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Universidade Federal de Rondônia
Revista Eletrônica do
Centro de Estudos do Imaginário

Labirinto - Revista Eletrônica do Centro de Estudos do Imaginário

  

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A colonização em Rondônia: imaginário amazônico e projetos de desenvolvimento - tecnologias do imaginário, dádivas-veneno e violência[i]
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Artigos

Resenhas

Biblioteca

Entrevistas

Primeiras Notas






CONSELHO EDITORIAL
Arneide Cemin
Ednaldo Bezerra Freitas
Valdir Aparecido de Souza

Arneide Bandeira Cemin[ii]


A colonização em Rondônia

A colonização de novas terras configura processo social de “controle do espaço” e de “controle dos homens”, através dos dispositivos de “seleção” que produzem sistematicamente a exclusão. Esses dispositivos resultam da luta de classes e expõem as “lutas sociais” entre “projetos” das populações excluídas (camponeses, índios, seringueiros, ribeirinhos e populações urbanas pobres) frente à “reações modernas” de latifundiários, grandes madeireiros e empresários do agronegócio (Tavares dos Santos, 1987).

A colonização desloca populações diversas e por isso torna mais complexas as questões relativas ao domínio das tecnologias de controle do imaginário. Atualiza práticas de violência física e simbólica e visa o controle do corpo (enquanto força de trabalho), do espaço e dos demais elementos e processos que ali ocorrem; particularmente terra, minérios, fauna, flora e seus derivados[iii]. Diversos autores destacaram o controle do imaginário como elemento importante da empresa colonizadora desde a colonização de Brasil por Portugal[iv].

O processo de colonização de Rondônia constitui-se em prática predatória quanto aos recursos humanos e naturais. Analisando a  relação social do homem com a natureza na colonização agrícola em Rondônia, na perspectiva teórica acima descrita (Cemin, 1992), e seguindo Foucault, em sua noção de dispositivo; enfoquei a história de Rondônia sob os dispositivos “estratégico-militar” e  “modernizador-civilizatorio”. Considero as  políticas de Desenvolvimento para a Amazônia, como  representativas desses dispositivos. Nesse artigo chamo esses dispositivos de tecnologias do imaginário: “dispositivo de intervenção e produção de mitos e de estilos de vida” (Silva, 2003:20). Objetivo a compreensão dos  imaginários sociais que orientam as relações sociais dos agentes envolvidos nos variados processos suscitados pela colonização.

Relações sociais que, na visão dinâmica na qual enfoquei o estudo acima referido, são construídas dentro e fora da vida rural e tribal, ramificando-se nos bairros periféricos das áreas urbanas e das estruturas administrativas do Estado, atingindo seu núcleo e sua periferia.

A colonização confronta dois modelos distintos de relação social, as relações sociais capitalistas, do colonizador, e as relações sociais não capitalistas, das populações índias, extrativistas, quilombolas, ribeirinhas, camponesas. A hipótese é que os dispositivos simbólicos – “estratégico-militar” e o “modernizador-civilizatório”, são conflitantes com o imaginário amazônico, que, segundo Loureiro (1995), é de caráter  “poético-estetizante”. Considero pertinente acrescentar o imaginário da dádiva, como igualmente característico das populações amazônicas. Viso constituir um campo de reflexão interdisciplinar que responda ao conhecimento dos imaginários sociais indagando sobre a pertinência das trocas-dádivas, enquanto dado empírico e formulação teórica, para as questões relativas ao Desenvolvimento Regional Sustentável.

Tecnologias do imaginário

A noção de tecnologias do imaginário em Silva (2003), concorda com Maffesoli sobre o fato de ser a cultura noção mais ampla que imaginário (2003:15), este último caracterizando-se como uma “dimensão ambiental” próximo à noção de “aura” de Benjamin, tratando-se de “... figura singular, composta de elementos espaciais e temporais, sendo aspecto da modernidade a reinvenção da aura, pela reprodução total e viral da imagem” (2003:17). Distingue imaginário e ideologia, afirmando que a ideologia diz respeito ao “aparelho da manipulação” e o imaginário, “às tecnologias da sedução”. Define que “as tecnologias do imaginário são dispositivos de intervenção e produção de mitos e de estilos de vida” (2003:20).

Classifica em três etapas a construção do imaginário pelas tecnologias, a fase primitiva – constituída pelo teatro, não poluente, pois tal “como o moinho, o teatro não arranca nada da natureza nem adultera o meio em que se apresenta”. A fase pré-industrial -, iniciada com o livro impresso, incidindo de forma poluente sobre os imaginários e o ambiente (quanto à produção de papel). O rádio, o cinema e a televisão são tecnologias altamente poluentes, pois interpelam em escala planetária todos os ecossistemas culturais. A fase pós-industrial ou virtual começaria com a televisão a cabo e com a internet (2003:68).

Ao identificar as tecnologias que incidem sobre o imaginário, Silva indica Morin: “Há décadas que Morin fala em industrialização do espírito, sem, no entanto, reduzir o imaginário à manipulação e sem deixar de esclarecer o processo de manipulação proporcionado pelas tecnologias do imaginário: ‘Esta manipulação se efetua segundo as trocas mentais de projeção e de identificação polarizadas nos símbolos, mitos e imagens da cultura como nas personalidades míticas ou reais que encarnam os valores (os ancestrais, os heróis os deuses). Uma cultura fornece pontos de apoio imaginário à vida prática, pontos de apoio práticos à vida imaginária” (2003:85).

Os Projetos Desenvolvimentistas e o imaginário estratégico e modernizador

O imaginário modernizador-civilizatório modela a Amazônia desde o século XVI: numerosos viajantes, cientistas, comerciantes e estrategistas militares vêem comprovando sua abundancia em recursos naturais, seu “vazio” demográfico, seu estado de natureza “selvagem” e a “necessidade”, estratégica-militar, e modernizadora-civilizatória, de sua integração ao restante do país. A noção de invenção do Brasil e da Amazônia  permite mostrar o processo pelo qual o Brasil e a Amazônia vêm sendo construídos desde o imaginário europeu. Esse mesmo imaginário se atualiza na moderna colonização da Amazônia. O imaginário estratégico-militar, dos projetos desenvolvimentistas da ditadura militar no Brasil, tanto quanto o imaginário europeu do século XVI, representa a Amazônia como um espaço a ser conquistado e locus privilegiado para a transferência de grupos sociais com potencial de revolta. Oliveira (1994), fala da modernização da Amazônia como reconquista. Diz que a magnitude das forças que realizam a reconquista, as grandes empresas, que ele qualifica de novos senhores da guerra, fazem com que as lendas dos barões da borracha se pareçam a ficções infantis. Salienta que a diferença radical de valores entre os colonizadores e a população autóctone estava entre o mundo da mercadoria, que emergia e o mundo da não-mercadoria.

Rondônia compartilha com o resto da Amazônia (e com o Norte do Mato Grosso) o meio ecológico e também a historia social. A partir do Mercantilismo Marítimo e da Revolução Industrial, constituiu-se o grande empreendimento extrativista das chamadas drogas do sertão, do látex da seringueira e de minérios. Para as populações indígenas esses processos correspondem às primeiras correrias, aos projetos de catequese e de escravidão; e economicamente, a estruturação do empreendimento extrativista e o modo de vida seringueiro. No final do século XIX o imaginário modernizador-civilizatório, ganhou intensidade quanto às relações com a natureza e com o homem amazônico, através da mecânica e da engenharia aplicadas à construção da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré - a “modernidade na selva” (Hardman, 1988). A estrada embora visasse o transporte dos produtos obtidos pelo empreendimento extrativista (que operacionalizou a economia até a década de 50 - quando ocorreu o declínio da Economia Seringalista, Sistema de Barracão) –se apoiou em múltiplas tecnologias de controle do imaginário, a começar do caráter de enclave norte-americano do empreendimento que deu origem à cidade de Porto Velho, capital do estado de Rondônia, e seus efeitos na configuração do modo de vida local.

Para as populações indígenas, isso implicou um processo de eliminação e/ou cooptação. Pesquisando o tema, Freitas (1999) assinala o caráter militarizante das políticas indigenistas constatando uma prática de violências. Esta prática caracteriza um amplo processo histórico de “guerra de conquista” que vêm se legitimando dialeticamente por meio de imaginários naturalizantes e teriomórficos naquilo que diz respeito aos povos habitantes das florestas.

Em relação ao controle das classes trabalhadoras é importante ressaltar que no período específico de crise da borracha (anos 20-40), o modelo “modernizador-civilizatório” comportava a prática “estratégico-militar”. Souza (2003) aponta essa peculiaridade ao refletir sobre o recrutamento compulsório de nordestinos “engajados” como “soldados da borracha” e a influência autoritária dos militares na formação de Rondônia.


Ainda segundo Souza (2003) a colonização autoritária dirigida pelo Estado objetivava o controle político-social por meio de uma inversão discursiva e pragmática. A Amazônia antes vista como oposição ao civilizado passou a ser o lugar da “renovação” nacional. Inversão feita para desmontar as ideologias estrangeiras dos anarco-sindicalistas, comunistas e liberais. Segundo Lenharo (1986), o Estado desterritorializou os trabalhadores por meio de suas agências, rearticulando suas formas de organização e suas relações sociais e produtivas. A Amazônia ressurge então como o espaço que forjaria o novo brasileiro.

Entre os anos 50 e 60, inicia-se a exploração de cassiterita em terras dos seringais, intensificando o processo de ocupação, e acelerando as obras de construção da BR 364, que seguiu o caminho percorrido e geo-referenciado pelo Marechal Rondon, em seu trabalho de implantação das Linhas Telegráficas Estratégicas do Mato Grosso a Amazônia.

No início dos anos 70, o Plano de Integração Nacional formulado pelo Governo Militar, preconizou a ocupação rápida do então território de Rondônia visando a controles político militar e político social, através da reorientação dos fluxos de capitais e de fluxos migratórios de camponeses pobres para a região, através da “Colonização Sistemática” de caráter agrícola (Cardoso e Muller: 1975; Becker:1990; Velho:1972; Ianni:1976).  Do ponto de vista econômico o objetivo da “colonização sistemática” foi realizar a expansão das relações capitalistas, para as quais a Amazônia surge como possibilidade de “acumulação primitiva do capital”, financiando desse modo o seu próprio processo predatório de “integração a economia nacional”.  

  

Fronteiras da colonização e violência

Os índices de derrubadas de florestas e de contaminação de solos e de rios, o extermínio de povos indígenas, e, particularmente as desapropriações praticadas contra as populações tradicionais indicam que a “fronteira” se institui enquanto espaço de conflito.

Souza Martins (1992) assinala a percepção da colonização como espaço de conflito violento, vendo a fronteira como “fronteira do humano”, limites do humano,  espaço de “degradação do outro”. O consumo predatório das forças produtivas se torna visível tanto no campo quanto na cidade, pela ausência quase total de infra-estrutura social, constituindo contextos sociais tensos e contraditórios.

São esses contextos que devem ser tomados em consideração nas abordagens sobre violência, de modo que a violência não pode ser considerada abstratamente, deve ser referida a espaços e relações sociais concretas (Cemin: 1992; 2001; 2003; 2006). È a observação destes espaços e relações que apontam o quadro de destruição e morte ocorrido contra as populações indígenas: as “vitimas do milagre”, o conflito agrário, a desagregação migratória, as denúncias de escravidão nas fazendas e o intenso processo de violência urbana que atinge particularmente os jovens.

 

Cultura Amazônica: uma poética do imaginário

A cultura Amazônica construiu um imaginário marcado pela relação poético-estetizante com a natureza onde se destaca o amor, o maravilhamento e o mítico, ensina Loureiro (1995). Ao falar da cultura Amazônica, ele distingue as culturas urbana e rural, destacando que a cultura ribeirinha (sinônimo de cultura amazônica) informa a cultura urbana ao tempo em que é influenciada por ela.

Destaca também o conflito de imagens (1995:70) provocado pela presença do colonizador, seja ele religioso ou funcionário do Estado, desde o início da colonização do Brasil por Portugal, prolongando-se na atualidade. Mostra ainda o modo pelo qual foi se construindo um imaginário de inferioridade da cultura Amazônica em favor da cultura européia e da região Sul e Sudeste do Brasil.

Apesar desses conflitos de signos, ele defende que a dominante cultural do imaginário Amazônico é poetizante-estetizadora, sendo sua matéria à natureza exuberante da floresta e dos rios, de tal modo que essa vivência estetizada se refletiria em uma ética das relações sociais (100). Além disso, talvez fosse interessante acrescentar a “leseira”[v] como traço dessa cultura, noção que Márcio Souza define como excesso de credulidade no colonizador, por parte do povo, e cooptação ideológica das elites da região contra os interesses das populações nativas, “pois só é elite quem age contra o povo” (1994:123). Considero importante ainda, a discussão iniciada por Monteiro (1981), sobre a questão da realidade na Amazônia, considerando o valor social da informação onírica para as populações nativas[vi].

O imaginário das trocas-dádiva

Discutindo a proposição do paradigma da dádiva a partir do texto de Marcel Mauss sobre as “Formas arcaicas de troca e de contrato”,Goodbout (1998) discute a noção de dádiva, como sendo tudo o que circula em prol ou em nome do laço social. Nas sociedades tradicionais tudo aquilo que vincula amigos, parentes, vizinhos; e nas sociedades modernas, as doações (órgãos, sangue, leite materno), filantropia, voluntariado. Indica que a liberdade moderna é a liberdade de não ter vínculos, expressando a valorização liberal do indivíduo atomizado, quase que apenas vinculado ao mercado de consumo de bens e serviços. Tanto é assim, que a ideologia liberal configura particularmente o sistema escolar. Pereira (2000) informa que nas décadas de 80 e 90 os países industrializados reorganizaram os seus sistemas de ensino pautados na lógica do mercado, adaptando-os à idéia de que a competição gera eficiência. O resultado, segundo o autor é o aprofundamento das desigualdades nas experiências educacionais  em termos de gêneros, classes sociais e etnias.

No que o paradigma da dádiva poderia interessar ao estudo do imaginário? O imaginário deveria constar na “lógica do dom/contradom de Mauss”, nos diz Silva (2003:71). Penso que isso se aplica obrigatoriamente ao imaginário amazônico, naquilo que poderíamos chamar, seguindo Loureiro, de ética das relações sociais. As evidências de que a noção de dádiva informa as relações sociais dos povos da Amazônia são diversas: discutindo a política educacional para as comunidades indígenas, Pinheiro et alii afirma: “A organização social das comunidades indígenas se sustenta nos princípios básicos da reciprocidade e da cooperação, e cada membro do grupo tem obrigação de dar e receber bens e serviços uns aos outros” (53).  Analisando o uso ritual de ayahuasca, na vertente do culto ao Santo Daime, enquanto expressão da religiosidade Amazônica, Cemin (2002), constatou que  as trocas dádivas são estruturantes das relações dos homens entre si e destes com as divindades e com o chá, ele mesmo sacralizado e doador de dons.

Ao analisar os discursos das mulheres ribeirinhas, em Rondônia, visando a compreensão daquele tipo de sociedade, Carneiro (2007), constata a noção de dom e de trocas de dádivas no âmbito das relações sociais, incluindo trocas de dom e contra-dom com o sobrenatural.

Relações sociais violentas e redes de dominação

Enfocando a violência como questão social mundial, Tavares dos Santos (2002), esclarece que ela não diz respeito apenas aos aspectos macros e externos, mas também aos micro-processos internos que reorganizam a vida cotidiana. Argumenta que o fundamento da violência encontra-se inscrita em nossas formas de racionalidade e define a violência como procedimento racional arbitrário, exercício de relações sociais de violência, configurando redes de dominação que fundamentam relações baseadas no uso de força e coerção que causam dano ao outro.

Propõe a noção de cidadania dilacerada como modo de evocação das rupturas provocadas pelos diversos dispositivos produtores de violência e que se considere a violência como fenômeno cultural e histórico que se exerce física e simbolicamente, apontando a necessidade de modos de compreensão do problema, requerendo produção de conhecimento sobre o imaginário social, ou seja, a moldura simbólica que fundamenta e sustentam as múltiplas formas de violência que se exerce no cotidiano (Mafesolli:1987). Refletir sobre as práticas e as representações da violência implica reconhece-la enquanto componente estrutural das relações sociais.

O imaginário do terror

Parece importante para mim, que na discussão do imaginário amazônico se leve em conta o que Taussig (1983) chamou de “cultura do terror”, que, para ele desempenhou papel fundamental na construção social da realidade colonial no Novo Mundo: o terror é fenômeno de fisiologia, fato social e construção cultural que funcionou (e funciona) como o mediador por excelência da hegemonia colonial, “controlar as massas através da elaboração cultural do medo”.

Taussig trata do terror perpetrado pela empresa extratora de borracha na Amazônia peruana, particularmente no rio Putumayo. Entretanto, a tortura como “força produtiva” é tecnologia disseminada por toda a região amazônica; em Rondônia, ainda está por se fazer à história das torturas nos seringais, que era fato social aceito como disciplina de trabalho, conforme a memória de seringueiros, índios e ribeirinhos.

Taussig mostra como a cultura do terror se expande pela mediação narrativa, fazendo com que a função fabulativa se constituísse como poderosa força política determinante para a conquista e a exploração da borracha, mediada mítica e sociologicamente pelos muchachos, índios com status de índios civilizados e de guarda (capataz) das companhias extratoras.

Desse modo, diz o autor - “o terror e a tortura ganharam foro de cultura: um conjunto de normas, de imagens, de significados envolvendo a criação de espetáculos e ritos que forjaram uma verdade, garantiram a solidariedade dos carrascos e permitiram que eles se tornassem como deuses acima do bem e do mal”.

Adiante esclarece, que a tortura e a violência institucionalizadas, funcionam como “ritos de degradação” que não negam os “valores da civilização” ocidental, derivando o seu poder e significado desses valores. A colonização devolve aos conquistadores a imagem da barbárie de suas relações sociais que é projetada no selvagem.

A atualidade das trocas dádivas frente à violência nas relações sociedade/natureza

No texto de Taussig, vão sendo expostas as razões pelas quais a tortura se instala como força produtiva: não havia entre os índios as instituições sociais capitalistas, eles não consideravam o dinheiro como meio de troca, mas como adorno precioso. Casement, funcionário do governo britânico, cujo relatório tornou publica a tortura nos seringais do Putumayo, esclarece: “Eram outra espécie de gente (...) baseavam-se na afeição como princípio para o contato com seus irmãos e cuja vida não era algo a se avaliar eternamente segundo o preço de mercado”(Casement apud Taussig, 1983:52).

Sendo as sociedades Amazônicas fundamentadas nos vínculos de parentesco, amizade e vizinhança, coloca-se a questão, de os programas de desenvolvimento constituírem-se em “dádivas-veneno” (Mauss, 1974), ao alterarem a lógica da reciprocidade dos vínculos sociais tradicionais, substituindo-os pelo vínculo com o Estado, com o mercado e mesmo com a violência física e simbólica, identificadas ao espaço urbano e as mídias.

A dádiva, conforme demonstração de Mauss, é simultaneamente liberdade e obrigação, por isso Goudbout indaga: o que é uma obrigação moral ou social? Ele mesmo responde recorrendo a Durkheim que afirma a necessidade de que a moral nos pareça agradável para que a aceitemos e com isso possamos elevarmo-nos acima de nós mesmos. Lembra que o mercado e o Estado-Provedor e a Seguridade Social são boas invenções ao substituir a caridade e ser útil nos casos em que não se deseja vínculos; sendo, porém insuficientes por não alimentarem as nossas relações sociais.

O autor acredita que a solidariedade comunitária não nega a individualidade e pode mesmo desenvolve-la. Entretanto, essa questão não é evidente e nos parece que constitui um desafio fundamental para as sociedades Amazônicas e com isso queremos dizer sociedades indígenas e ribeirinhas e as sociedades camponesas como afins à lógica da dádiva. Lembrando com Loureiro que, na Amazônia, a cultura indígena e ribeirinha se espraia, particularmente pelas periferias urbanas, e que no caso de Rondônia, a colonização recente (década de 60 em diante) ocasionou o afluxo de migrantes camponeses de diversas regiões do país.

Afetadas pelos deslocamentos compulsórios e pela lógica da mercantilização das relações sociais, as culturas – camponesa, indígena, seringueira e ribeirinha –  tornam-se frágeis pela fragmentação e desaparecimento das redes sociais de parentesco, vizinhança e amizade, relações que nem sempre se reconstituem nos novos espaços de moradia: a periferia miserável das cidades. O estudo clássico de Marcel Mauss tem por base empírica e por título às “formas arcaicas de troca e de contrato”, entretanto, ele não identifica trocas de dádivas a atraso social, bem ao contrário, como também assinala Pereira (2000), em Mauss ela é um indicador de civilidade ao restringir a violência através dos costumes de hospitalidade, generosidade, etiqueta e no revestimento das relações sociais pelo prazer estético; o que leva Pereira a concordar com Mauss sobre o valor desse tipo de prática social para uma educação que valorize a cidadania. Ele também recorda a advertência de Mauss sobre as duas faces das relações de reciprocidade inscritas nas trocas-dádivas: em contextos igualitários ela reforça a amizade, a solidariedade entre iguais; em contextos desiguais, reforça a dominação simbólica e pode cristalizar as relações de dominação.

Acreditamos ser esse o caso dos programas de desenvolvimento para a região, o fato de se constituírem como dádivas-veneno para as populações amazônicas. É de se indagar, por exemplo, se a propalada participação das comunidades, apelo no discurso do Desenvolvimento Sustentável, reverte em poder social e econômico para essas comunidades ou alimenta uma nova tecnocracia, (digamos “democrática” por incluir as ONGs) e um novo campo de expansão capitalista, o biotecnológico, ao lado do já estabelecido setor da mineração e da agropecuária.

Ao mesmo tempo, o terror é praticado no cotidiano, embora silenciado: conflitos agrários produzem rotineiramente seus cadáveres, casas e aldeias são incendiadas. Quanto à  Amazônia, segundo notícias que circulam em redes de amigos na internet denunciando o fato, estaria sendo representada nos Estados Unidos da América, em livros didáticos de geografia, como reserva internacional que não pode ficar nas mãos de um povo selvagem incapaz de preserva-la. O e-mail no qual essa mensagem chegou a mim, vinha acompanhado de uma convocação para  a indignação. Esse tipo de notícia para mim ilustra a atualização do imaginário do terror: “negócios podem transformar o uso do terror de um meio em um fim em si mesmo”, diz Taussig sobre a relação sinergética entre capitalismo e terror (Taussig, 1983:55). Afinal, se já estamos militarmente cercados pelos EUA, a pretexto do narcotráfico, e se os EUA já decidiram que somos reserva internacional, a tecnologia do imaginário do terror pode produzir pelos menos mais dois efeitos: rendição e adesão.

Autonomia Regional? Mas, quem representa a população Amazônica hoje?

Poderíamos pensar como alternativa, que a internacionalização seja dirigida pelas populações amazônicas. Entretanto, coloca-se aí um importante problema apontado por Becker: quem representa esta população? “O que está acontecendo no Brasil? Nem houve a formação plena da Nação, no sentido da cidadania e, ao mesmo tempo, o processo já está sendo entrecruzado com as novas tendências que estão ocorrendo no mundo: corporativismo, geopolítica dos governos estaduais, movimentos sociais que estão afetando a unidade política territorial e, inclusive, crise do Estado, crise financeiro-fiscal, de legitimidade, de governabilidade que estão deslocando a soberania do núcleo do aparelho do Estado, embora não se saiba direito para quem e para onde. È o incerto e o imprevisível que também se verifica no caso da Amazônia. A questão que permanece é quem expressa a região hoje na Amazônia? São as populações indígenas? São os nascidos a x anos aqui na Amazônia? São os migrantes, pequenos produtores? Trata-se do direito da região ou do direito do pluralismo?” (Becker, 1994:108).

A autora prossegue mostrando os diferentes projetos em disputa ou convergência na Amazônia: o projeto internacional preservacionista (consciência e ideologia ecológica), apresentando propostas de converter a dívida externa por natureza; o Desenvolvimento sustentável e o controle de uso do território; o projeto desenvolvimentista das elites representado pelo novo empresariado que quer restringir a abertura dos mercados para preservar privilégios e com isso pode fortalecer o Estado-Nação; o projeto de pequenos produtores que querem propriedade e cidadania; as alianças extraterritoriais internacionais combinadas à questão indígena e seringueira, e ainda o conflito de valor em relação à natureza – expressos em valor de uso e de troca. Ao final, Becker problematiza a capacidade do governo local para legitimar negociações dessas comunidades de forma integrada e indaga: como articular esses diferentes movimentos? (1994:109).

A Amazônia, segundo Oliveira (1994), mostra os limites da racionalidade capitalista e pode conter uma das chaves da pós-modernidade ao revelar os limites da lógica do lucro, opondo-lhe a lógica da cultura, que teria no topo um sistema produtor de valor de uso a partir da biodiversidade. Argumenta que isso não é possível frente à destruição dos ecossistemas e a desapropriação das populações, retirando-lhes as bases de sustentação de seus modos de vida: rios, florestas, terras, conhecimentos. Populações, que ele, citando Laymert Garcia dos Santos, chama de os “detentores de tecnologia de produção de biodiversidade”.

Finalizo com algumas interrogações postas por Silva: como  definir "tecnologias do imaginário?" Quais são as características dessas tecnologias? Como elas incidem sobre o imaginário? Trata-se de tecnologias de manipulação? Ou de sedução?

Às questões de Silva acrescento as minhas: O que é cultura e imaginário amazônico? Qual poderia ser a contribuição da cultura amazônica para a discussão de um modelo de Desenvolvimento Regional Sustentável? O Desenvolvimento sustentável é mito político que prepara o solo do “capitalismo natural” (Hawken et alii, 2005) ou novo paradigma societário? Essas questões  dizem respeito à sociedade nacional e a sua condição de possibilidade de soberania e de promoção da lógica de redistribuição do produto social.

 

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Notas

[i] Texto produzido para apresentação na Mesa Redonda I: Rondônia – Tecnologias do Imaginário, fronteiras da colonização e violência. Coordenada por Juremir Machado da Silva (PUC/RS) no Congresso Internacional - XIV Ciclo de Estudos do Imaginário – As dimensões Imaginárias da Natureza, promovido pelo Núcleo Interdisciplinar de Estudos sobre o Imaginário da UFPe, Recife, 29 de outubro a 01 de novembro de 2006.

[ii] Professora do Departamento de Sociologia e Filosofia, curso de Ciências Sociais e do Mestrado em Desenvolvimento Regional e Meio Ambiente. Pesquisadora do Centro de Estudos do Imaginário da Universidade Federal de Rondônia

[iii] (Tavares dos Santos,1987; Durand,1989, 1995; Martins e Silva:2003)

[iv] Faoro (1984); Gondim (1994); Lenharo (1940)

[v] Expressão regional que significa alguém não muito experto, um “bobo”.

[vi] Aqui apenas assinalo a contribuição de Marcio Souza e Monteiro. Espero desenvolver esse tópico em outra oportunidade.


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