Imaginário
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 Edinaldo Bezerra de Freitas[1]

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Primeiras Notas






CONSELHO EDITORIAL
Arneide Cemin
Ednaldo Bezerra Freitas
Valdir Aparecido de Souza

  

“o melhor o tempo esconde longe muito longe mas bem dentro aqui”
(Caetano Veloso, Trilhos Urbanos)

 

Ensina a “Paidéia” grega do Mito que, do namoro da Memória com o Poder – de Mneumósina com Zeus – nasceram as Musas, representantes e protetoras das artes e dos ofícios. Uma delas, Clio, é a responsável pela História, o lugar onde se cultivam tais Musas passaria a se chamar de Museu.

Tomar como referência à memória é tarefa temerária e desafiadora, muitos dos grandes clássicos da filosofia e da literatura ocidental já o fizeram e apontaram para a importância, complexidade e desdobramentos. Essa condição da experiência humana , ao que parece, é por excelência a circunstância que  nos distingue, eleva, mas também nos torna reféns e limitados. Basta refletir sobre a codificação da amnésia como distúrbio ou doença, e da dimensão complexa de como convivemos com tantas faces do esquecimento.

Para citar nomes,e somente para os últimos 100 anos lembramos pelo menos de Henri Bergson, Walter Benjamim, Maurice Halbwachs, M. Pêcheux e, Prost, James Joyce, Jorge Luis Borges...de Borges, vamos recordar, seu conto ‘Fumes, o memorioso’, põe em sena a desesperadora figura do indivíduo que possuía o perfeito domínio da memória total...

Como lembrança, memória social ou coletiva, memória institucionalizada, memória - história e memória - mito, e como narrativa poética,  e o mundo das mimeses das literaturas...Como retirar a memória do centro dos conhecimentos da história, semiótica e sociolingüística, da análise do discurso, da psicologia... Ou da própria construção de todo e qualquer conhecimento?

Como não encontrar a encontrar enquanto condutora de valores sociais, matrizes de cultura e de identidades, as “práticas memoriais”, os “textos seminais”, as projeções discursivas,  a eleição de padrões e modelos de culto do objeto “de arte”, os “museus” e outros lugares de memória como a escola, a ciência, as práticas das religiões e tantos padrões de comportamentos ?

E mais recentemente, como não identificar as ultras eficazes , modernas e pós-modernas práticas de criação e recriação de memórias sob forma de mídias, comunicações dinâmicas como as possibilitadas pela informática. E o quanto de uso e abuso das imagens como condutoras de (i) mobilização, de consumo, de publicidade, campo para a incursão às mudanças ou transformações de costumes, na condução visivelmente objetiva dos processos eletivos do campo da política institucional.

A memória do nacionalismo, dos arranjos e desarranjos regionais e das versões de globalizações, e nas prementes características da indústria cultural com sua memória da massificação. Mas também o aparecimento de novas memórias, os apelos e o protesto, de movimentos naturalistas, feministas, minorias, contra ou a favor a globalização, etnicidade, e apelos de inclusões, terrorismos, fundamentalismos...

Como o principal patrimônio do “homus sapiens”, parece ser essa a imagem conceitual que Gilbert Durand nos convidaria a ter com relação à  memória, enquanto plasma da própria imaginação. No entanto, para nosso próprio bem, acredito, e para desespero de quem pretende controlar e impor direção e regularização à memória, todos os pensadores são unânimes em assinalar seu caráter dialético, não homogêneo, móvel, dinâmico, o tamanho imperfeito, incompleto, seu espaço de desdobramentos, polêmicas, contradições, mudanças...

“eu vejo o futuro repetir o passado, eu vejo um museu de grandes  novidades”
(Cazuza, O tempo não para)

O convite portanto, deve ser o de percorrer o estudo da memória, entrelaçando olhares entre processos de seleção, e de escolhas, de ideologias e de contra-ideologias, de imaginários fundantes e de demandas de transformações do imaginário. E verticalizando ainda mais, não se pode esquecer, o apelo da complexidade,  a dialogar com o outro lado, e  constitutiva e conflitiva da memória, que lhe configura  sempre em um conjunto existencial dicotômico: Estamos nos referindo ao silenciamento, ao ocultamento, ao esquecimento, o olvidar...Portanto focar a lente sobre esses processos, entre a repetição , a regularização e as mudanças, entre as lembranças e os desaparecimentos...

Mas para evitar cantilenas abstratas, e como pesquisador , no dialogo tão próximo e certamente contraditório, entre as entre faces dessa esquizofrênica condição : a história a favor da memória, a história contra  a memória, e uma como a outra, preferimos  focar atenção sobre aqueles lugares onde se materializam as memórias, aqueles espaços, pontes, símbolos, alegorias e metáforas das relações dinâmicas de sua composição. Afinal, onde mora, se revela ou se esconde à memória?  Quais os suportes da memória? Onde se podem captar seus instantes de realização?

Para Le Goff , historia é ciência da memória, e os documentos da história são monumentos eletivos, escolha discursiva do historiador. Daí uma potencial revolução documental, onde tudo vira história , caleidoscópio humano, metamorfose de temporalidades,   e a busca de representações, do mental, do imaginário, do cultural.

“Eu não tenho data pra comemorar”
(Cazuza, O tempo não para) 

Nesse caso, a resposta se faz em um múltiplo e ao mesmo tempo específico recorte de representações, de acordos e de tensões, de respostas e da enunciação de novas questões que se faz ao escolhermos os vários ângulos que queremos, precisamos ou devemos investigar. Afinal, diz o poeta “as coisas não têm paz” (Arnaldo Antunes).E cultura é delegar valores, ver peso, tamanho direção...

Sigamos algumas pistas, sinais: A Língua é um lugar da memória, as falas, as gírias, as frases e paráfrases, os diálogos, exposições, as verdades e as mentiras. As mil metáforas e tantas maneiras de vocalizar, oralizar, ou e de calar, fazer valer a mensagem do silêncio. Vates, aedos,oráculos, menestréis, cânticos e canções...

E por outro lado, as escrituras, do que se escreve e do conflito entre o que se fala e o que se põe através de letras, nas linhas e nas entrelinhas, na oficialidade e na clandestinidade, nos duplos ou tantos sentidos, da exposição, na publicidade, e no íntimo aconchego de uma carta e de um diário. Entre os livros, os cadernos e os papeis, entre os códices e as coleções, entre enciclopédias e opúsculos, no turbilhão de bibliotecas, livrarias, bancas de revistas. Todos esses, lugares onde a memória de revela e se oculta. Faz-se e se desfaz, se modifica e tenta se perpetuar.

E  toda  a iconografia, as imagens, os mapas, as pinturas, os desenhos, as fotografias, os filmes, as mil figuras, encenações, apelos, chamadas, vitrines, luminosos, obscuros enigmas de mensagens de grafites, poluições visuais que nos convocam e chamam a atenção, onde os valores procuram o ninho para viver, se contradizer, seja  em quaisquer dimensões, e que nos faz mil vezes sairmos ou entramos em nós mesmos, dizendo o que ser, aonde ir, como vestir,o que comer, o que sentir, como viver. As imagens como endereço para se encontrar e para se perder, mil tentações para o prazer do “voier”. No entremeio entre o sonho a alcançar  e o desespero da distância inatingível ...

Outro lugar de memória é a própria cultura material, os objetos são todos cheios de memória, as edificações e as ruínas, a arquitetura, os móveis, os carros, os brinquedos, as roupas, as esculturas, as maquinas, a natureza e  o corpo, lixos, luxos. Em cada lugar da matéria, o passado luta com o presente, e se projeta em conflito ou em harmonia, em camadas de uso, em valores simbólicos, em contradições sociais, em bandeiras de causas...

Pois as coisas definitivamente não têm paz, e se já na vida, assim também  na morte...E não há lugar de memória mais instável, desafiador de reconstrução de significados, criador do culto e do oculto, de tentativas de justiças e de escancaradas injustiças e omissões, do que a morte. Afinal como reproduzimos a narrativa sobre os que já foram? Como dialogamos com as gerações passadas, com nossos ancestrais? Mortos, semimortos, ressuscitados...Muitos revistos, tantos abandonados, uns heróis e benditos, outros malditos e bandidos...E os cemitérios estão cheios de lição dessas mudanças. E a cidade dos mortos, como o espaço do passado, por mais contraditório que pareça, está vivo, se reconstruindo, se desdizendo. Ecoando do alem o apelo do Zé do Caixão : “A meia noite virei buscar tua alma”...

“Mas as coisas findas, muito mais que lindas, essas ficarão”
(Carlos Drumonnd de Andrade, Memória) 

Assim, diz Walter Benjamim, precisamos aprender a despertar o passado, ou os fragmentos deste, como reminiscência, para redimir os mortos, arrancando a tradição ao conformismo. E assim, dando à memória, um salvo conduto como passagem entre a teologia e a revolução social. Por sua vez, alerta Halbwachs, a memória potencializa o que  “ainda é vivo na consciência do grupo para o indivíduo e para a comunidade”.

Resta indagar sobre a qualidade e a quantidade desta consciência, e indagar de como e onde esta aproximação entre memória e consciência...E ai  necessário se faz lembrar o papel preponderante da memória como condutor de identidade, de valor de pertença, percepção de inclusão e portanto, em sua contra versão,  também de exclusão. Pois não seria o mesmo mecanismo que nos faz ser, que nos propõe os indicativos das fronteiras da alteridade, sobre, e principalmente contra, o que não sou? Da presença do outro. Daí a memória esta ali, sentada  no coração da exclusão, do preconceito, e portanto traço constitutivo para a guerra, para a exploração, a miséria....

Ao retomarmos o questionamento sobre a memória, seu valor, seu uso, seu abuso, suas representações, torna-se imperativo olhar essa esfinge mutante e misteriosa e nos identificamos e nos estranharmos nesses meandros... E qual não será nosso espanto ao nos deparamos com um quadro por demais esclarecedor : a memória é a matéria que nos faz cultura, nos faz imaginação, nos faz identidade...E por ser ela tão por essência ambígua, contraditória e dialética, precisamos realçar nela os seus quadros de potencialidade  do saber fazer vida, do saber fazer história, sociedade, gente...E de como essa tarefa possa ser possível para grandes processos coletivos, ou para esforços hercúleos, resta-nos a caricatura e a lição irônica do  iluminista Voltaire, propondo ao “Cândido”,que nos resta dar conta de cuidar de nosso próprio jardim... Feliz memória para todos!

Bibliografia

BENJAMIM, W. “Sobre o conceito da História” in : Obras Escolhidas. 6 ª ed. São Paulo, Brasiliense, 1993

DURAND, G. As Estruturas Antropológicas do Imaginário. São Paulo, Martins Fontes, 1997

HALBWACHS, M. A Memória Coletiva.São Paulo, Centauro, 2004

LE GOFF, J. História e Memória. Campinas, Unicamp, 1990

MORAN, E. O Problema Epistemológico da Complexidade. Lisboa, Europa-Am

Notas


[1] Professor Departamento de História da Universidade Federal de Rondônia e Pesquisador do Centro de Estudos do Imaginário Social
Doutor em História Social-USP

                                                           



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