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O Imaginário do medo: a escravidão em Manuel Macedo
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Primeiras Notas






CONSELHO EDITORIAL
Arneide Cemin
Ednaldo Bezerra Freitas
Valdir Aparecido de Souza

  

Cléria Botelho da Costa [1]

Nada antigo perde a poesia.
Fernando Pessoa

Era século XIX em um país onde são grandes os espaços de uma terra escura de minério, tórrida na sua bebedeira de sol zumbindo os dias, onde as discussões sobre a emancipação eram acaloradas, em meio ao crescimento das fugas, furtos, crimes e de castigos contra proprietários e feitores. E escritores como Manuel Joaquim Macedo, Castro Alves, Aluízio de Azevedo, dentre outros, julgava ter papel importante na tarefa de emancipação, para eles necessidade urgente. Nessa compreensão, escolhi As vítimas- algozes, de Manuel Macedo para, neste texto, desvelar o olhar do escritor sobre a escravidão, sua tese emancipatória e a disseminação do imaginário do medo, argamassa que cimenta as diferentes novelas sobre a escravidão apresentadas na obra. Intensamente envolvido com o clima da época, o romance escrito em 1869, encena os malefícios da escravidão na então capitania de São Sebastião do Rio de Janeiro destacando os fazeres dos escravos enquanto algozes.

A venda: espaço dos vícios

Numa planície estreita entre a Serra do Mar e as praias, no alvorecer da manhã os pássaros acordavam os moradores na Casa Grande ou nas casas de taipa de pilão. Era o alvorecer nos canaviais. Eles despertavam e ainda escuro tomavam o rumo do engenho. Seus nomes não importam. Era Maria, João, Simeão, Pai – Raiol, Lucinda, dentre muitos outros escravos. Deles pouco se conhece. Todos tinham em comum, o trabalho árduo de sol a sol, os castigos, o desrespeito humano dentre outros. Eram figuras fugazes. Muitos viviam nas Casas Grandes em serviços domésticos. Outros faziam do seu trabalho as plantações em torno do Engenho. De uma forma ou de outra desenvolviam seus fazeres sob a égide da escravidão.

O engenho, uma propriedade rural com cultura de cana e uma sede constituída de vários edifícios, sobreviveu até o final do século XIX. Havia a casa do proprietário conhecida como casa de vivenda ou Casa Grande; a casa do administrador e as casas de escravos ou senzalas que variavam quanto à proximidade da Casa Grande. Com raras exceções, todos os engenhos dispunham de uma capela para culto da religião católica, religião professada pelos trabalhadores livres, proprietários e escravos. No final do século XVIII e durante o XIX fora intenso o crescimento da produção do açúcar na capitania de São Sebastião do Rio de Janeiro.  Concomitante a essa prosperidade, crescera o fausto e o luxo dos senhores da cana, propiciado pela exportação do açúcar. Em contraposição, aponta o cartógrafo Couto Reis [2]crescera a fome que corroia o corpo das populações e o campo tomara nova configuração - os canaviais substituíram os espaços, outrora destinados às lavouras de subsistência.

Complementando essa moldura cultural e espacial da capitania de São Sebastião aponta Macedo que no interior, longe da vila e dos povoados, havia quase sempre, uma venda perto da fazenda. Essa se apresentava distinta das tabernas que em toda parte se encontrava e das casas de comercio, onde os lavradores ricos ou pobres compravam suas provisões. “Era uma pequena casa de taipa, coberta de telhas com paredes nem sempre caiadas e chão batido. No seu interior, um balcão contendo garrafas, botijas, latas de tabaco em pó e voltas de fumo em rolo “(p.9).

Era ali, o espaço onde os escravos se encontravam à noite, nos dias de trabalho ou à luz do sol nos domingos e dias santificados. Às horas mortas da noite chegavam os quilombolas trazendo o tributo de suas depredações nas roças vizinhas e levavam consigo, além de alimentos, a pólvora e o chumbo para a resistência nos casos de ataques aos quilombos. A venda também era o ponto de encontro dos escravos que cansados dos fatigantes fazeres cotidianos, dos açoites dos feitores, das injurias dos senhores lá, eles jogavam cartas, conversavam com seus comparsas talvez, quem sabe, buscando manter frestas de esperança que os movesse à vida - única franja de uma possível quimera; embebedavam-se, espancavam-se; socializavam seus conhecimentos sobre os prodígios do feitiço, sobre as raízes e plantas mortíferas, era um espaço de comunhão entre os pares que a dureza do trabalho cotidiano – envolto em trabalho forçado e castigo não permitia.  Contudo, sob o teto da venda a tensão entre escravos e senhores eram expressos nas calunias que, muitas vezes contadas sob o som de gargalhadas, chegavam até a honra das filhas e das esposas dos senhores; no planejamento das insurreições; na premeditação e planejamento de crimes hediondos, dentre outros. Foi na venda que Simeão encontrou e tornou-se amigo de Barbudo, homem livre, branco, sem ocupação e assíduo freqüentador do lugar. De grande influencia sobre Simeão foi mentor e cúmplice do assalto à fazenda e do assassinato de Domingos e Angélica, senhores de Simeão, o escravo.

No plano da construção narrativa percebo a representação da venda para o literato, certamente compartilhada por muitos outros brasileiros, como um espaço onde reinava a desordem e, enquanto tal como um espaço de transgressão. Assim, a venda era um lócus que expressava constante ameaça aos poderes instituídos dos senhores, pois ali, os escravos traçavam o desenho das ações que transgrediam as normas naturalizadas pela sociedade imperial.   Para Macedo a venda era “uma espelunca ignóbil, fonte de vícios e de crimes, manancial de profunda corrupção (...) é o espelho que retrata ao vivo o rosto e o espírito da escravidão” (p.11). Nessa compreensão, a venda era o locus de sustentação da escravidão. Talvez, por isso, alerta o literato ela sempre foi tolerada pela polícia, pelo governo, pelos fazendeiros e não havia força capaz de aniquilá-la.

A venda era o espaço onde os corações dos escravos regados pelo ódio e pela vingança, faziam germinar o crime, a traição, a desforra. Ali eram traçadas muitas das práticas transgressoras que construíram e reforçaram a imagem do escravo/ negro na sociedade carioca, como traidor, assassino e algoz. Todavia, ensina Castoriadis que as imagens são representações das práticas, recriadas pelos desejos e fantasias[3], ou seja, as imagens dos escravos como algozes etc. foram forjadas nas práticas dos cativos e recriadas pelos desejos e fantasias dos escravocratas. E uma constelação destas imagens criativas vai compor o imaginário[4]. Fora então a partir daquelas imagens que a elite criara o imaginário do medo, do “perigo negro” o qual fora espargido com intensidade no XIX e que, ressignificado perdura até o tempo presente (2005).  Assim, o imaginário do medo dos escravos não deve ser interpretado como mero delírio dos senhores escravocratas, ele fora tecido nas tramas, nos conflitos entre senhores e escravos e á partir dos fazeres destes. Fazeres que no final do século XIX ganhara novas significações. Nos tempos coloniais os atos de confrontação contra o senhor ou o feitor eram resolvidos dentro do contexto domestico enquanto no final do século as mortes, as transgressões culturais propiciavam visibilidade pública às vozes dos escravos e eram reconhecidas, pela sociedade, como um ato contra a escravidão. Eles tomaram uma dimensão pública, o que fizera crescer a importância que a sociedade conferia aqueles atos de transgressão social.

Macedo movido pelo medo das crescentes transgressões dos escravos, da visibilidade que os cativos começavam a ganhar na sociedade apresenta a sua tese emancipacionista que perpassa toda a obra: a escravidão devia ser gradualmente extinta pelos próprios senhores proprietários, antes que as ameaçadoras senzalas pudessem macular as fazendas e sobrados brancos. Este ato testemunharia, na lente do autor, a generosidade, a bondade daqueles em relação aos seus algozes. Todavia, sob o meu olhar, ela revela a comunhão entre o narrador e a elite imperial, pois na medida em que prioriza os senhores, adere a convencionalidade formuladora de estereótipos do escravo/negro e tritura as fantasias destes, condição de sobrevivência do homem ainda que vivendo sobre opressão.

A escravidão engendra o medo

Para o literato a escravidão tinha o sabor acre das frutas venenosas plantadas, no país, pelos colonizadores. Essa herança colonial propiciara a imagem da fratura materializada nas grandes divisões econômicas, sociais, políticas e culturais ainda expostas no período em questão, final dos anos 60. Elas sinalizam para uma complexidade cuja dimensão não pode ser ignorada quando se assume o desejo de apreender as relações entre a literatura e seu contexto histórico. E, tais fraturas se aguçaram quando as elites, para por fim ao colonialismo dão início ao processo de construção da identidade nacional. Diante disso, o projeto dos nossos literatos procurou definir-se como um ato de suplência, chamando para si a missão de conferir unidade a um país com fendas de todas as ordens. E a escravidão propiciava inúmeras cisões na sociedade brasileira que deveriam ser encobertas com o manto do nacionalismo. Assim, a política nacionalista ganha contornos concretos na luta empreendida por Macedo, Castro Alves, Aluisio de Azevedo, dentre outros, contra a escravidão. Macedo em As vítimas algozes não foi nota dissonante, buscou cerzir as frestas entre senhores, fazendeiros, escravos e sociedade como se verá posteriormente.

Para além, da herança maldita dos tempos coloniais Manuel Macedo, certamente, expressando o imaginário de muitos outros brasileiros, explicita, na obra, os sentidos da escravidão. A escravidão é “um cancro, sífilis moral que infecciona as casas e fazendas senhoriais”; “ é serpente : sua língua derrama sempre veneno;”;  “ a escravidão , mãe das vítimas –algozes, é prolífica”;  “ monstro desumanizador das criaturas humanas”;  “ é um crime da sociedade escravagista”. E finaliza o livro conclamando a sociedade para bani-la. Nas representações  citadas antes, o literato desenha  a escravidão como doenças malignas e veneno que corroem e definham o corpo social conduzindo-o a deformações que simbolizavam a morte. A morte enquanto  representação simbólica , no pensamento cristão ocidental significa não  um fim, mas o recomeçar de uma nova vida. Assim.  o fim da escravidão poderia significar um novo tempo, o  recomeçar da história brasileira no qual a cultura escrava, negra poderia ser hegemônica desbaratando, então o sonho da elite Imperial quanto à  modernidade e à  civilização, única franja de possível utopia. Ela seria a quebra de uma história linear, pautada na idéia do  progresso e a instauração de uma outra história construída pela voz dos escravos e das demais vozes dissonantes da  elite no Segundo Reinado. Essa possibilidade, gestada na escravidão, era real e sobre isso comenta Fanon[5] estudioso da colonização africana que, a fantasia do colonizado , do oprimido é sempre ocupar o lugar do colonizador, do opressor. Dessa possibilidade de inversão da ordem emerge, no imaginário da elite imperial, branca e culta [6], o medo dos escravos. Assim, pouco importava que o nome  fosse Simeão, Lucinda, ser escravo era a marca mais forte da sua identidade. Todavia, o autor também reconhecia que para além do seu lado nefasto, a escravidão era manancial de trabalho nos campos, riqueza agrícola e amplo  capital que materializava  a fortuna de proprietários, portanto, ao ser abolida teceria cruéis despedidas. 

Nas representações do escritor  a  escravidão  era a mãe que gerava, fecundava e nutria homens escravizados. Ela  tornava perverso o coração dos escravos, desumanizava-os  e  os transformava em monstro que atemorizava toda a sociedade. Ela engendrava o ódio , a vingança, qualidades humanas avessas aos princípios cristãos do mundo ocidental onde  “o sofrer resignadamente” tornou-se, quase um refrão popular, um estatuto do ser humano. Por produzir algozes, a escravidão também carregava  o sentido de criminosa. Mas, ao descortinar os véus que encobrem aquelas representações observo  que o literato se pauta numa concepção de  História cuja preocupação primeira é à busca da   “origem” -  onde estava  a causa da maldade do escravo? e ele facilmente a encontra na  escravidão, fonte geradora da animalização, perversidade, traição , dentre outros  numa relação mecanicista de causa e efeito. Não levava em conta que a realidade brasileira estava plenamente cindida pelas  marcas do período colonial e apresentava uma  fisionomia  multifacetada. Entendo que esta forma de construir a História centrada na relação de causalidade dos fatos, a encaminha rumo uma  linearidade que teria como topo o progresso, naquele momento vislumbrado na  modernidade e na civilização. Esta História linear, na minha compreensão, delineia um momento de perigo, para usar uma expressão benjaminiana, porque possibilita a construção de  uma História oficial que vai sempre excluir e pisotear os vencidos como aponta  Benjamin [7], no caso em pauta , os escravos e celebrar o triunfalismo dos senhores.   

O autor expressa na sua obra  o imaginário ufanista, do Segundo Reinado o qual ,  sob a batuta do Instituto Histórico Brasileiro  (IHGB), edifica a   História oficial do país  como mostra Schwartz[8] 


Composto em sua maior parte, da “boa elite” da corte e de alguns literatos selecionados, que se encontravam sempre aos domingos e debatiam temas previamente  escolhidos, o IHGB pretendia fundar a história do Brasil tomando como modelo uma história de vultos e grandes personagens sempre  exaltados tal qual heróis nacionais.


Assim, as elites imperiais, compostas também por alguns literatos dentre estes Macedo, preceptor dos netos do Imperador, incentivavam a elaboração de uma História que excluía a maioria da população constituída por escravos, ex-escravos, homens livres sem ocupação, que tentava ocultar as nódoas da escravidão. Também evidencia como o Estado apropria-se da História propagando fatos que o beneficiam e impingindo o esquecimento aos que deseja silenciar como  a escravidão , dentre outros, configurando uma  amnésia histórica. 


Na narrativa de Macedo percebo a intencionalidade de realçar a periculosidade , de inculcar  o medo do escravo, sobretudo, aos  senhores com o propósito de movê-los para a emancipação, antes que o escravo a fizesse.  Este medo toma forma exacerbada na segunda metade do século gerando pânico nas Casas Grandes. Sobre a questão   comenta Kátia Matoso, [9]em Ser escravo no Brasil  “os senhores tremem de medo do veneno que pode ser administrado em pequenas doses e alguns dos quais , bem conhecidos , provocam uma astenia fatal “. Este medo dos escravos acalentado pelos senhores me remonta a Delumeau  [10] ao ensinar  que todos os medos contêm, em certo grau a apreensão da morte e, portanto,  o medo não desaparecerá da condição humana ao longo de nossa peregrinação terrestre.  Todavia, não compartilho com o autor a idéia de que  o medo está relacionado á morte , penso que ele  se forja , fundamentalmente, na natureza do desconhecido, nos caminhos que o homem nunca dantes experimentara e a morte é, sem duvidas, um destes caminhos. No entanto, ele ganha coloridos diferentes em cada época, por exemplo, no Império brasileiro , a guerra não mais assumia lugar de destaque  na panóplia dos perigos,  mas o escravo negro.  
Entendo  que este imaginário do medo que fora pautado no  “perigo negro” contrapunha-se às ameaças dos cativos ao poder dos senhores, já instituído pela sociedade. Ele representava o desejo da  elite de defender a sacrossanta ordem da sociedade imperial, caminho infalível  que conduziria o país  à modernidade e civilização. Além disso, ele também se ancorava no receio que o senhor cultivava daquele  que era diferente dele , que dispunha de costumes, valores não conhecidos por eles, que viera de outro lugar, que tinha uma religião, cerimônias e ritos cujos sentidos os escapava. Por isso, representava ameaça cultural tanto aos  senhores quanto  á sociedade imperial em sua totalidade. Fanon[11] ao trabalhar a deslocação dos negros  da África para as Antilhas mostra, na voz de um escravocrata antilhano ,  o temor do negro como um traço cultural, senha dos colonizadores : “ ...nossas mulheres estão à mercê dos pretos.... Sabe Deus como eles fazem amor”.  Esta fala mostra o profundo medo do negro figurado na sexualidade que para o autor mencionado é signo da condição colonial. O passado do negro estava amarrado a traiçoeiros estereótipos de primitivismo e degeneração e não produziria uma história de progresso. Talvez, por isso o seu passado  tenha sido renegado na história brasileira e a África sempre vista como um continente exótico e distante da nossa história.


Um passeio pela literatura aponta que da Antiguidade passando pela Renascença , o discurso literário exaltava a valentia, a coragem dos homens que dirigiam a sociedade para justificar o poder de que estavam revestidos. O medo era peculiar aos vilões. Somente mais tarde , com a Revolução Francesa,  os vilões conquistaram pela força o direito à coragem. A partir de então, a coragem também pode ser uma qualidade dos excluídos. Contudo, no Brasil mesmo no final do XIX, a imagem do escravo era mantida como vilão e  fora disseminado pelo imaginário do medo seja na literatura, no teatro, na pintura , nos jornais dentre outros. Contudo, vale lembrar que fazeres dos escravos tais como: envenenar o senhor, planejar fugas dentre outros, eram dispositivos simbólicos por eles utilizados e que, certamente representavam o desejo do fim de uma ordem social repressiva e ultrapassada e, também a esperança de um dia conquistarem a sonhada liberdade. Neste sonho eles pareciam procurar o sentido para suas vidas. Todavia, essas práticas transgressoras estavam sempre acompanhadas de audácia, imaginação e coragem,  qualidades do escravo que a elite não desejava que se tornassem visíveis na sociedade, o me remonta a  Benjamin[12] ao ensinar que na disputa de poderes, a confiança, a coragem, a firmeza , o humor não podem ser representados como despojos atribuídos ao vencedor. Elas questionarão sempre a vitória dos dominadores. Por fim, percebo uma intencionalidade do autor em propagar o “ perigo negro” e ocultar as qualidades dos cativos e que, a disseminação daquele imaginário ora  realçava os atributos biológicos do cativo,  ora se pautava em  atributos  culturais.
Em 1839 Debret , em sua Viagem pitoresca e histórica ao Brasil retrata  o cenário brasileiro da escravidão. Em cenas ricas de cores mostra  a Malhação de Judas no sábado de Aleluia. Nesta observo um Judas enforcado em uma árvore e o outro sendo arrastado por um grupo de crianças. Chamou –me a atenção  os proprietários serem representados por Judas de palhas que tinham os rostos brancos, enquanto os  participantes que faziam a “ malhação” eram negros, na minha  interpretação escravos.  A aquarela simbolizava a sociedade escravocrata, o imaginário do medo se faz presente  nos quadros de enforcamento e  espancamento, dentre outras violências  físicas dos cativos contra seus proprietários. È a arte  que, modelada pelo sonho recriava a realidade cotidiana e espargia a imagem do escravo como ameaça aos seus  senhores. 


Emília Viotti da Costa, na obra clássica  Da senzala à colônia, cita que, certa parisiense ao viajar pelo Brasil ouvira contar que um senhor , após castigar um escravo, fora por ele mordido e tivera que “cortar o membro ferido” .  Isto porque  o negro dispunha em seu sangue “ um princípio acre que  mata o branco”.[13]  Comentário não muito diverso  fizera o Conde de Gobineau, então Ministro da França no Rio de Janeiro, em relatório ao Ministro dos Assuntos Estrangeiros em Paris, em 1869, mesmo ano em que Macedo escrevera As vítimas algozes, o qual afirmava a  degeneração inevitável dos brasileiros, com sua  “população toda mulata, viciada no sangue, viciada no espírito, feia de dar medo”.[14]  E assim, buscava naturalizar, além mar, o medo do negro por seus atributos biológicos. Macedo também, assim o fez, na obra em tela, ao dar destaque aos  traços biológicos de Pai-Raiol, personagem central de um dos seus quadros de escravidão como desengonçado, feio de causar medo:

 
“ Era um negro africano de trinta e seis anos , homem de baixa
estatura , tinha o corpo exageradamente maior que as pernas,
a cabeça grande , os olhos vesgos, mas brilhantes (...) mostrava
os caracteres físicos de sua raça; trazia nas faces cicatrizes
volumosas (...) dentes brancos , alvejantes, pontudos, dentes
caninos que pareciam ostentar-se ameaçadores; sua boca era mal
fechada por três lábios, a barba retorcida e pobre...” ( p. 82). 

Na construção literária do autor observo que ele  busca naturalizar as imagens físicas, biológicas do escravo negro africano como um ser não humano, um animal que, com dentes afiados poderia atacar o seu senhor a qualquer momento,  ser  inferior na escala darwiniana. Neste sentido, reafirma o medo referenciado nos traços biológicos do escravo.

Delumeau [15] coloca que o medo está sempre associado à noite , isto talvez esteja associado aos  perigos que a humanidade conheceu durante a noite fazendo nascer um medo quase natural da escuridão, a privação da luz é sempre uma sedução à busca da imaginação. Por isso, acrescenta o autor, as letras clássicas e a Bíblia durante muito tempo conjugaram suas ações para induzir nos homens o medo da noite. Shakespeare revela inúmeras ações noturnas em suas tragédias, Macbeth  evoca “ a mão sangrenta e invisível da noite”. Era a escuridão evocando o medo. Refletindo sobre este terror da noite, do escuro apontado por Delumeau  em diversos momentos históricos , posso inferir que esta apropriação do medo a partir da escuridão, talvez esteja associada  à construção do medo dos escravos que, nos tempos iniciais da escravidão eram negros africanos.  Assim, a imagem do escravo negro tal qual à noite fora  associada ao medo, ao perigo, imagem que até hoje , 2005, continua muito presente. A cor da pele, a etnia passa a ser decisiva na representação do perigo. Ser escravo/negro era sinônimo de bandido,  de traidor e a vingança e o ódio eram sentimentos peculiares a seus corações, móveis que impulsionavam suas práticas de barbárie. O imaginário do medo sedimentava as diferenças culturais, históricas, raciais dos discursos dos senhores na sociedade brasileira no XIX. Assim, a escravidão parecia se apoiar na crença da supremacia racial de que sob cada pele escura havia um algoz, convicção que cresceu, espalhou-se e fortaleceu o mito racista.  Talvez aqui se encontre um dos pilares sobre o qual florescera o racismo no Brasil.  

Todavia penso que as representações de Macedo ganham sentido mais amplo se analisadas dentro de um quadro da escravidão enquanto uma instituição social e se relacionadas ao momento histórico em que foram produzidas. A escravidão fora  instituída na sociedade brasileira enquanto um sistema de poder expresso na relação social entre senhor e escravo; branco e negro e assim, naturalizada pela sociedade.  Na  esteira de Castoriadis [16]toda relação social institucionalizada é uma instituição, caminho diverso da concepção marxista que a via como integrante da superestrutura e pela infra-estrutura determinada.  

A instituição  escravidão era constituída por atos reais – provisão da força de trabalho, mas também por uma gama de representações expressas nos mitos, ritos e na simbologia. O título de propriedade da terra, o chicote que açoitava o escravo; o colar de ferro, dentre muitos outros, são símbolos dos direitos dos senhores sobre os seus escravos,  reconhecidos socialmente. Assim, a escravidão contava com uma rede simbólica, cravada na sociedade. È através desta rede  simbólica    que  o imaginário do medo se  exprimia como vemos no quadro de Debret comentado antes e na literatura de Macedo, criações que transgridem as fronteiras do real , pois a imagem seja pictórica, literária, videográfica  não expressa apenas o óbvio, ela  dá asas à imaginação. Nesse sentido,  o simbólico pressupõe o imaginário. Assim, o imaginário do medo por meio da  rede simbólica justificava o sentido da existência da escravidão – transformar os homens em objetos, coisificá- los. Desse modo, ao mesmo tempo em que a escravidão  ao suprir as necessidades materiais da sociedade, ela se reinventava e redefinia novas maneiras  de responder e  assegurar às necessidades  sociais e culturais  da sociedade. Neste sentido,  a sua função econômica e a sua função simbólica  misturavam-se no labirinto da vida social garantindo a sobrevivência da sociedade e apontando para a necessidade de um apego à ordem institucional com o propósito de  assegurar às elites a vida a que aspiravam continuar. 

Contudo, no final do século nem  o imaginário do medo dissipado na literatura , na pintura , no teatro e nem mesmo o vento nacionalista conseguira  cerzir as profundas fendas econômicas, políticas, sociais e culturais existentes na sociedade brasileira. Por estas  frestas   brotara  um fio de luz,  o movimento abolicionista   que  iluminara  as cidades mostrando que a diversidade se impunha sobre a homogeneidade. Sobre o perigo desta homogeneização recomenda Bhabha [17] que é necessário não se fazer do passado uma celebração e nem do presente uma homogeneização,uma coisa una, é preciso deixar ouvir as vozes que se escondem por traz do que está visível. Pois o oculto pode ser rico e múltiplo. E esta riqueza e pluralidade emergiam na voz dos abolicionistas.  Cresceram as  pressões internacionais uma vez que o Brasil fora o ultimo país do mundo a efetivar a emancipação; a cisão entre os senhores escravocratas se tornara chaga social aberta – os senhores da região cafeeira do Sul desejavam a continuidade da escravidão; os senhores do Norte que já sofriam com a falta de força de trabalho, eram anti-escravagista; na sociedade fervilhavam “ idéias fora do lugar”, crescem o numero de furtos, fugas e crimes de cativos contra senhores e feitores, o escravo misto de tigre e serpente   atacava inesperadamente, outras possibilidade de aquisição de força de trabalho despontava sob a égide da imigração estrangeira, a modernização da agricultura se tornava uma possibilidade. Diante deste quadro a abolição parecia se tornar  “ ponto de honra nacional” [18].  

O fim da escravidão, para a camada senhorial escravocrata, representava uma ameaça ao imaginário civilizador, ao  sonho de um país moderno que desde há muito tempo os acariciava. Diante disso,  ela se  agarra, como tábua de salvação, à função simbólica da escravidão  na disputa pela hegemonia do poder. Modela e recria a rede simbólica, fortalece a  disseminação do imaginário do medo que seduzia à sociedade a acreditar no escravo como traidor, vingativo  e, na  emancipação como quimera perigosa para a ordem social devido à sua incontestável força de sedução. Ele exaltava através das representações engrandecedoras o poder dos senhores escravagistas cuja causa defendiam e para o qual pretendia obter o maior número de adesões. A camada senhorial escravocrata  parecia entender que a força do imaginário sustenta, naturaliza o poder o que levou Backzo [19]  a afirmar que “ governar é fazer crer”.

È importante observar que o imaginário do medo  fora utilizado tanto pela camada senhorial escravocrata quanto pelos emancipacionistas como um instrumento de disputa de poderes na sociedade, contudo matizado por diferentes significações. Os proprietários de cativos apropriavam-se daquele com o propósito de naturalizar na sociedade a imagem do escravo como selvagem, bárbaro, portanto que representava um obstáculo ao progresso e modernidade do país.  Enquanto tais,  deveriam continuar sob a tutela dos feitores sentindo o açoite dos chicotes  e a privação de não serem homens por inteiro. A liberdade para os escravos soava como um sacrilégio para aqueles homens. E, na trama de Macedo percebi que ele, expressão das  vozes de muitos outros emancipacionistas, ao desvendar o presente do país pleno de tensões, destina sua narrativa, fundamentalmente aos senhores. Argumenta com ardor a tese  - a escravidão é um mal que, transforma os escravos,  em algozes e os senhores em vítimas e deve ser gradualmente extinta , com indenização para os proprietários de cativos, reafirmando a compreensão de que os fios da literatura são tecidos na teia do tempo, ela se engendra no histórico social. Desse modo, Macedo ,  como  os demais abolicionistas da época, direcionam o imaginário do medo para os proprietários de escravos na tentativa de seduzi-los rumo à emancipação.    Nabuco justifica  este  olhar dos abolicionistas:  

“ A propaganda abolicionista, com  efeito, não se dirige aos escravos.Seria uma covardia, inepta e criminosa (...) suicídio político porque a nação   inteira, vendo uma classe , e é essa mais influente e poderosa do Estado, exposta à vingança bárbara e selvagem de uma população mantida até hoje ao nível dos animais (...)  pensaria que a necessidade  urgente era salvar a sociedade, a todo custo  por um exemplo tremendo e este seria o sinal de morte do abolicionismo “.  

Percebo no discurso de Nabuco, compartilhado por  outros abolicionistas, que o enfoque do movimento emancipacionista fora  à escravidão e não o escravo , ser humano capaz de direcionar os caminhos de sua História. Nos imaginários destes homens, os fazeres transgressores dos escravos eram apreendidos pela sociedade como brutais , animalescos, e enquanto tal jamais teria o perdão daquela. E, sem  o perdão social ,  o caminho a ser palmilhado seria a manutenção da escravidão, trilha que representava o castigo merecido aos escravos pela traição e  a vingança aos seus senhores. Compartilhando com esse imaginário, Manuel Macedo no seu trilhar literário não mostra disfarces humanistas ao dissipar o imaginário abolicionista. Nada de conclamar os escravos à sublevação, nada de evocá-los como seres humanos que tinham direito ao amor, à liberdade e a vida como o fez Castro Alves[20], nada de perceber  a fuga, os envenemamentos, os furtos como formas de resistência, como forma de fazer eclodir as vozes dissonantes na sociedade. 

Continuando na busca de decifrar o não visível nas imagens literárias de Macedo, noto que o autor compartilhava o imaginário da elite que se mostrava insatisfeita com os princípios e práticas da administração portuguesa e voltava o seu desejo para a modernidade francesa :  

“ Ainda bem que a força da necessidade e da lição da experiência  têm já introduzido em   muitas fábricas as máquinas e os processos que economizam tempo, gente e dinheiro, e na preparação e na limpa das plantações e sementeiras os instrumentos que produzem igual   resultado “ ( p. 168).

No trecho apresentado, o literato realça os benefícios do progresso expressos na mecanização agrícola. Assim, interpreto que fora,  com o olhar voltado para as promessas da modernização e da civilização que ele também rejeitara a escravidão. Vale lembrar  que o futuro moderno e civilizado do país movia o projeto literário dos nossos escritores, a intelectualidade  e o poder monárquico no Segundo Reinado, aliaram-se no projeto  que  conduziria  o país à  civilização e ao progresso [21] e o esteio desse progresso seria  a agricultura e a escravidão.  Assim, a emancipação para Macedo não simbolizava mais que, um passo a frente na linearidade apontada pelo progresso rumo a modernidade e a civilização.do país. Todavia, reconhecia Macedo que a elite brasileira embalou o país com a tolerância do tráfico de africanos, fez o país acreditar que sem ele a agricultura feneceria e, o imaginário nacionalista que pretendia cerzir as fendas do período colonial fazia a sociedade acreditar na soberania nacional como forma de resistir à prepotência estrangeira. No entanto, subitamente aos sons de canhões ingleses , ocorrera a  sentença de morte do tráfico negreiro, sob o clima de injurias e afrontas ( p. 14). E a pátria envergonhada somente escondeu o seu rosto. A resistência, narra o autor, foi mais uma vez adiada ( p. 16).  Percebo aqui, que o desejo de modernização que povoava o imaginário do literato cedia espaço para  as críticas ao nacionalismo do Segundo Reinado, para a percepção da diferença nos mosaicos multiformes  que construíam a realidade brasileira

No discurso narrativo d e Macedo  observo ainda que, na defesa da emancipação ele  centra sua atenção na instituição escravidão enquanto um mal social e não, no escravo enquanto ser humano. Este caminho o diferencia de Castro Alves [22], poeta que canta o direito à liberdade dos escravos expressa na capacidade de sonhar, de  criar/recriar, de novas feições ao mundo , qualidades peculiares ao ser humano, que a escravidão os coibia de vivenciá-las. Defende nitidamente a camada proprietária, demonstrando a necessidade dela mesma fazer a emancipação antes que aquela acontecesse por meios cruéis, antes que a nefasta influencia de tais “ vítimas algozes” , das senzalas rebeldes pudessem macular os sobrados brancos. E ainda, semeava  indulto para os proprietários de escravos propondo-lhes uma indenização.

No de entanto, alertava  que a emancipação imediata e absoluta dos escravos poderia vir a ser  louco arrojo que poria em convulsão o país,  e em soçobro a riqueza particular e pública, em miséria o povo e em bancarrota o Estado. ( p. 3).  Por isso, acreditava que a sua realização deveria ser sem pressa, tal qual se passam as horas nos dias de angustia. Assim, aceitava a lei do ventre livre, a lei dos octogenários, dentre outras que para ele  e demais emancipacionistas, significavam uma forma efetiva de emancipação gradual. Todavia , ainda assim, narra o autor , a dor não deixaria de grassar a sociedade brasileira e conclama , antes que a trovoada comece a rugir, a união entre  governo e proprietários de escravo no sentido de auxiliar o Estado na hercúlea tarefa de emancipação, para que ela fosse realizada com menos sacrifício possível. (p.4).  Aqui, interpelo o narrador, menos sacrifícios para os escravos, para os senhores ou para ambos? A leitura do livro no entanto, não me deixara  sombra de dúvidas que o literato cantara a escravidão, dissipara o imaginário do medo com propósitos que mais se aproximavam dos senhores proprietários  do que dos  escravos.

Numa oposição bem marcada na “visão do mal” e “visão do bem”, o primeiro representado pela escravidão e senhores proprietários de cativos como o fazendeiro Paulo Borges, Cândida, dentre outros e a “visão do bem” expressa pela – emancipação de  escravos como Simeão, Pai-Raiol etc.Percebo, o autor revela uma  visão dicotômica do mundo, a qual tem lugar comum  em outros trabalhos de  Manuel Macedo.  Em A luneta mágica, por exemplo, livro também de 1869,  uma conversa entre Simplicio, o “escravo moral”, o míope , e o mágico que lhe oferece as lunetas da “visão do bem”, da “ visão do mal” e do “bom –senso”, caiam literalmente as máscaras e ambos se viam redefinidos não como personagens singulares , mas como ,  de um lado o “Exemplo” e, do outro, “A lição”.  Na peça Luxo e Vaidade escrita em 1860, o fazendeiro Anastácio, no meio de um baile de máscaras, renomeia os personagens. Assim, para  Maurício, funcionário público endividado,   coloca Anastácio: “ o nome que te cabe é a Fraqueza”. Hortência, sua mulher fora renomeada como “Vaidade” . E, assim, por diante, Mauricio ia trocando os nomes dentro da polaridade Luxo e Vaidade.

Observo que na sua tese emancipacionista citada anteriormente, oferecia indulto aos senhores de cativos ao propor que estes fossem indenizados pela abolição; ele lutara pela abolição - dissipara o imaginário do medo junto aos senhores; mas desejava que ela fosse realizada de forma  lenta e gradual certamente , para não prejudicar abruptamente os proprietários de cativos. Deslindava as questões internas do país, todavia não se desgarrava do sonho de um dia o Brasil ser marcado pela modernidade européia. Assim,  explicitava tanto em favor dos escravos quanto em  beneficio dos senhores. Para compreender este traço híbrido, marcante em As vítimas algozes, contudo traço comum em outros literatos que compartilharam a mesma época com Macedo , penso ser necessário um olhar para o país à época. Era  final dos anos 60, momento  em que o país ainda aturdido com o Grito do Ipiranga que embora não tenha marcado nossa definitiva redenção da situação de colônia, a configuração e os desejos da elite se redefinem. O  sonho dessa  estava do outro lado do Atlântico, era  o paraíso europeu, questão já muito bem estudada por Sergio Buarque de Holanda em Visão do Paraíso[23]. Movida por esse sonho,  a elite brasileira começara a se preocupar em destrinçar  a  configuração do país, em contornar seus traços identitários com o propósito de  transformá-lo em nação. Isto me faz lembrar Baczko [24]  ao mostrar  que o princípio que leva o homem a agir são as suas paixões e desejos.

Contudo,  os literatos que constituíam fração da elite , embalados pelo desejo de identificar o país a partir de sua configuração interna, pelas mãos do romantismo, empenharam-se em  compreender e cantar a natureza do país, sua gente, seus costumes realçando a diferença pelo exótico em relação ao outro que não mais era Portugal, mas Paris, símbolo da modernidade européia. Buscaram  também reconstruir o outrora do país que, até então não despertava nenhum  interesse para nós e  do qual a Europa tanto se orgulhava. Assim, por meio desse projeto literário romântico tentaram os escritores, reunir os cacos deixados pela colonização e conferir a estes  um selo uniformizador - a nação.[25] Pareciam acreditar ser possível amalgamar a sociedade em torno de seus mitos, de suas crenças, do seu imaginário conferindo a literatura uma função sacralizadora do mundo como propõe Julia Kristeva[26]. Todavia não  compartilho com a idéia da autora quanto a função sacralizadora da literatura e me aproximo da compreensão de Glissant, um literato caribenho que concebe a literatura como uma oportunidade de dar visibilidade ao outro, as vozes dissonantes  da sociedade.[27]  È dentro da  compreensão da literatura  como uniformizadora e  assentada na origem que José de Alencar, direciona sua preocupação em reconstruir o outrora, para a valorização do índio como  o genuíno brasileiro, primeiro habitante  do país. Nesta senda ele aponta o índio como o personagem principal de muitas de suas criações literárias, glorificando-os. Em sua representação literária o índio afigura- se como o exótico, o nacional e ao mesmo tempo como promessa para a modernidade. Assim, o escravo /negro[28] fora excluído da nação por ser considerado estrangeiro, um ser “irracional” quase um “monstro” que evocava um tempo de barbaria. Desse modo,  ora a construção da identidade nacional  se   ancorava  na modernidade européia, ora  em  personagens e motivos nacionais, negando os parâmetros europeus. Está configurada a ambigüidade na  qual Macedo também se inscrevera,  ora  defende a emancipação , mas só se dirige aos senhores , que se diz abolicionista, mas reforça o “perigo do negro”, que proclama a emancipação para dar espaço a modernidade, que afigura o negro como ser inferior para exaltar os proprietários , homens brancos letrados. 

Traiçoeiro é o Outro

Ao tecer a intriga da obra analisada, Macedo aponta  um leque diversificado de personagens: senhores proprietários, escravos e homens livres sem profissão e estrangeiros que para cá vieram “fazer“ o Brasil. Todos, no entanto mantinham diferentes relações com o mundo dos escravos. Todavia , noto que embalado pela  visão binária do mundo, o autor  apresenta os senhores e seus descendentes envoltos nos mantos da bondade, da honestidade e da simpatia em oposição aos escravos que  exibiam práticas de maldade, desonestidade, de vingança. Assim,  as identidades dos senhores e escravos foram definidas de forma relacional, Eu x Outro.  

No  entanto,  esse Eu  não era somente constituído pelos senhores , a estes se misturavam os estrangeiros , na obra de Macedo representado por Souvanel, professor de canto que se enamorou de Cândida; senhores como o fazendeiro Paulo Borges; Tereza, Florêncio, comerciante e proprietário de um sítio; homens livres sem profissão como Barbudo, mentor intelectual do crime ao seu senhor praticado por Simeão e cúmplice do assalto a fazenda dos senhores Domingos e Angélica; Doutor Bonifácio, que se impõe como médico qualificado, porém também se apresenta como curandeiro, dentre outros. Estes são os personagens que encarnam a elite imperial nos quadros de escravidão de Macedo. O Outro, está desenhado, fundamentalmente,  na figura dos  escravos como: Simeão mulato; Pai –Raiol, escravo africano, negro; Lucinda também mulata e mucama de Cândida , dentre outros. No entanto, apresenta  o autor, uma escala de prestígio social dos cativos pautada nos fazeres daqueles. Lucinda era mucana, morava na casa dos senhores, Simeão era escravo de extrema confiança de seus senhores , também morava com os senhores; Pai –Raiol, trabalhava na roça e vivia em senzala. Assim, os que conviviam com os senhores realizando tarefas domesticas, na escala social de Macedo  gozavam de maior prestígio social do que aqueles que se dedicavam à  lavoura e   viviam nas senzalas. Os escravos domésticos viviam ao lado de seus senhores, nas Casas-Grandes,  o que propiciava intimidade e, muitas vezes afeição daqueles.[29] Era o mundo das mucamas como Lucinda , garoto de recado como  Frederico,  dentre outros. Contava uma velha ladainha que “ negro no eito vira copeiro, não óia mais pra seu parceiro”[30], como a lembrar a distancia que separava esses escravos dos demais cativos agrícolas.

Nesse sentido, entendo que fora nessa relação cotidiana entre a elite da qual faziam parte os senhores e os escravos que fora  construída a identificação  dos senhores e dos  escravos. Essa compreensão me remonta a Hall [31]  ao mostrar que as identidades são construídas/reconstruídas de forma relacional e historicamente, ou seja, elas ganham o contorno da época em que se vive.Assim, ser senhor de cativo significava ser proprietário rural, integrar a elite do Império também constituída pelos comerciantes, pelos que lidavam com a burocracia emergente no país, juntamente com os representantes do governo.[32] Portanto, estar investido da propriedade do escravo, do direito de açoitá-lo, de castigá-lo, de negá-lo as possibilidades de amar e ser amado, de impor a eles sua cultura. Enfim, ser senhor expressava ter em mãos o pleno poder sobre os escravos.  

Ser escravo significava juntamente com os escravos livres, integrar um grupo de identidades minoritárias, de profundas diferenças culturais dos senhores; vozes e histórias dissonantes que afirmam as fronteiras da existência insurgente da cultura; um ser sem corpo, nomes, bens próprios e nem passado; ser um “bem” dos senhores; ser trabalhador manual por excelência; enfrentar o trabalho incessante de sol a sol e  não ter o direito a expressar a sensibilidade que alimenta o coração.  Enfim, ser escravo era sonhar incessantemente com a liberdade, porto no qual se ancorava a esperança de  algum dia, tornar realidade o sonho de ser sujeito de si mesmo. Ser senhor e ser escravo compunham mundos   conflitantes, divergentes  como a noite do dia, mas se aportavam em um  lugar comum,   a escravidão, traço que  não anulava a diferença.

Todavia, essa relação entre os senhores e o grupo ao qual pertenciam e os escravos fora edificada no dia a dia sob  um campo de tensões pautadas em marcas de dor, de vingança e da violência institucionalizada. Desse modo, percebo essa relação tensa como uma construção histórica e não biológica. Relação essa que perpassa todos os quadros da escravidão narrados por Macedo.  Barbudo  sugere  ao escravo Simeão, roubar o que fosse possível da casa senhorial antes de assassinar os seus senhores; Lucinda tentava vender a reputação e a honra de sua senhora a preço de fugazes prazeres com Souvanel; Pai- Raiol com o concurso de Esméria  extermina a família de seu senhor  - envenena a mulher e dois filhos, dentre outros.

No entanto, muitas vezes, mostra o literato que essa relação conflituosa fora mediatizada por simulações de afeto entre escravos e senhores e vice versa. Simeão, cuidara do seu amo na doença, “ o crioulo silencioso se mantinha dia e noite em pé a alguns passos do leito do senhor “ ( p. 22); ainda que o seu imaginário estivesse povoado de desejo da morte do seu senhor; Lucinda a mucama,viva e alegre “ costurando bem, falando em modas, perspicaz e paciente logo conquistou a confiança de sua senhora” ( p. 166) embora assediasse sua senhora com ensinamentos rudes que violavam o bom tom da época. Atribuo que esta tensão entre senhores e escravos está localizada na incompatibilidade entre realidade e desejo tanto dos senhores quanto dos escravos . Os primeiros, viviam posições de mando, de poder, muitos deles  desejavam que a escravidão se perpetuasse na sociedade brasileira. Os segundos , viviam uma realidade de exclusão social aspiravam ao desejo de não mais serem objetos, “coisa” na mão dos senhores; carregavam o sonho de serem sujeitos de si e da História. Assim, real e imaginário se misturam na configuração da História.

Nesse embate permanente entre Eu – senhores/elite e o Outro – escravos e ex-escravos, os primeiros que detinham a hegemonia política e cultural da sociedade buscavam também a hegemonia na relação identitária entre eles e os escravos tentando sufocar  a diferença  existente entre eles. Assim, mantinham-se fiéis aos propósitos do Estado Imperial  de homogeneizar as vozes em desarmonia na sociedade, sob o véu da Nação. Esta hegemonia do Eu dos senhores/elite fica bem explicitada em As vítimas algozes.  Os senhores expressando o imaginário da elite imperial constituíam-se no Eu e os escravos expressavam a voz do Outro, do diferente daquele. O literato reitera constantemente a afirmação de que o contato direto com os escravos, ainda que não causasse danos mais diretos, corromperia inevitavelmente os costumes, os valores das famílias senhoriais. Esta afirmativa fica explicitada em sua narrativa na decadência do fazendeiro Paulo Borges que se torna amante da escrava Esméria; ou na transformação da menina Cândida em uma namoradeira, vaidosa e cheia de mentiras, dentre outras situações. Desenha cenas de bárbaro assassinato de senhor como o fez Simeão, cativo de estimação de seus senhores; de envenenamento e feitiçarias que conduziram à morte da família do fazendeiro Paulo Borges realizadas por Pai- Raiol, escravo africano; de perversão dos valores morais familiares tal fora o caso de Lucinda, mucama que transformara a sinhá em leviana. Assim, o literato reconstrói e apresenta a imagem do escravo como algoz, como vingativo e vilão,  escória da sociedade brasileira, reafirmando  a supremacia do Eu,  senhor/elite sobre o Outro.

Esta tentativa de sufocar a diferença, negar o Outro – o escravo me remonta a  Delumeau[33] ao ensinar que ao lado das apreensões vindas de nós mesmos  tais como – medo do mar, da noite e das motivadas por perigos completos como –terremoto, maremoto, incêndio etc , existem os medos culturais , que invadem os indivíduos e as coletividades , fragilizando-os. È  o medo do outro. Este está relacionado à apreensão provocada pelo desconhecido ou que pouco conhecemos, que vem de outro lugar, que não se parece conosco e que, principalmente, não tem o mesmo modo de vida que nós. Por estes motivos o outro causa medo, simboliza o perigo. E quem eram os escravos senão homens desconhecidos, do além mar que atravessaram o Atlântico carregando consigo os grandes silêncios de noites povoadas de histórias de animais, de feitiços, que falavam uma língua desconhecida; negros que chegavam em “ terra de branco”[34]. Por disporem de características tão diferentes dos senhores despertavam medos, simbolizavam o “perigo”, imaginário que foi sendo transmitido de geração para geração na sociedade brasileira.

Identifico também essa hegemonia do Eu dos senhores/elite quando o autor ao reconhecer o passado africano de Pai – Raiol o diferencia dos mulatos Simeão e Lucinda. Aquele “ se exprimia mal e deformemente em portugues, introduzindo muitas vezes na sua agreste conversação juras e frases africanas”, embora há duas décadas vivesse no país .

Seu falar mal, para o autor, parecia ter a intencionalidade de facilitar o planejamento e danos na casa do seu senhor. Ensimesmado, ele trouxera consigo muito da cultura africana cosmogenica. Fora  do serviço embrenhava-se pelas matas em busca de raízes e plantas que provocavam o envenenamento e outros males, era “ o feitiço que como a sífilis viera da África” ( p.72) continua o autor, o escravo africano trouxe não somente sua força de trabalho, mas “crenças absurdas” , uma “religião extravagante”, a “ alucinação do feitiço”que inoculara na terra do cativeiro.

Pai-Rayol, nas imagens literárias de Macedo era um escravo solitário, pouco freqüentava a venda , voz   tristonha que, no interior de sua senzala, repleta de símbolos e amuletos  parecia buscar, através de sua religião, a cintilação divina. Estas imagens me fazem lembrar a música – Se eu quiser falar com Deus, de Gilberto Gil:

Se eu falar com Deus
Tenho que aceitar quiser a dor
Tenho que comer o pão
Que o diabo amassou
Tenho que virar um cão
Tenho que lamber um chão
Dos palácios, dos castelos
Suntuosos dos meus sonhos
Tenho que me ver tristonho...                      

Pai-Raiol, a semelhança de outros escravos africanos, talvez buscasse na cintilação divina, a força para suportar a ausência da terra onde deixaram fincadas suas memórias, para manter o direito de sonhar que um dia, a vida  do Outro – seus senhores poderia ser a sua.  

Chamou-me atenção nos quadros de escravidão apresentados por Macedo, dois escravos serem  mulatos, apenas o africano era negro.  Assim, se refere aos mulatos:

Os crioulos são muito mais inteligentes e maliciosos  que
Os negros da África (...). O escravo africano mata o senhor
e se afasta do cadáver: o escravo crioulo antes de matar atormenta
e  ri das agonias do senhor, e depois de matar insulta e esquarteja
o cadáver (...) a escravidão inteligente é dez vezes mais perversa
do que a escravidão brutal. (p.75).

O escritor apresenta uma diferença étnica e cultural entre o escravo negro e o crioulo afirmando a superioridade deste , na escala darwiniana, sem dúvidas ponto de referencia do escritor. Num diálogo entre Pai-Raiol e Esméria ele sugere ser ela “mais bonita “ do que a sua “senhora branca”, capaz portanto de seduzir o fazendeiro. Todavia, logo depois ele complementa – “ Tereza era bem feita , engraçada e  mimosa de rosto e de figura a não admitir comparação com a crioula’ ( p. 211) não deixando dúvidas na sua crença na raça branca como superior.  Desse modo, deixa marcada a sua convicção de superioridade da raça branca. Ainda em relação a esta questão étnica , o escritor  realça o “olhar invejoso” de Lucinda aos seios “ brancos como a neve” de Cândida; o olhar de desejo de Simeão aos “ seios nus e formosos “ de Florinda sua sinhá-moça, obviamente branca. Assim, desvelava Macedo, narrador cúmplice da camada senhorial, a superioridade da raça branca e a naturalização do comportamento depravado dos escravos. Essa crença na supremacia racial pode ter muito contribuído para a compreensão de que sob cada pele escura havia um algoz, um traiçoeiro, imaginário que fortaleceu o racismo no Brasil.

O literato,  revela uma incessante desconfiança dos senhores diante do “outro”, potencialmente traiçoeiro seja eles escravos, estrangeiros ou homens livres. Ao se imporem hegemonicamente, eles não enfrentaram o desafio de  descortinar o véu da diferença cultural dos escravos negros africanos. Eles os olhavam, mas como cegos não os viam porque vê-los na sua dimensão cultural significava reconhecer que eles tinham um passado que ainda orientava suas ações e isto seria retirar o “eu” da posição de domínio[35]..  Preferiram construir e naturalizar sobre o passado do negro africano, estereótipos de primitivismo como algoz, feiticeiro, “tigre” desse modo, como incapaz de produzir uma história de progresso no país.  Assim, os senhores  narrados por Macedo ao ocultarem a diferença do Outro faziam eclodir a imagem do escravo negro como selvagem, bárbaro em contraposição à civilidade, proposta do imaginário europeu.

Os senhores se negavam a  entender que o passado, a cultura dos negros escravos  não se dissipara na travessia do Atlântico, eles se valiam de suas referências africanas de sentido e de crença na “leitura” do novo meio, ainda que estas a cada instante fossem reconstruídas[36]; que o  negro escravo ao negociar seu passado cultural na nova cultura reconstruíra alguns valores e sentidos , mas também impusera suas marcas culturais seja na culinária, na musica ou nos cultos afros etc. Na linguagem literária de Salman Rushdie podem ser nomeados de homens traduzidos, transpuseram a fronteira africana trazendo consigo sua cultura , sua identidade cultural a qual nos embates cotidianos fora paulatinamente sendo reconstruída. Para eles transpor a fronteira africana fora o começo, o ponto de partida de uma vida referenciada em duas culturas, uma da terra onde nasceram e teceram suas identidades étnicas e a outra onde viviam, trabalhavam, mas nem sempre onde estava o seu coração, questões que os senhores de Macedo preferiam olvidar.

Tentando dar visibilidade aos interditos de Macedo em As vítimas algozes, observo a cumplicidade do literato com os senhores de cativos. Ao tratar do imaginário do medo dos escravos como tema central da obra , ao estabelecer hierarquia cultural entre crioulos e negros africanos percebo que por trás de sua visão literária se encontrava o  desejo da miscigenação, o “ideal do branqueamento”, o que mostra que a literatura se forja sobre os trilhos da História. O “ideal de branqueamento” proposto por Oliveira Viana[37] e que tomara conta do imaginário de  sua época afirmava que , ao trilhar este caminho, o Brasil alcançaria uma pureza étnica,  ao mesmo tempo evitaria que o mestiço fosse degenerado , pois iria   assimilar cada vez mais  as características do branco e não das raças primitivas que entrariam no processo de miscigenação, o índio e o negro. Assim, o imaginário do medo propagado pelo escritor pode ter o sentido de medo do “enegrecimento “ do país , questão   inadmissível à época  uma vez que a tríade branco-índio- negro se encontra e se “dissolve” em uma categoria comum fundante da nacionalidade[38] . Estava construído o mito da democracia racial, naturalizava-se a  exclusão do negro na formulação de uma teoria do tipo étnico brasileiro. Percebo aqui uma rigidez na construção identitária daqueles pautado no não reconhecimento do outro e, na aceitação da ordem social como imutável, o que fugisse da ordem seria degeneração. Assim, essa hegemonia do Eu sedimentava a diferença cultural na sociedade.  Além disso, a proposta de miscigenação representava  um contra imaginário ao darwinismo aceito pelas elites, condição favorável ao apoio dos escritores.  

O literato não se refere ao dialeto falado pelo negro africano nem como língua , mas como uma “algavaria” , sinal de incapacidade e rudeza. Não que o desonhecimento do português fosse coisa esdrúxula na sociedade senhorial brasileira. Pelo contrário. Aos proprietários de escravos interessava simplesmente que eles pudessem compreender suas ordens.  Essa desconfiança com relação ao “falar africano” do feiticeiro parece sinalizar para a possibilidade dessa língua quase nada entendida ser usada na organização das práticas de resistência  ao senhor e suas famílias.  Isto me faz lembrar que no cotidiano dos escravos não era comum apenas o mórbido espetáculo do açoite, do feitor que fazia seu coração sangrar. Eles costumavam cantar jongos , ora num português arrevesado, ora em dialetos africanos diversos durante o trabalho na lavoura para criticarem o cotidiano das fazendas , para falarem dos senhores, sinhás e feitores como o bem conhecido: “ Meu patrão me bateu/ Ele não procedeu bem / Nada de mal fiz eu / Mas ele bateu em mim”. [39] Muitas vezes os utilizavam para combinar o assassinato de proprietários sem que esse percebesse nada. Nesse sentido, a “ algavaria bárbara” , como se expressa Macedo, mostra que ele estava atento ao caráter provisório da submissão daqueles.  Todavia acrescenta o autor não era apenas no “ falar mal “ o português ou ao cantar os jongos que os cativos poderiam travar uma luta silenciosa contra o mundo dos brancos, mas também nas “calunias” , nas “palavras sacrílegas” sobre os senhores e suas famílias versadas na venda logo que chegava à noite, na cozinha e nas senzalas.

A obra de Macedo é por ele mesmo definida como um documentário no qual escalarece o interesse em destacar o seu significado como um documento de natureza “verídica”,  “são histórias passadas a nossos olhos “ válido enquanto literatura e enquanto expressão de um momento história brasileira carregada de tensões e onerosos sacrifícios. A finalidade em evidencia da obra – convencer os senhores de fazer a abolição , de forma lenta e gradual antes que os escravos a fizessem revela que sua natureza será definida para além das fronteiras do terreno meramente literário. A necessidade de expressão em acordo com a urgência de desenvolver um projeto que propagasse o imaginário abolicionista o levou a  um “pequeno realismo” com “tintas folhetinescas’ como aponta Antonio Candido[40] Assim, pressionado pelo desejo de apresentar , em sua obra, fatos vivenciados pela sociedade e sob o seu olhar  “ verídico” resta pouco espaço para a ficção na obra macediana. 

Nesta senda vale lembrar que em sua obra Memórias da rua do ouvidor , Macedo apresenta sua produção literária como histórica , por isso deixa bem claro a origem e a natureza das tradições das quais se utiliza. Aqui fica  explicitada a dualidade vivenciada pelo autor que além de escritor era também professor de História no colégio Pedro II, à época em que fazer História consistia em trabalhar apenas o factual entendido como “real”, portanto distante da literatura que era ditada pela ficção. Concepção , sem dúvida presidida pela visão binária de mundo sustentada pelo pensamento racional. No entanto se em As vítimas algozes ele foge tanto da ficção, em Memórias da rua do ouvidor , ele admite trabalhar com episódios imaginados para suavizar a leitura das memórias, mas não inventa, imagina a tradição porque se não é verdadeira é “bem achada ( p. 23).  Observo  que o sentido de imaginar está próximo à existência do fato fora da mente humana enquanto inventar seria criar uma imagem de, sem correspondência com o real.

Observei também  que a matriz romântica empenhada na tarefa de dotar o Brasil de uma atividade literária compensadora de tantas e tão fundas carências está presente em As vítimas algozes. Macedo evoca a voz de Deus, dos governos e dos espíritos como forçam que haveriam  de impor a emancipação dos escravos e não se desvencilha dos ventos do nacionalismo que se apresentava misturado do desejo de pensar o país a partir de si mesmo , mas não renega o fascínio da modernidade e da civilização européia. Assim, Macedo como muitos literatos de sua época que cantavam a liberdade dos escravos enquanto conceito, enquanto desejo, os assustava a possibilidade de um dia tornar-se  realidade.  A liberdade destes  significaria o reconhecimento da diferença do Outro, frestas por onde poderiam ecoar as vozes abafadas dos escravos, negros, crioulos, analfabetos, misturas e herdeiros de duas culturas. Herdeiros bifrontes como Hermes, que  viveram essa viagem de escriba acocorado, com um pé fincado no chão, uma asa a voar , um remo navegando e  um imaginário exílio dentro da terra que os recebeu.   

Enfim, o arsenal de boas intenções quanto à emancipação não basta para ocultar a carga de preconceitos que perpassa a obra do escritor. No entanto, sua literatura torna presente às experiências da escravidão e da vida dos escravos, já tão distante temporalmente de nosso tempo. Ela possibilita a reconstrução pelas imagens literárias das dores, mas também do reino da fantasia dos escravos, imprescindível ao homem para  fugir das garras da loucura  revelando que, no antigo pode haver também uma invenção poética.  

 

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Viotti da Costa Emília. Da senzala à colônia, São Paulo, Livraria Editora de Ciências Humanas, 1982.


Notas

[1]  Professora do Departamento de História da Universidade de Brasília

[2] Oscar, J. Escravidão e engenhos: Campos, São João da Barra, Macaé e São Fidelis. Rio de Janeiro, Achiamé, 1985,  Rio de Janeiro, p. 67.

[3] Castoriadis, Cornelius. A instituição imaginária da sociedade, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1989, p. 259.

[4] Castoriadis, cornelius, op.cit. p. 222.

[5] Fanon,   Black skin, White mask, Londres, Pluto, 1986.

[6] Pesavento, Sandra e Leenhardt, Jacques. (orgs) Discurso Histórico e Narrativa Literária, Campinas, EDUNICAMP, 1998, p.25.

[7] Benjamin, Walter. Obras Escolhidas, v. I, São Paulo, Brasiliense,  1989, p. 226.

[8] Schwartz, Roberto.  As idéias fora do lugar, S. P, Estudos CEBRAP,  nº 3, 1973.

[9] Mattoso, Kátia M. Queirós. Ser escravo no Brasil. São Paulo, Brasiliense, 1988,p. 156-7.

[10] Dulemeau, Jean. História do Medo no Ocidente , São Paulo, Scwarcz Ltda, 1990., p.52.

[11] Fanon, op.cit., p. 157:158.

[12] Benjamin, Walter. Op. cit. p. . 223.

[13] Apud Emília Viotti da Costa, op.cit.p.346. A autora cita a Viagem de uma parisiense ao Brasil, de Adèle Toussaint – Samson.

[14] Apud Mario Carelli. Brésil. Épopée métisse. Paris, Gallimard, 1987,p. 107.

[15] Delumeau, Jean. Op. cit. p. 22.

[16] Castoriadis, op. cit. p. 221.

[17] Bhabha, Homi. O local da cultura, Belo Horizonte, Ed. UFMG, 2002, p. 65.

[18] Prado, Junior Caio. A formação econômica do Brasil, São Paulo, Brasiliense, 1976, p. 176.

[19] Backzo, Bronislaw. Imaginação Social . Em Enciclopédia Einaudi, v. 5. Porto , Casa da Moeda, 1985, p. 342.

[20] Antonio de Castro Alves, Os escravos, São Paulo, Martins, 1972,  p. 197.

[21] Astor Antonio Diehl, A cultura historiográfica brasileira do IHGB aos anos 1930, Porto Alegre, Ed. UFRGS, 1998, p. 35

[22] Sobre esta questão ver Cléria Botelho Costa O verbo em liberdade: a escravidão em Castro Alves. Em  Jaime de Almeida et alli ( orgs) Cenários Caribenhos, Brasília, Paralelo 15, 2003.

[23] Ed. Nacional, São Paulo, 1969.

[24] Op, cit, p. 301

[25] Candido, Antonio. Formação da literatura brasileira – Momentos decisivos, v. 2, São Paulo, Martins Editora, 1968, p.11.

[26] Kristeva, Julia. Desire in language: a semiotic approach to literatura and art, New York, Columbia University Press, 1985, p. 156.

27] Glissant, Edouard. Poétique dela relation, Paris, Gallimard, 1981, p. 137.

[28]  Segundo o Censo de 1849 , a corte contava com 205. 906 habitantes, dos quais 78.855 eram escravos e 10 732 libertos.

[29] Schwarcz, Lilia e Letícia Reis (orgs) Negras Imagens, São Paulo, EDUSP,  1996.

[30] Schwarcz, op. cit.p.17.

[31] Hall, Stuart. Identidade Cultural na Pós Modernidade, Rio de Janeiro, DP & A, 2001, p. 22

[32] Carvalho de, José Murilo. A construção da ordem: A elite política imperial, Rio de Janeiro, Relume Dumará, 1996, p. 86.

[33] Op. Cit. P.32

[34] Expressão usada pelos escravos africanos para designar o Brasil.

[35] Bhabha, Homi. Op.cit. p. 80.

[36] Gates, Henry JR. Race, writing and difference it makes. Chicago, University of Chicago Prees, 1986, p. 3

[37] Viana Oliveira. Evolução do povo brasileiro, São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1933.

[38] Da Matta, Roberto. Relativizando. Uma introdução à Antropologia Social, Rio, Zahar, 1987.

[39] Apud Emilia Viotti, op. cit, p. 230.

[40] Candido, Antonio. Aformação da literatura brasileira, V. 2, Belo Horizonte, Itatiaia , 1975, p. 136-45


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